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Reportagem
As histórias que os mortos contam
Por Cassiana Purcino Perez e Simone Caixeta de Andrade
10/11/2014
30 de agosto, 2h30 da madrugada. A senhora M. vaga por ruas úmidas, que se iluminam ocasionalmente por relâmpagos. Um verão londrino inusitadamente frio e chuvoso. Pouco mais de uma hora depois, seu corpo é encontrado. M. sofreu um profundo corte na garganta e no abdômen. Todas as evidências que poderiam auxiliar a desvendar o crime estavam lá – sangue, impressões digitais, fios de cabelo, os mais variados fragmentos orgânicos –, testemunhas fiéis dos últimos momentos de M. e prontas para contar a história dos seus últimos momentos de vida. Vítima de um crime brutal, M., ou Mary Ann Nichols, é considerada por muitos a primeira vítima de Jack, que depois ganhou a alcunha de “estripador”. Em 1888, quando uma série de crimes assombrou Londres e cuja autoria era atribuída a Jack, o estripador, não se podia esperar nada além de um relato circunstanciado dos casos. O século XIX começava a testemunhar as mudanças no pensamento científico que iriam revolucionar a medicina, que passaria a se beneficiar de novas áreas, histologia, patologia e microbiologia, as quais alteraram a compreensão do corpo humano de forma irrevogável.

O último pedido: uma autópsia

Richard Prayson descreve em seu livro Diagnoses from the dead: the book of autopsy, que Napoleão Bonaparte, falecido em 1821, fez o seguinte pedido a seu médico particular: “Depois da minha morte eu desejo que você realize uma autópsia... faça um relato detalhado ao meu filho”. Napoleão há muito sofria com perda de apetite, fezes sanguinolentas e febre. A autópsia revelou claros sinais de câncer de estômago. Esse foi o primeiro registro do termo autópsia e, segundo matéria publicada na revista História Viva, fomentou teorias da conspiração, que defendiam que Napoleão teria sido envenenado por arsênico pelos ingleses. As conclusões definitivas só foram obtidas em 2007, com novas autópsias e com técnicas avançadas de patologia, que confirmaram o câncer gástrico como causa da morte, segundo resultados publicados na revista Nature Clinical Practice Gastroenteroloy & Hepatology. Quase duas centenas de anos depois da sua morte, não há dúvidas de que os mortos contam as suas histórias. Contudo, nem sempre as tecnologias à época estão prontas para compreendê-las.

A evolução do conhecimento sobre o funcionamento do corpo humano esbarrou em questões éticas. Segundo estudo publicado no Journal of Anatomy por Piers D. Mitchell e colaboradores, raramente cadáveres eram doados para dissecção anatômica na Inglaterra. O estudo demonstrou que os cadáveres eram vendidos por negociantes a estudantes de medicina ou simplesmente roubados de suas sepulturas. A prática perdurou nos séculos XVIII e XIX. No Brasil, a primeira autópsia foi realizada em 1855 e seus detalhes minuciosos foram publicados no jornal O Bom Senso, de Ouro Preto.

A página na internet Rise of Forensics, mantida pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, detalha que a medicina forense é conhecida desde 1600, quando tentava responder aos questionamentos da corte britânica. Se um corpo fosse encontrado num rio, por exemplo, teria sido alguém que havia se afogado ou seria uma vítima de um homicídio disfarçado?

Novas tecnologias
Os métodos de identificação dos cadáveres têm potencial para apontar suspeitos e desenhar o cenário do crime, através da associação entre pessoas, espaços e objetos. Esse potencial é explorado “nos casos de amostras de local de homicídio e violência sexual, onde comparamos o material com amostras de referência da vítima ou do suspeito”, exemplifica Rejane da Silva Sena Barcelos, superintendente de Polícia Técnico-Científica do Estado de Goiás e professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás.

A identificação por DNA, uma das técnicas mais avançadas, é um método caro e o principal objetivo é encontrar vínculos genéticos da vítima. Barcelos explica que é uma técnica utilizada na “identificação humana, em corpos carbonizados onde a identificação papiloscópica, a antropologia forense e a odontologia legal não conseguiram dar resultados. Processa-se a análise molecular utilizando a comparação do perfil molecular obtido na amostra da vítima com o perfil biológico obtido de amostras biológicas colhidas de parentes de primeiro grau da vítima”.

