O clímax da história que contaremos aqui é o ano de 1941, quando o físico norte-americano Arthur Holly Compton visitou o Brasil em um dos períodos mais sangrentos da história mundial – a Segunda Guerra Mundial. Acreditava-se que tal visita evidenciava o interesse de Compton pela física brasileira, mais precisamente, pela pesquisa em raios cósmicos desenvolvida pelo grupo de Gleb Wataghin na Universidade de São Paulo (USP). A excursão intelectual de Compton e da sua equipe não foi estritamente motivada pelo amor à ciência. Quem estaria interessado na pesquisa em raios cósmicos quando o mundo passava por um momento dramático e medonho? Todos os esforços estavam completamente dedicados à construção da bomba atômica, o que levou à criação do Projeto Manhattan do qual Compton fez parte, e não à investigação acerca dos raios cósmicos. Na verdade, como será enfatizado, a Missão Compton – termo difundido pelos veículos de comunicação da época – foi mais diplomática do que científica. Contudo, antes de adentrarmos no caráter político da visita de Compton ao Brasil, voltaremos um pouco no tempo com o intuito de contextualizar o papel da figura de Compton, o estado da arte da pesquisa brasileira em física, e o período em questão.
Iniciaremos com a figura de Compton. Nascido nos Estados Unidos, na cidade de Wooster, Ohio, foi laureado com o Prêmio Nobel de Física em 1927, aos 35 anos, pela descoberta do que viria a ser chamado de “efeito Compton”. Após tentativas frustradas de explicar o mesmo fenômeno – por que havia uma diferença no comprimento de onda da radiação incidente e espalhada quando incidia em uma superfície metálica –, Compton finalmente utilizou a ideia de que a radiação era composta por pequenos pacotes de energia, e demonstrou que aquela diferença era o resultado da colisão de um fóton com um elétron. Isto é, parte da energia da radiação incidente era transferida para o elétron e, assim, a radiação espalhada possuiria um comprimento de onda maior do que a incidente.
Após um longo programa de pesquisa trabalhando com o espalhamento da radiação pela matéria, na década de 1930, Compton voltou a sua atenção para um outro tema – a pesquisa em raios cósmicos. A radiação cósmica é constituída por partículas de alta energia que chegam à Terra do espaço. Como conhecia-se muito pouco acerca da natureza dessa radiação, cientistas tornaram-se desbravadores itinerantes viajando o mundo todo para realizar experimentos em busca de uma relação entre a intensidade dos raios cósmicos e a latitude. Compton, por exemplo, criou um grupo de pesquisa que viajou por vários países, a saber, Brasil, Argentina, Peru, Espanha e Estados Unidos. Disputou com o físico norte-americano Robert Millikan, também Prêmio Nobel de 1923, uma explicação relativa à origem dos raios cósmicos que ficou amplamente conhecida por meio das notícias publicadas pelo New York Times. Enquanto Compton defendia que a radiação cósmica consistia de partículas carregadas oriundas do espaço, Millikan, por sua vez, defendia que ela era composta por fótons. Compton saíra vitorioso da disputa científica.
Foi naquele contexto que Compton soube da pesquisa em raios cósmicos liderada por Wataghin no Brasil. De origem russa, mas naturalizado italiano, Wataghin foi convidado para liderar o Departamento de Física da USP em 1934. À época, ele era professor da Politécnica de Turim na Itália. Chegando ao Brasil, acreditou na potencialidade de jovens talentosos e promissores, tais como Marcelo Damy de Souza Santos e Paulus Pompéia, em física experimental, e Mario Schenberg, em física teórica; e escolheu sabiamente um tópico de pesquisa relativamente barato, considerando as condições e limitações da recém criada universidade, mas que, se bem desenvolvida, poderia levar a física brasileira à fronteira da física mundial: a radiação cósmica. O primeiro fruto dessa pesquisa foi publicado em 1939 na renomada Physical Review Letters. Wataghin, Souza Santos e Pompéia descobriram os “chuveiros penetrantes”, produção de várias partículas após a interação de raios cósmicos com as camadas superiores da atmosfera, ao realizarem experimentos com balões em grandes altitudes. Nas palavras de César Lattes, físico brasileiro renomado e participante da descoberta do méson pi, “essa descoberta do Wataghin, do Damy e do Pompéia era a vanguarda do que se estava fazendo na época para entender a física nuclear e as altas energias. ... foi uma descoberta das mais importantes naquela época”. Obviamente que essa descoberta também chamaria a atenção de Compton, consolidando, assim, a sua interação com os físicos de São Paulo.
