No sentido
mais restrito, “território” é o nome político do espaço de um país. Mas o
relevante, aqui, é discutir o território como uma extensão apropriada e usada
que, por isso, se acompanha da ideia de territorialidade, isto é, o sentimento
de pertencer àquilo que nos pertence, uma preocupação com o destino do lugar e
da nação.
Para ser compreendido, o território deve ser considerado em suas
divisões jurídico-políticas, heranças históricas e atuais conteúdos econômicos,
financeiros, culturais, fiscais e normativos, que dão conteúdo a suas regiões.
É desse modo que o território pode ser interpretado como o quadro dinâmico,
material e imaterial, da vida social. A fusão entre as forças do global, do
nacional e do local determina a interdependência entre objetos, normas e ações.
Sempre a renovar-se, essa interdependência atribui um caráter tenso à
existência dinâmica do território.
Podemos falar de “território usado”, sinônimo de “espaço geográfico” (Santos,
1994; 1996; Santos e Silveira,
2001), que indica a necessidade de indagar sistematicamente sua constituição. A resposta demanda qualificar e quantificar os elementos, os atores e
seus comportamentos, as heranças do passado e as intencionalidades do futuro.
As empresas, o poder público, os cidadãos e organizações diversas configuram
uma teia de técnicas, normas e ações, que autorizam e limitam comportamentos. O
espaço geográfico encarna os problemas e as soluções do seu tempo e, por isso,
tem um papel ativo e as diferenças regionais são prova disso. É assim que as
regiões e os lugares também podem ser entendidos como atores.
Desse modo, o
território usado não é uma coisa inerte, um palco onde a vida se dá. É um
conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos,
1996) ou, em outras palavras, a base material mais a vida que a anima. É o
território propriamente dito mais as sucessivas obras humanas e os próprios
homens hoje.
O território revela as ações
passadas, já congeladas nos objetos e normas, e as ações presentes, aquelas que
estão a caminho de se realizar, capazes de conferir sentido ao que preexiste.
As bases materiais e imateriais historicamente estabelecidas são apenas
condições. Seu verdadeiro significado advém das ações sobre elas realizadas. O
território usado é, por isso, movimento permanente.
Assim entendido, o território é
objeto de novas perguntas: como, onde, por quem, por quê, para quê o território
é usado. E aí os atores aparecem, em permanente cooperação e conflito, mediados
pelos objetos e revelando diferente poder no uso do território.
Enfrentamos, a
cada dia, um duplo desafio. De um lado, é preciso um esforço para analisar o
que existe no seu movimento – o território usado e sendo usado – e, de outro,
um esforço para pensar o futuro e para produzir as transformações necessárias.
Se nossa preocupação é com a divisão do território, deveríamos lembrar, com
Ribeiro (2004), que há uma regionalização de fato, referida à expressão
espacial e que independe da ação hegemônica do presente, e uma regionalização
como ferramenta, isto é, uma delimitação visando implementar uma ação e, por
tanto, objeto do Estado, das corporações e dos movimentos sociais. A região
encarna, segundo a autora (Ribeiro, 2004), os interesses dos agentes diversos e
a influência das esferas da vida coletiva.
Por isso, quando quisermos definir
qualquer pedaço do território, como por exemplo uma região, ou mesmo, uma
unidade da federação, devemos levar em conta a interdependência e a
inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que
inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política. Em outras palavras, é
preciso examinar paralelamente os fixos, aquilo que é imóvel como as estradas,
as ferrovias, os portos, as telecomunicações, as áreas agrícolas, de mineração
ou da indústria, e os fluxos, aquilo que é móvel como os transportes, o
dinheiro, a informação e as ordens.
A análise
supõe o entendimento de como as coisas e as ações se repartem e se relacionam,
evitando a escolha prévia ou antecipada de soluções, sejam estas científicas,
sejam estas políticas. Mas, porque sabemos que a realidade é unitária, a visão
de conjunto deve preceder e acompanhar o exercício da análise e o exercício da
política.
