Para reverter “ciclo
predatório contra a natureza e as pessoas” não basta uma mudança de hábito
espontânea dos mais conscientizados. São necessárias políticas públicas de
comercialização e apoio ao consumo. Dados de 2015, da Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO), apontam que cerca de 795 milhões de pessoas no
mundo não têm comida suficiente para levar uma vida saudável. De toda a água
consumida anualmente no planeta, cerca de 70% vai para a produção agrícola.
Bilhões de litros de agrotóxicos são utilizados por ano no mundo, gerando
impactos ambientais, danos à saúde e esgotamento produtivo. O regime
agroalimentar sustentado pela industrialização contribui para a má distribuição
fundiária e concentração de renda no meio rural, aumentando as desigualdades
sociais. Como contraponto a esse modelo, foram surgindo
diversos movimentos alternativos de produção agroalimentar pautados em
preceitos ecológicos e sociais, culminando na construção do que se conhece hoje
como agroecologia. “Somos
seres reflexivos. Ao ver que a direção que tomamos não foi a melhor, temos
condições de reavaliar. No momento não vejo opção que não seja passarmos, via
agroecologia, para essa reavaliação dos modos de produção e consumo de
alimentos”, diz Emma Siliprandi, agrônoma, membro da FAO e coordenadora
do projeto de apoio às estratégias nacionais e sub-regionais de segurança
alimentar e nutricional e de superação da pobreza na América Latina e Caribe. “A
agroecologia é um movimento muito ambicioso filosoficamente e politicamente,
pois propõe mudanças no paradigma da relação da humanidade com a natureza,
desde uma mudança tecnológica até mudanças comportamentais, políticas e de
gestão dos recursos naturais, por isso é muito importante para reverter esse
ciclo predatório que vivemos em relação à natureza e às próprias pessoas”,
complementa. A percepção social dos
impactos dos atuais padrões de produção e consumo de alimentos tem levado a
mudanças de hábitos, com a criação de novos mercados consumidores. Para Iara de
Souza, bióloga e mestre em agroecologia e desenvolvimento rural, os principais fatores
desencadeantes têm sido as evidências reais e cotidianas provocadas pelo uso
intensivo dos agrotóxicos. “A constatação da relação entre o aumento e
acirramento de doenças com o uso indiscriminado de agroquímicos tem feito
crescer a busca por produtos oriundos de iniciativas com enfoque agroecológico.
Para os agricultores, além dos impactos na saúde, há a inviabilidade ambiental
e econômica de manter o modelo produtivo convencional, tanto pela depreciação
dos meios de produção (solo e água), quanto pela insegurança e dependência de
corporações do setor de agroquímicos, sementes e comércio”, explica Iara. Ainda
que positiva, porém, a preocupação maior com o que se consome ainda está
restrita a determinadas camadas da sociedade, avalia Emma. Segundo a especialista, ainda faltam políticas de
apoio ao consumo, que criem mais mercados e canais de comercialização, além de
mais educação ambiental e alimentar nas escolas e nos meios de comunicação,
para que ocorra a construção da consciência coletiva em relação à alimentação e
ao seu impacto no meio ambiente. Economia
solidária e agroecologia “Estamos muito acostumados a entender que só existe um
tipo de economia, a que visa o lucro e a acumulação do capital, quando na
verdade existem muitas outras economias que convivem e não se resumem a lucro e
acúmulo”, diz Emma. Nesse contexto, a economia solidária – práticas de geração
e distribuição de renda de forma cooperativa – se relaciona fortemente com a
agroecologia. A economia solidária emerge contra a premissa de que o livre
intercâmbio de mercadorias e de força trabalho pode ser realizado a partir de regras
impessoais reguladas pelo próprio mercado. Surge para resgatar mecanismos que
se fundamentam em princípios como solidariedade e reciprocidade. Assim, muitos agricultores familiares têm se engajado
em sistemas de produção e escoamento alternativos: processamento de produtos no próprio
estabelecimento agrícola, desenvolvimento de mercados locais, criação de canais
curtos de comercialização e venda direta. “A