No final de 1940, Wataghin tomou conhecimento da vinda de Compton ao Brasil, a qual estava sendo planejada para o ano subsequente. Não esperou muito tempo para mobilizar o governo do estado de São Paulo, o governo federal e a administração da USP em busca de financiamento e apoio logístico para o grupo de Compton. Também teve a ideia de organizar um Simpósio Sobre Raios Cósmicos, como forma de homenagear Compton, o qual aconteceria no Rio de Janeiro. Após os esforços de Wataghin, Compton foi convidado oficialmente pelo ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, para visitar o Brasil juntamente com a sua comitiva.
À época, o Brasil era chefiado por Getúlio Vargas, cujo governo, na década de 1930, não havia disfarçado a sua empatia pelo fascismo que se alastrava pela Europa, o que preocupava o governo dos Estados Unidos. Visando obter benefícios com a polarização internacional, como por exemplo a construção de uma usina siderúrgica e a modernização das forças armadas, Vargas fez jogo duplo, mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, com os Estados Unidos e a Alemanha, com a finalidade de barganhar apoio para o desenvolvimento do país. À medida que a guerra configurava-se como inevitável, o Brasil, mais precisamente, o entorno da cidade de Natal, tornava-se uma plataforma militar natural para as tropas norte-americanas alcançarem o norte da África e a Europa. Enquanto os Estados Unidos ainda pensavam nos termos do acordo de alinhamento com o Brasil, a Alemanha foi mais adiante prometendo a construção da tão sonhada usina siderúrgica logo após o fim da guerra. A possível aliança entre o Brasil e a Alemanha deixou os Estados Unidos demasiadamente assustados. Foi então que eles decidiram avançar nas negociações com o Brasil, prometendo oferecer a Vargas tudo que ele estava pleiteando. O próprio presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, veio pessoalmente ao Brasil para estreitar os laços com Vargas e, consequentemente, garantir a construção do que viria a ser a siderúrgica de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, e o rearmamento das forças militares brasileiras. Vargas anunciou o rompimento do Brasil com as potências do eixo – Alemanha, Itália e Império do Japão. Como resultado, o Brasil sofreu retaliações do governo alemão, o qual torpedeou vários navios brasileiros.
Mas, o que o triângulo Brasil – Alemanha – Estados Unidos tem a ver com a visita de Compton ao Brasil? O jogo duplo de Vargas evidencia que, na década de 1930, o Brasil não havia optado por um entrincheiramento incondicional com os Estados Unidos. Com efeito, foi necessária uma política de boa vizinhança para conquistar os corações brasileiros durante os anos de guerra. E a vinda de Compton ao Brasil foi, também, um esforço nesse sentido, como veremos.
Compton finalmente chegou ao Brasil em 1941, tornando-se notícia nos principais jornais brasileiros. No Jornal da Semana de 30 de agosto de 1941, por exemplo, lia-se: “A presença da Missão Compton, no Rio, assinalou-se por manifestações de simpatia e apreço partidas das autoridades e centros científicos brasileiros. Chefiada por um sábio de renome universal, essa Missão é uma embaixada da alta cultura dos Estados Unidos, pois Arthur Compton não é apenas o autor de descobertas de grande valor para a ciência e o detentor do Prêmio Nobel de Física – é a mais alta expressão dessa plêiade de sábios que constituem a maior contribuição americana à civilização moderna”. No relatório enviado para o coordenador de Assuntos Interamericanos, Compton destacou os objetivos puramente científicos da expedição, e relatou os experimentos realizados com balões na cidade de São Paulo e o sucesso do Simpósio Sobre Raios Cósmicos no Rio de Janeiro.
