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Editorial
Farsa e controvérsia
Por Carlos Vogt
10/10/2013

Nem toda controvérsia supõe uma farsa, mas toda farsa implica uma controvérsia.

Controversas são as histórias que contamos sobre nós mesmos e as interpretações que oferecemos sobre acontecimentos corriqueiros, que destacamos como excepcionais pela memória seletiva e afetiva das lembranças, que nos fazem singulares na forma de narrá-las e comuns no conteúdo do que é narrado.

Imagine isso quando os atores controversos são cientistas renomados e o que pode estar em jogo é não só a vaidade do protagonismo como também interesses econômicos acompanhados de ingredientes que raramente deixam de comparecer nessas narrativas, quais sejam, sexo e poder.

Uma das obras de ficção contemporânea mais adequada, contundente e divertidamente satírica sobre a situação de farsa e controvérsia na ciência é o romance de Ian McEwan1, Solar, publicado originalmente em 2010 na Inglaterra e que, traduzido para diversas línguas, conheceu um sucesso mundial.

Michael Beard é, na história, um eminente cientista ganhador do Nobel de Física. A premiação, que ocorreu alguns anos antes, ao mesmo tempo que o distingue, torna-o enfadado e enfadonho, maximizando sua intolerância e irascibilidade. Michael Beard é um chato paparicado, goza de prestígio e é obcecado por sexo. Tem um histórico de vários casamentos, feitos e desfeitos ao sabor de aventuras e traições já um pouco desajustadas à sua idade e peso, na época em que começa a narrativa da saga de sua personalidade disfuncional e do cinismo que rege sua ambição na busca de uma solução técnico-científica baseada na energia solar para a questão das mudanças climáticas.

Beard está no quinto casamento e, mais uma vez, por infidelidade, o vê terminar, descobrindo, então, seu grande amor por Patrice, que não só o abandona como começa a ter um caso com o pedreiro que trabalhava na casa deles.

Beard, deprimido, vai para o Ártico numa viagem de pesquisa sobre mudanças climáticas, depois de se dar conta de que havia perdido a mulher de sua vida por obra de sua inconstância, desorganização e desequilíbrio emocional e afetivo. Esses acontecimentos corroboram suas frustrações profissionais e intelectuais, mas não impedem, antes o incentivam a que se aproprie das ideias de um jovem colaborador e as apresente como suas, depois que, por um sinistro acidente, este morre na sua antiga casa, vestindo seu roupão de banho e compartilhando suas antigas intimidades, inclusive com sua ex-mulher.

Beard se aproveita da situação, cria um cenário para culpar Turpin, o pedreiro, que vai para a prisão, e toma para si o segredo das pesquisas de Tom Aldous sobre fotossíntese artificial; que lhe permitirá vender como sua uma solução tecnológica para o uso da energia solar e, assim, aparecer ainda, além de ganhar dinheiro, como salvador do mundo na questão controversa, apaixonada e apaixonante das mudanças climáticas.

Claro que no fim vai dar tudo errado, mas até lá muita gente foi enganada e muitos se divertiram com as peripécias desse anti-herói, misto de Sancho Pança e Macunaíma da física contemporânea e das tecnologias de salvação do planeta das catástrofes climáticas, que muitos anunciam e preconizam, outros ironizam, ou são indiferentes, e não poucos se aproveitam para tirar uma casquinha.

Solar, além de ser um excelente romance da literatura atual, também é uma boa entrada no mundo social da ciência, da tecnologia e da inovação, compondo uma cena inteligente, bem humorada, muitas vezes irônica, do espaço contemporâneo do conhecimento para cujo desenho e delimitação contribuem, de forma constitutiva, a farsa e a controvérsia.

Este número da ComCiência, é dedicado às Controvérsias Científicas. Bem-vindos a elas! E se quiserem estar bem equipados para as excursões ao Ártico e à Antártida das disputas teóricas e metodológicas, levem como guia, divertido e competente, esta narrativa picaresca ao revés, em que o personagem já chegado, faz de tudo para desconstruir, por ambição de chegar mais, a saga de seu arrivismo controverso.

Notas: 1-MACEWAN, Ian. Solar. Londres: Random House, 2010. Trad. de Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.