“Outra
América está em marcha”, afirma o
cartaz pregado nas
ruas de Caracas, capital da Venezuela, durante o VI Fórum
Social Mundial. A vitória de alguns governos ditos de
esquerda, que bateram nas urnas de administrações de
perfil mais conservador, são entendidas como um sinal de
esperança para uns ou de ascensão de um populismo
inconseqüente para outros. De qualquer modo, o processo coloca
algumas questões desafiadoras. Fariam as sucessivas
eleições
desses governos no continente parte de processo coerente, que
configura uma resposta ao modelo neoliberal? Ou são apenas
simples coincidências, derivadas de fatos
políticos
isolados que em nada altera a totalidade?
Outra
América está em marcha: os presidentes da
Bolívia, Uruguai, Venezuela, Brasil e Argentina.
Foto:
André Gardini
O
rosto mais recente a figurar nesse cartaz é de Evo Morales,
o
líder indígena que se tornou presidente da
Bolívia.
O processo que o levou ao cargo foi atribulado. Em outubro de 2003,
Sanches de Losada, o então presidente renunciou ao cargo,
que
foi assumido pelo vice, Carlos Mesa. Este, por sua vez, renunciou em
março de 2005, e o país passou a ser governado
por um
presidente interino, Fernando Rodriguez. No final do mesmo ano,
Morales foi eleito.
À
sua direita está Tabaré Vasquez, que conseguiu
criar
uma alternância do poder no Uruguai e romper um ciclo de mais
de meio século. Em 2004, pela
primeira
vez na história uruguaia uma coligação
de
esquerda assumiu o governo, quebrando a hegemonia que os partidos
Blanco e Colorado exerceram por
quase 70 anos.
A
ausência notável na foto é de um rosto
feminino que se notabilizou por chegar ao poder no Chile. Michele
Bachelet, socialista, tomou posse como presidente em 11 de
março. Talvez
seu rosto não esteja no cartaz por sua
eleição
ter sido muito recente – a foto acima foi tirada no final de
janeiro – mas pode ter pesado o fato de ela ser a que menos
se
afina com o discurso anti-imperialista de Hugo Chávez e Evo
Morales. É a herdeira de um governo de centro-esquerda
reconhecido por sua moderação e pelas boas
relações
que mantém com os EUA.
Essa
breve descrição do quadro político da
América
Latina deve se completar nos próximos meses quando, no Peru
(primeiro turno foi ontem), e no México, em julho, as eleições presidenciais oferecerão
novos
elementos para responder se a América Latina está
tomando coletivamente um rumo à esquerda.
Uma
coisa é certa, se há um movimento orquestrado na
região, essa realidade pode ser alterada a qualquer momento.
É
o que afirma Hélio Araújo Evangelista, professor
de
geografia da Universidade Federal Fluminense. Ele destaca que esse
novo cenário político que se desenha, pode ser
transformado, por exemplo, a partir da sucessão eleitoral
que
ocorrerá no Brasil neste ano. “Uma
vitória do
candidato Geraldo Alckmin, o que não é
tão
impossível, caso continue esse processo de
decomposição
da legitimidade do governo Lula, fatalmente trará
conseqüências para os outros países da
América
Latina”. De acordo com Evangelista, o partido de Alckmin
(PSDB),
deverá se aproximar mais dos Estados Unidos do que de Evo
Morales ou de Hugo Chávez.
No artigo "Ciclo
eleitoral de 2006 vai definir os rumos da América Latina"
(veja nesta edição), Emir Sader destaca que
Nestor Kirchner tem boas chances de se
reeleger em 2007. No México, espera-se que López
Obrador, que representa a esquerda democrática e que
já
vem se aproximando do Mercosul, vença. No Peru, o candidato
nacionalista de esquerda está na frente nas pesquisas e
é o único confirmado para o segundo turno.
América
vermelha?
O
professor de geografia política da Universidade de
São
Paulo (USP), André Martins, aponta Chávez como um
elemento novo na política da América Latina. Ele
explica que as propostas do presidente venezuelano configuram um
projeto autônomo de desenvolvimento regional. “O
problema é
que, estruturalmente falando, nenhum país da
América
Latina, exceto o Brasil, dispõe de
condições
para lograr tal êxito em tal empreendimento. Tanto assim que
o
próprio Chávez vê como
indispensável o
apoio do Brasil (BNDES e Petrobras, sobretudo) para que seu
plano dê certo”. Para ele, a direita
está sem saída
e o único caminho encontrado foi recuar aos anos 1950 e
identificar Chávez e a Revolução
Bolivariana com
Fidel Castro e a Revolução Cubana, de 1959.
Morales
e Chávez, que estão implantando
mudanças
estruturais de impacto em seus países – como a
nacionalização do petróleo e do
gás, na
Bolívia, e a Lei de Terras e Lei de Pesca na Venezuela
– são
vistos de forma completamente distinta de Lula e Bachelet pelos EUA.
“Os dois últimos foram recebidos de
braços abertos
pela diplomacia dos EUA, apareceram como representantes populares
capazes de exercer um mandato elitista”, afirma
Daniel Oliveira, pesquisador que desenvolve seu doutorado na USP.