Quando nos debruçamos sobre o período atual, vemos que os territórios
nacionais ganham acréscimos de ciência, tecnologia, informação e dinheiro e,
nesse processo, as regiões mudam suas feições e hierarquias. É a expansão do
meio técnico-científico-informacional que não se faz sem a força ou a fraqueza
da soberania política de uma nação. Concomitantemente observa-se substituição e
superposição de divisões territoriais do trabalho, cujas manifestações mais
visíveis são as remodelações de áreas já ocupadas e a ocupação de áreas
“periféricas”. Entretanto, essa dinâmica é fortemente comandada pela política
das grandes empresas, as quais impõem uma nova repartição do trabalho, assim
como novos movimentos. Envolvidas num processo de criação de valor pela
incorporação de objetos e ações modernos, as regiões especializam-se em
atividades exógenas e tornam-se compartimentos produtivos de um mundo
globalizado. Mas esses compartimentos têm vida curta, são nervosos, pois o
grande capital é movediço.
Cada período produz suas forças de concentração e dispersão, resultado
da utilização combinada de condições técnicas e políticas, que não podem ser
confundidas com as de momentos pretéritos e que redefinem os limites. Hoje,
verifica-se a difusão de um sistema técnico comandado pelas técnicas
informacionais que cria uma concentração e uma dispersão combinadas. De um
lado, as atividades modernas tendem a dispersar-se graças às virtualidades
oferecidas nas regiões distantes dos centros mais cobiçados pelas grandes
empresas e, de outro, há uma concentração das decisões mesmo quando o comando
técnico das operações produtivas possa ser relativamente disperso. O fator de
dispersão pede, por exemplo, a presença de novos profissionais nas cidades
médias das áreas mais desenvolvidas. A vocação de consumo e as rendas dessas
classes acabam por estender as fronteiras do mercado privado e, assim, uma
certa ubiquidade das ofertas “metropolitanas” parece revelar uma
indiferenciação regional. Paralelamente, o fator de concentração aumenta o
papel da metrópole no comando financeiro, obrigando cada ponto do território a
vincular-se diretamente com o centro principal e ignorar os níveis urbanos
intermediários. Isso também parece levar à certa indiferenciação regional.
Concentrado e disperso, esse alargamento da produção no território
nacional não se perfaz sem a cooperação. Orientada pela sua sofisticação e por
complexas equações de lucro, a técnica contemporânea permite dividir as etapas
da produção no planeta, chamando uma complexa e extensa unificação material e
imaterial dos processos. As firmas hegemônicas buscam influenciar as decisões
sobre a construção e usos de novas infraestruturas que lhes são mais
necessárias. Cria-se, desse modo, uma realidade que o poder público considera
como essencial para elaborar suas políticas e consolidar suas normas. Nessa
dinâmica, as grandes corporações, os grandes bancos, os fundos de investimento,
os fundos de pensão e outros agentes poderosos, de posse dos mais modernos
sistemas de circulação de bens, pessoas e ordens - e com força suficiente para
mudar o rumo dos governos e a forma de pensar de várias camadas sociais -,
fazem do planeta o seu território, sem ficarem presos às escalas nacional e
local. Isso se faz com frequência e velocidade antes nunca vistas. Daí a
metáfora da desterritorialização, que chama a atenção sobre essa aceleração com
que os capitais hegemônicos usam os diversos territórios nacionais, impondo
mecanismos de fluidez e lucrando com o fato de atravessar as fronteiras e com a
escolha seletiva dos seus pontos de ação. Tudo isso se constitui, outrossim,
num conteúdo da política das empresas, dos partidos e dos governos, preocupados
com a modernização que esquecem, não raro, as desigualdades regionais. A esse
retrato em movimento denominamos uso corporativo do território, do qual advem
as regionalizações movediças e as novas hierarquias regionais de um território
nacional (Santos e Silveira, 2001). Despontam possibilidades de enriquecimento
para algumas classes regionais ou para novos atores que chegam de fora. Mudam o
jogo de poder no lugar, as cosmovisões e os projetos e, com isso, as condições
de inserção do lugar na política nacional e na economia internacional.
Na expectativa do desenvolvimento regional e nacional, as políticas
convergem para a especialização funcional dos pedaços do território. Espelho da
política das corporações, essa especialização compromete os recursos fiscais
regionais para completar a cooperação. Para a equação interna da firma tal
repartição territorial do trabalho ampliada é mais rentável, porque aproveita
uma combinação favorável dos fatores de produção ao abrigo das benesses do
setor público. Para o conjunto da nação, é mais onerosa, pois a cooperação é cada vez mais feita
socialmente.
