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Reportagem
América Latina: saída pela esquerda?
Por André Gardini
10/04/2006

“Outra América está em marcha”, afirma o cartaz pregado nas ruas de Caracas, capital da Venezuela, durante o VI Fórum Social Mundial. A vitória de alguns governos ditos de esquerda, que bateram nas urnas de administrações de perfil mais conservador, são entendidas como um sinal de esperança para uns ou de ascensão de um populismo inconseqüente para outros. De qualquer modo, o processo coloca algumas questões desafiadoras. Fariam as sucessivas eleições desses governos no continente parte de processo coerente, que configura uma resposta ao modelo neoliberal? Ou são apenas simples coincidências, derivadas de fatos políticos isolados que em nada altera a totalidade?



Outra América está em marcha: os presidentes da Bolívia, Uruguai, Venezuela, Brasil e Argentina.
Foto: André Gardini

O rosto mais recente a figurar nesse cartaz é de Evo Morales, o líder indígena que se tornou presidente da Bolívia. O processo que o levou ao cargo foi atribulado. Em outubro de 2003, Sanches de Losada, o então presidente renunciou ao cargo, que foi assumido pelo vice, Carlos Mesa. Este, por sua vez, renunciou em março de 2005, e o país passou a ser governado por um presidente interino, Fernando Rodriguez. No final do mesmo ano, Morales foi eleito.

À sua direita está Tabaré Vasquez, que conseguiu criar uma alternância do poder no Uruguai e romper um ciclo de mais de meio século. Em 2004, pela primeira vez na história uruguaia uma coligação de esquerda assumiu o governo, quebrando a hegemonia que os partidos Blanco e Colorado exerceram por quase 70 anos.

A ausência notável na foto é de um rosto feminino que se notabilizou por chegar ao poder no Chile. Michele Bachelet, socialista, tomou posse como presidente em 11 de março. Talvez seu rosto não esteja no cartaz por sua eleição ter sido muito recente – a foto acima foi tirada no final de janeiro – mas pode ter pesado o fato de ela ser a que menos se afina com o discurso anti-imperialista de Hugo Chávez e Evo Morales. É a herdeira de um governo de centro-esquerda reconhecido por sua moderação e pelas boas relações que mantém com os EUA.

Essa breve descrição do quadro político da América Latina deve se completar nos próximos meses quando, no Peru (primeiro turno foi ontem), e no México, em julho, as eleições presidenciais oferecerão novos elementos para responder se a América Latina está tomando coletivamente um rumo à esquerda.

Uma coisa é certa, se há um movimento orquestrado na região, essa realidade pode ser alterada a qualquer momento. É o que afirma Hélio Araújo Evangelista, professor de geografia da Universidade Federal Fluminense. Ele destaca que esse novo cenário político que se desenha, pode ser transformado, por exemplo, a partir da sucessão eleitoral que ocorrerá no Brasil neste ano. “Uma vitória do candidato Geraldo Alckmin, o que não é tão impossível, caso continue esse processo de decomposição da legitimidade do governo Lula, fatalmente trará conseqüências para os outros países da América Latina”. De acordo com Evangelista, o partido de Alckmin (PSDB), deverá se aproximar mais dos Estados Unidos do que de Evo Morales ou de Hugo Chávez.

No artigo "Ciclo eleitoral de 2006 vai definir os rumos da América Latina" (veja nesta edição), Emir Sader destaca que Nestor Kirchner tem boas chances de se reeleger em 2007. No México, espera-se que López Obrador, que representa a esquerda democrática e que já vem se aproximando do Mercosul, vença. No Peru, o candidato nacionalista de esquerda está na frente nas pesquisas e é o único confirmado para o segundo turno.

América vermelha?

O professor de geografia política da Universidade de São Paulo (USP), André Martins, aponta Chávez como um elemento novo na política da América Latina. Ele explica que as propostas do presidente venezuelano configuram um projeto autônomo de desenvolvimento regional. “O problema é que, estruturalmente falando, nenhum país da América Latina, exceto o Brasil, dispõe de condições para lograr tal êxito em tal empreendimento. Tanto assim que o próprio Chávez vê como indispensável o apoio do Brasil (BNDES e Petrobras, sobretudo) para que seu plano dê certo”. Para ele, a direita está sem saída e o único caminho encontrado foi recuar aos anos 1950 e identificar Chávez e a Revolução Bolivariana com Fidel Castro e a Revolução Cubana, de 1959.

Morales e Chávez, que estão implantando mudanças estruturais de impacto em seus países – como a nacionalização do petróleo e do gás, na Bolívia, e a Lei de Terras e Lei de Pesca na Venezuela – são vistos de forma completamente distinta de Lula e Bachelet pelos EUA. “Os dois últimos foram recebidos de braços abertos pela diplomacia dos EUA, apareceram como representantes populares capazes de exercer um mandato elitista”, afirma Daniel Oliveira, pesquisador que desenvolve seu doutorado na USP.