Para
Oliveira, Brasil e Chile cumprem acordos comerciais, desregulam
mercados,
garantem o lucro do capital especulativo e adotam programas sociais
assistencialistas. “Em suma, não tocam na
estrutura e
garantem a continuidade e expansão dos interesses dos EUA, e
do próprio capitalismo como um todo”, afirma. Ele
rejeita, porém, a hipótese de haver uma dicotomia
simples entre uma esquerda moderada e uma radical, assim como no
tratamento reservado pelos EUA para com esses países.
Existiriam
políticas internas distintas e distinta
também seria a política externa dos Estados
Unidos,
país com forte influência na região.
Paulo
Roberto de Almeida, do Ministério das
Relações
Exteriores, aponta que o Chile aplicou as regras do consenso de
Washington, mas configurou um caso de sucesso na região.
Portanto, a tese de que o neoliberalismo desequilibra os
territórios,
política, social e economicamente, não seria
correta.
No artigo “América
Latina: novo rumo na direção da esquerda?”,
ele escreve que, em outros países como México,
Argentina e Brasil, não foi o neoliberalismo que neutralizou
as políticas sociais, mas sim a má qualidade das
instituições democráticas. Para ele de
imediato
é possível enxergar duas esquerdas: uma que se
apóia
nas velhas fórmulas estatizantes para a
solução
de velhos problemas e uma outra, “que proclama as virtudes da
estabilidade econômica e da abertura comercial para
alcançar
resultados a prazos médios”. Essas duas tipologias
estabelecidas, ou formas de governar, seriam observadas
através
de alguns fatos envolvendo a dinâmica territorial da
América
Latina.
A
luta de Bolívar pela integração
latino-americana
Nascido
em Caracas, Venezuela, em 24 de julho de 1783, Simon Bolívar
foi responsável por libertar 5 países da
América
do Sul: Venezuela, Bolívia, Colômbia, Peru e
Equador. A
história de luta que Bolívar representa
é
constantemente lembrada pelo presidente da Venezuela, Hugo
Chávez. Através dessa história,
Chávez pretende
relembrar que o histórico de luta pela
integração
dos países da região não é
um processo
fácil, pelo contrário, é conflituoso e
permeado
por interesses políticos distintos.
É
comum ver imagens de Bolívar nos muros da capital
venezuelana,
Caracas. Foto:
André Gardini
A
primeira luta libertária de Bolívar foi na
Colômbia,
quando em 1819 venceu as tropas espanholas e proclamou a
República
da Bolívia. Em 1921, a luta foi na Venezuela, na famosa
batalha de Carabobo. Após as vitórias militares e
o
sonho realizado de libertar os países sul-americanos do
domínio espanhol, o passo seguinte era se tornar um
líder
estadista sul-americano. Ele planejava fundar uma
federação
das nações da América do Sul, mas
não
conseguiu manter a união. Por volta de 1830, Venezuela e
Equador já haviam rompido a aliança e
Bolívar,
percebendo que suas ambições políticas
eram uma
ameaça à paz regional, renunciou no mesmo ano e
faleceu
em 17 de dezembro de 1830.
Alberto
Aggio, professor da Faculdade de História da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp –
Franca-SP) acredita que a imagem
criada em torno de Bolívar é um mito. “Bolívar
não lutou apenas pela união latino-americana,
lutou
pela independência e, no que se refere às suas
formulações específicas de
organização do
Estado pós-independência, nunca foi propriamente
um
democrata”. Para ele, não
há um concerto nas vitórias das esquerdas
latino-americanas. “Do meu ponto de vista, não
há uma
real ruptura com as propostas neoliberais que comandaram a
política
latino-americana desde a década de 1990, nem mesmo por meio
de
Chávez”, argumenta.
"A
desunião sempre interessa às forças
imperialistas", afirma Eliel
Machado, pesquisador do Grupo de Estudos Políticos da
América Latina
(Gepal) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Ele explica que
certos projetos integracionistas, mesmo no discurso de
Bolívar, acabam
resvalando pelo populismo, o que significa, do ponto de vista
ideológico, tentar incutir nas massas que se trata de uma
grande união
latino-americana. “Por trás disso, tem o discurso
anti-imperialista.
Sabemos que nessa esteira muitas vezes se resguardam os interesses dos
grandes grupos nacionais”, acrescenta Machado.
Aggio,
que defendeu sua tese de livre-docência com o
título
“Pensamento político e estratégias
democráticas
na América Latina”, não simpatiza com a
idéia
de integração latino-americana propagada pelos
movimentos sociais como os reunidos no VI Fórum Social
Mundial. E mais, afirma que qualquer construção
que
compreenda Chávez como um líder latino-americano
é
um equivoco. “A questão da
integração é
muito mais complexa e seria um equívoco discutirmos isso a
partir da pauta chavista de ataque ao imperialismo norte-americano. O
problema da integração não
é tampouco
militar, não estaremos integrados a partir da
criação
de uma Força Militar do Sul. O Mercosul é filho
da
conquista da democracia depois das ditaduras militares e acho que
é
nessa linha que devemos ir, apesar de todas as dificuldades”.
Para
pesquisar:
Grupo
de Estudos Políticos da América Latina (Gepal)
Núcleo
de Pesquisas em Relações Internacionais da USP
(Nupri)
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