Os resultados desse processo socioespacial são, não raro,
desarticulações, ingovernabilidade e uma espécie de retorno à economia
arquipélago, mesmo que agora sobre bases técnicas e científicas. A fragmentação
é também a consequência da falta de coincidência entre “régio” e região, entre
regiões do mandar e regiões do fazer. O princípio local de organização da vida
é crescentemente substituído por um princípio de organização externo e alheio,
o que nos autoriza a falar em verticalidades, solidariedade organizacional e
alienação do território (Santos, 1996). Trata-se de uma interdependência criada
organizacionalmente, isto é, pela tecnociência e a finança. Existe mais
intercâmbio entre lugares e pessoas, porém seus conteúdos são mais normatizados
e menos espontâneos. Há necessidade de mais organização. Nessa direção, o poder
público oferece, a partir dos entes federativos, as garantias que a equação da
firma precisa, como na criação de municípios estudada por Cataia (2003).
Não se trata de imaginar que a integração de um território advém da
aceitação de uma arquitetura político-administrativa imutável, mas de
compreender que a dinâmica territorial não depende apenas das formas senão dos
seus conteúdos. A busca de mecanismos capazes de desenvolver uma ancoragem
territorial deve estar inserida na discussão de um projeto nacional, pois a
região não pode ser tomada como um absoluto, visto que sua existência não é
autônoma. Essa substituição da solidariedade orgânica por uma solidariedade
organizacional ou, em outras palavras, a transformação do lugar da vida em
compartimentos eficientes de uma economia internacionalizada está, sob certos
aspectos, fracassando. É a consciência desse processo que desencadeia a
“esquizofrenia do território”. Eventuais novas formas políticas não deveriam
reforçar tal processo.
Talvez um caminho para exorcizar essa tendência seja tomar como ponto de
partida e como ponto de chegada, na análise e na política de Estado, a ideia do
território usado por toda a sociedade nas suas diferentes manifestações
regionais, apesar da força diferente dos agentes. O risco de não fazê-lo é
imaginar que o controle de certos pontos, a existência de uma produção
especializada e internacionalizada numa região, o predomínio das lógicas
externas, a consideração de aspectos particularizados que, certamente, arrastam
outros interesses e fazem mais vulneráveis os territórios, nos farão atingir,
mais tarde, o desenvolvimento e a justiça socioespacial.
É possível que algumas das atuais formas de
representatividade política não revelem os problemas dos lugares na
globalização, que apontam a falta de comando político do seu trabalho e de
condições para a vida das pessoas, problemas que vão além dos municípios e dos
estados. Daí uma certa ingovernabilidade do território.
Mas, nesse contexto, parece aconselhável não
perder de vista a ideia de que uma genuína divisão do território deveria levar
em conta as áreas de identidade, legitimadas pelas próprias condições de
existência que, tal como imaginadas por Milton Santos (2000), constituíssem uma
regionalização do cotidiano, fundamento da emergência de um “quarto nível
político-territorial” para que a “federação globalizada” seja substituída pela
“federação lugarizada” (Santos, 2000). Em outras palavras, para que o
território nacional seja verdadeiramente o espaço de todos.
Maria Laura
Silveira é geógrafa, professora do Departamento de Geografia da Universidade de
São Paulo (USP)
Referências:
Cataia, M. “A alienação
do território – O papel da guerra fiscal no uso, organização e regulação do
território brasileiro”. In: Maria Adélia A. de Souza (org.), Território
brasileiro. Usos e abusos. Campinas: Territorial, 2003.
Ribeiro, A. C. T. “Regionalização: fato e ferramenta”. In: Ester
Limonad; Rogério Haesbaert; e Ruy Moreira (Org.), Brasil século XXI por uma nova regionalização? Ed. São Paulo: Max
Limonad, 2004.
Santos, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção.
Hucitec: São Paulo, 1996.
Santos, M. “Por uma nova federação”. Correio
Braziliense. 16/07/2000.
Santos, M. “O retorno do território”. In Milton Santos; Maria Adélia A.
Souza, e Maria Laura Silveira (org.), Território:
globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec-Anpur, 1994.
Santos, M. e Silveira, M. L. O
Brasil. Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
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