Na primeira fila, da direita para a esquerda, Compton, Carlos Chagas Filhoe Gleb Wataghin são respectivamente o 2º, 3º e 4º. Fonte: Arquivo Bernard Gross, MAST.
Antes mesmo da expedição ao Brasil, porém, as trocas de correspondência entre Compton e a sua comitiva revelam outro viés um tanto diferente: “O Departamento de Estado está muito entusiasmado por irmos como uma espécie de turnê de boa vontade; assim, a expedição é tão diplomática quanto científica”. Torna-se evidente que o interesse em vir ao Brasil em plena guerra não era apenas científico. Na verdade, o governo norte-americano havia requisitado à Universidade de Chicago, da qual Compton era professor, o envio de um grupo de expedições à América do Sul e ao México para fortalecer a colaboração com os pesquisadores em raios cósmicos naqueles países. Compton, então, foi visto como o cidadão capaz de conquistar o Brasil. Na tentativa de tornar a expedição ainda mais familiar, percebeu que seria oportuno levar as esposas para desbravar o Brasil juntamente com o seu grupo de pesquisa. Apresenta-se esposas a pessoas mais íntimas, amigos, como uma forma de estreitar laços já construídos. Mais um exemplo do aspecto cultural da expedição. A Missão Compton foi realizada com sucesso. Após o seu retorno aos Estados Unidos, Compton foi felicitado: “as pessoas que você conheceu olharão com um sentimento muito mais amigável para os Estados Unidos do que eles o fariam antes de você chegar lá”. Até então temos indícios de que a viagem de Compton ao Brasil parecia ter, também, um cunho diplomático. Ou seja, um esforço do governo norte-americano para cativar corações verdes e amarelos.
Em 1942, Compton fez uma declaração reveladora: “Tive uma conversa alguns dias atrás com o sr. Nelson Rockefeller, o qual disse-me que a nossa expedição, de acordo com os relatos que ele tem, foi a mais exitosa empreendida até agora no que diz respeito às boas relações entre as Américas”. Rockefeller liderou o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), órgão criado pelo governo norte-americano de atividade intensa entre 1941 e 1945, cuja finalidade era estreitar as relações culturais entre os Estados Unidos e a América Latina. A expedição Compton foi financiada pelo OCIAA e, como destacado pelo próprio Rockefeller, obteve êxitos diplomáticos de valores imensuráveis. Mas será que os físicos brasileiros tinham conhecimento do objetivo diplomático da viagem de Compton? Não apenas sabiam como, também, apoiaram-no. Compton destacou que o físico brasileiro “Pompéia foi o espírito mobilizador que tornou realidade o convite para a nossa missão de raios cósmicos no verão de 1941”. Wataghin também havia externado o seu apoio incondicional à causa dos Aliados, oferecendo-se para lutar contra os nazistas na frente russa.
Os “brasileiros corações”, na figura de Wataghin e Pompéia, estavam dispostos a serem conquistados e, obviamente, souberam usufruir da aliança com Compton. O Instituto de Física da USP, por exemplo, recebeu financiamento expressivo de fundações como a Rockefeller, tendo Compton como avalista. A nossa história ilustra a política de boa vizinhança adotada pelo governo norte-americano no intuito de estreitar as relações culturais com a América Latina no contexto da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, a viagem de Compton ao Brasil em 1941 foi muito mais diplomática do que científica. Foi uma tentativa de conquistar o povo brasileiro, e, consequentemente, de reduzir substancialmente a influência das potências do Eixo no Brasil.
Indianara Silva é professora do Departamento de Física da Universidade Estadual de Feira de Santana e Olival Freire Jr. é professor do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia.
* Este artigo é uma versão resumida de trabalho de nossa autoria, “Diplomacia e ciência no contexto da Segunda Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941”, publicado na Revista Brasileira de História, vol. 34, n. 67, pp. 181-201, 2014. O “brasileiros corações” é extraído do Hino ao 2 de Julho, referência às batalhas pela independência brasileira.
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