Para Oliveira, Brasil e Chile cumprem acordos comerciais, desregulam mercados, garantem o lucro do capital especulativo e adotam programas sociais assistencialistas. “Em suma, não tocam na estrutura e garantem a continuidade e expansão dos interesses dos EUA, e do próprio capitalismo como um todo”, afirma. Ele rejeita, porém, a hipótese de haver uma dicotomia simples entre uma esquerda moderada e uma radical, assim como no tratamento reservado pelos EUA para com esses países. Existiriam políticas internas distintas e distinta também seria a política externa dos Estados Unidos, país com forte influência na região.

Paulo Roberto de Almeida, do Ministério das Relações Exteriores, aponta que o Chile aplicou as regras do consenso de Washington, mas configurou um caso de sucesso na região. Portanto, a tese de que o neoliberalismo desequilibra os territórios, política, social e economicamente, não seria correta. No artigo “América Latina: novo rumo na direção da esquerda?”, ele escreve que, em outros países como México, Argentina e Brasil, não foi o neoliberalismo que neutralizou as políticas sociais, mas sim a má qualidade das instituições democráticas. Para ele de imediato é possível enxergar duas esquerdas: uma que se apóia nas velhas fórmulas estatizantes para a solução de velhos problemas e uma outra, “que proclama as virtudes da estabilidade econômica e da abertura comercial para alcançar resultados a prazos médios”. Essas duas tipologias estabelecidas, ou formas de governar, seriam observadas através de alguns fatos envolvendo a dinâmica territorial da América Latina.

A luta de Bolívar pela integração latino-americana

Nascido em Caracas, Venezuela, em 24 de julho de 1783, Simon Bolívar foi responsável por libertar 5 países da América do Sul: Venezuela, Bolívia, Colômbia, Peru e Equador. A história de luta que Bolívar representa é constantemente lembrada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Através dessa história, Chávez pretende relembrar que o histórico de luta pela integração dos países da região não é um processo fácil, pelo contrário, é conflituoso e permeado por interesses políticos distintos.


É comum ver imagens de Bolívar nos muros da capital venezuelana, Caracas. Foto: André Gardini

A primeira luta libertária de Bolívar foi na Colômbia, quando em 1819 venceu as tropas espanholas e proclamou a República da Bolívia. Em 1921, a luta foi na Venezuela, na famosa batalha de Carabobo. Após as vitórias militares e o sonho realizado de libertar os países sul-americanos do domínio espanhol, o passo seguinte era se tornar um líder estadista sul-americano. Ele planejava fundar uma federação das nações da América do Sul, mas não conseguiu manter a união. Por volta de 1830, Venezuela e Equador já haviam rompido a aliança e Bolívar, percebendo que suas ambições políticas eram uma ameaça à paz regional, renunciou no mesmo ano e faleceu em 17 de dezembro de 1830.

Alberto Aggio, professor da Faculdade de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp – Franca-SP) acredita que a imagem criada em torno de Bolívar é um mito.Bolívar não lutou apenas pela união latino-americana, lutou pela independência e, no que se refere às suas formulações específicas de organização do Estado pós-independência, nunca foi propriamente um democrata”. Para ele, não há um concerto nas vitórias das esquerdas latino-americanas. “Do meu ponto de vista, não há uma real ruptura com as propostas neoliberais que comandaram a política latino-americana desde a década de 1990, nem mesmo por meio de Chávez”, argumenta.

"A desunião sempre interessa às forças imperialistas", afirma Eliel Machado, pesquisador do Grupo de Estudos Políticos da América Latina (Gepal) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Ele explica que certos projetos integracionistas, mesmo no discurso de Bolívar, acabam resvalando pelo populismo, o que significa, do ponto de vista ideológico, tentar incutir nas massas que se trata de uma grande união latino-americana. “Por trás disso, tem o discurso anti-imperialista. Sabemos que nessa esteira muitas vezes se resguardam os interesses dos grandes grupos nacionais”, acrescenta Machado.

Aggio, que defendeu sua tese de livre-docência com o título “Pensamento político e estratégias democráticas na América Latina”, não simpatiza com a idéia de integração latino-americana propagada pelos movimentos sociais como os reunidos no VI Fórum Social Mundial. E mais, afirma que qualquer construção que compreenda Chávez como um líder latino-americano é um equivoco. “A questão da integração é muito mais complexa e seria um equívoco discutirmos isso a partir da pauta chavista de ataque ao imperialismo norte-americano. O problema da integração não é tampouco militar, não estaremos integrados a partir da criação de uma Força Militar do Sul. O Mercosul é filho da conquista da democracia depois das ditaduras militares e acho que é nessa linha que devemos ir, apesar de todas as dificuldades”.

Para pesquisar:

Grupo de Estudos Políticos da América Latina (Gepal)

Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (Nupri)