agroecologia e a economia solidária se relacionam através da produção e do
consumo”, explica Emma. “Da produção porque muitas vezes ela se dá de forma
coletiva, com cooperativas, associações, geralmente são muitas pessoas
trabalhando coletivamente”. Já em relação ao consumo, Emma explica que os
serviços agroecológicos circulam por mercados de vizinhança, de circuitos
curtos, onde o consumidor conversa diretamente com o produtor. Com os canais
curtos de comercialização, a relação entre o consumidor e o produtor é
estreitada. “Essa relação é importante por permitir que o consumidor conheça
quem produz a sua comida e apoie essas pessoas”, destaca Emma. Há ainda a
transformação da relação que os consumidores têm com a alimentação: “Vamos de
uma situação onde você vai até o supermercado, passa no caixa e paga, em
direção a outra em que você procura saber de onde esse alimento veio, como foi
produzido, por quem”, explica Emma. “A grande importância está na construção de
um tecido social – se constrói uma relação entre pessoas e não só uma relação
entre números, se constrói uma solidariedade horizontal entre consumidores e
produtores.” O papel do Estado Para que os grupos e movimentos pautados na
agroecologia tenham condições de criar novos mercados, é necessário que o
Estado garanta as condições, com políticas públicas que incentivem os sistemas
alternativos de produção e consumo alimentar. Emma destaca como maior avanço
neste sentido a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo). Existem
também outras políticas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que, de acordo com agrônoma,
“não são de enfoque agroecológico, mas têm incentivado a produção
agroecológica”. Sobre experiências envolvendo essas outras políticas,
Emma conta que na região de Pelotas (RS), há anos atrás, a produção
agroecológica era incentivada através da PAA, em que alimentos oriundos da
produção familiar eram adquiridos para a alimentação escolar. “Toda a
alimentação fornecida às crianças vinha da produção agroecológica e, além das
escolas, esses alimentos também eram direcionados para populações vulneráveis.
Essa experiência foi riquíssima em nível local, considerada pela população como
muito positiva, pois os produtores se sentiam valorizados, se engajavam e, ao
mesmo tempo, as pessoas que recebiam os alimentos tinham uma qualidade de vida
melhor.” Contudo, Emma considera que ainda faltam estímulos
mais concretos à criação de canais de comercialização, programas de compras
públicas que valorizem produções agroecológicas. “É preciso que o país assuma
essa como uma política prioritária, e não secundária ou complementar”, afirma a
agrônoma. A controvérsia dos orgânicos Apesar de
ainda serem vistos como sinônimos por muitos dos consumidores e até mesmo em
artigos e reportagens, há diferenças fundamentais entre a agricultura orgânica
e a agroecológica. De fato, quando formulada por Albert Howard no início do
século passado, a agricultura orgânica apresentava grandes semelhanças com a
agroecologia que conhecemos hoje. O termo “orgânica”, da expressão “agricultura
orgânica”, tinha então relação com a expressão “organismo agrícola”. Originalmente,
os produtores que adotavam os sistemas alternativos de produção o faziam por
convicção pessoal e preocupações ambientais e com a saúde. Porém, o
desenvolvimento de um mercado de produtos orgânicos, comercializados a preços
superiores aos convencionais, atraiu empreendedores que visam apenas o lucro.
Colocando
fatores econômicos à frente de agronômicos, ecológicos e sociais, muitos
sistemas de produção orgânica em nada se parecem com a agroecológica. A
perspectiva de equilíbrio do agroecossistema é substituída por outra focada no
que é ou não permitido. Assim, a agricultura orgânica se distancia da
agroecológica ao mesmo tempo que se aproxima da convencional: há a substituição
dos insumos convencionais por insumos orgânicos ou biológicos, mas a lógica
produtiva é a mesma. “Não é ruim que a sociedade incentive a produção orgânica,
porém ela não pode ser superestimada. A agroecológica tem uma outra postura,
com uma visão muito mais ampla e complexa.”, explica Emma.
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