| O Cafundó, comunidade negra localizada  no município de Salto de Pirapora, perto de Sorocaba, no estado de São Paulo,  tem uma característica cultural que tem sido objeto de atenção de estudiosos e  de jornalistas desde a sua “descoberta” em 1978. Peter Fry e eu nos dedicamos durante  alguns anos a pesquisas na comunidade e em, 1996, publicamos, com a colaboração  de Robert Slenes, o livro Cafundó – A  África no Brasil, cuja segunda edição foi recentemente lançada pela Editora  da Unicamp. A singularidade do Cafundó se deve, em  especial, ao fato de que os seus habitantes, além de falantes do português,  utilizam também um vocabulário de cerca de 140 palavras de origem africana,  quimbundo sobretudo, com uma função que eles próprios reconhecem como de língua  secreta e a que dão o nome de falange,  ou cupópia. Dada a parcimônia do vocabulário, para falar  na cupópia, o recurso a metáforas e perífrases  é constante e sistemático, fazendo com que a maioria das palavras tenha significados múltiplos.
 A grande exceção a esse fenômeno de  generalizada homonímia se encontra nas palavras usadas para falar de  sofrimento, doença e morte. Mafambura e cachapura são os vocábulos que  designam formas diferentes de doença: a que vem por feitiço, de fora, e a que  vem naturalmente, de dentro. Em correlação com estas duas formas de sofrimento,  há também duas maneiras de morrer: morrer de mafambura é cuipar e morrer  de cachapura é cuendar pra cojenga carunga. O termo cuiparsignifica também “matar” e é utilizado ainda quando a causa da  morte é a violência física e não apenas a espiritual do feitiço. O vocabulário da cupópia tem mais um  verbo nesse campo semântico. Trata-se de muiombar,  formado, provavelmente, por derivação, a partir do substantivo muiombo (defunto) significando  “morrer”, no sentido da morte em si, da morte biológica, e constituindo o termo  médio dos três pares de oposição que estão representados na figura do triângulo  abaixo:
   
 O termo muiombar, desse modo, se emprega para designação do termo médio das  oposições de sentido e também como designação da categoria geral do campo  semântico da morte no vocabulário da língua africana do Cafundó, formado, como  foi dito, pelos três pares de oposição acima representados. O esquema, a seguir, sistematiza esse  jogo de palavras, sentidos e conceitos na cupópia: 
  
    | Sofrimento | Causa | Sofrimento | Sofrimento  |  
    | cachapura | natural | remédio    e (maiembe) | cuendar pra conjengacarunga
 |  
    | mafambura | feitiço(matuara)
 | remédio    ereza    (cutaro)
 | cuipar |  
    |   | violência  |   | cuipar |   No Cafundó, como no país, em geral, as  pessoas recorrem, seguindo um paradigma “técnico e científico”, aos médicos e  farmacêuticos e, complementarmente, não necessariamente nesta ordem, seguindo  agora um paradigma “místico”, às rezas, contrafeitiços, garrafadas etc, de modo  que essa complementaridade de atitudes diante do sofrimento e da morte parece  ser análoga à que existe entre o uso da “língua africana” e o uso do português  pela comunidade.
 Na oposição e complementaridade de seus  traços de “africanidade” e “caipiridade”, o Cafundó é parte do Brasil rural e  talvez metáfora das grandes contradições que caracterizam o Brasil  contemporâneo. Entre os sentidos que as expressões muiombar, cuipar e cuendar pra  conjenga carunga podem ter na cupópia, talvez os mais adequados sejam  aqueles que, de modo simples e direto, traduzem essas expressões do português: morrer, morrer de morte matada e morrer de morte morrida.      
  
    * Este  texto constitui-se, basicamente, do Cap. 5, do livro. VOGT. Carlos; FRY, Peter. Cafundó - A África no Brasil. 1ª ed. Campinas: São Paulo:  Editora da Unicamp e Companhia das Letras,  1996, 2ª. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.  (Com a colaboração de Robert Slenes).
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