Barcelos destaca que “a resposta desse exame está intimamente relacionada com a qualidade e a quantidade de amostra disponível, pois amostras de locais de crime são exíguas e, na maioria das vezes, sem conservação adequada”, esclarece. “A melhor amostra para extração da molécula de DNA é a biológica, de sangue e tecidos moles. Qualquer amostra biológica que contenha células nucleadas pode ser utilizada como fonte para extração de DNA. Em casos de encontro de ossadas, a única alternativa é a análise dos ossos. Em caso de corpo em estado avançado de decomposição, a utilização dos dentes é uma alternativa”, completa.

Segundo Sergio Roberto Peres Line, professor titular da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o esmalte dos dentes pode ser usado no processo de identificação. A partir do estudo em animais com mais de 65 milhões de anos de idade, observou-se que um padrão alternante de bandas claras e escuras eram preservadas no esmalte dental. Essas bandas, chamadas de “bandas de Hunter-Schreger”, aparecem como faixas claras e escuras quando vistas sob forte iluminação lateral. “Funcionam como se fossem fibras óticas”, compara Line. “Essas bandas são particulares para cada dente e para cada indivíduo, como se fossem impressões digitais, podendo ser usadas para identificação humana. Mesmo em situações onde há alta temperatura envolvida ou alta fragmentação, a estrutura do esmalte é preservada”, explica Line.

As novas tecnologias auxiliam não só os casos de mortes recentes. Foi graças à tomografia computadorizada que uma múmia egípcia “residente” no Museu Britânico e com mais de cinco mil anos pôde ser dissecada, sem que nenhuma porção do seu corpo fosse removida. Ao mesmo tempo, as imagens adquiridas propiciaram um efeito de “autópsia virtual” com a visualização detalhada de estruturas internas. Análises feitas através de técnicas não invasivas são uma tendência. É o que propõe um estudo coordenado pela pesquisadora Raquel Fernanda Gerlach, da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e publicado no Journal of Archaeological Science. A nova técnica combina utilização de soluções ácidas por um curto período de tempo à coleta de peptídeos. Line, da Unicamp, esclarece que através da análise dos peptídeos, pode-se determinar o sexo, identificar ancestralidade e grupos diferentes, análises muito importantes para a antropologia forense.

Revelações do esqueleto
Não são só os cadáveres frescos que guardam segredos sobre sua vida e sua morte. Mesmo após passar pelo processo de decomposição dos tecidos moles e enfrentar intervalos de dezenas, centenas ou milhares de anos, os mortos ainda podem nos contar histórias. É isso o que têm mostrado dois ramos distintos da antropologia física: a antropologia forense e a paleoantropologia. A antropologia forense é a área do conhecimento que busca estabelecer a identificação de restos cadavéricos por meio de características do esqueleto que possam individualizá-lo, tais como ancestralidade (caucasiana, africana, asiática ou indígena), sexo, idade, estatura, destreza manual, além de algumas doenças, lesões e hábitos alimentares.

O Laboratório de Antropologia Forense (LAF) do Centro de Medicina Legal (Cemel) da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto tem trabalhado em cooperação com o Núcleo de Perícias Médico-Legais de Ribeirão Preto, subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, buscando acelerar e aperfeiçoar investigações criminais através de um protocolo de análises de ossadas desenvolvido há quase dez anos em parceria com especialistas da Universidade de Sheffield, no Reino Unido.

Embora os parâmetros usados para determinar a identidade de um esqueleto possam ser avaliados de forma universal, eles tornam-se mais confiáveis quando são analisados de maneira específica para populações diferentes. Pensando nisso, a pesquisadora do LAF/Cemel, Raffaela Arrabaça Francisco, vem desenvolvendo em seu doutorado um estudo para estabelecer referências nacionais de identificação. “Quando se sabe a ancestralidade do esqueleto, as chances de que as análises estejam corretas é bem maior. Por isso, estamos tentando verificar e estabelecer novos parâmetros para nossa população, que é tão miscigenada”, conta a pesquisadora.

Para estabelecer esses novos parâmetros, ela analisa ossadas de corpos não reclamados por familiares em um cemitério de Ribeirão Preto e compara os resultados de suas análises com as características conhecidas dos indivíduos mortos. Aplicando o protocolo desenvolvido em parceria com os ingleses, a equipe do LAF/Cemel consegue descobrir a identidade de até um terço das ossadas que chegam ao laboratório. A expectativa é que o trabalho da doutoranda ajude a aumentar ainda mais essa porcentagem.

Além do campo técnico, no âmbito criminal, a identificação de ossadas também cumpre um papel social ao auxiliar no esclarecimento de desaparecimentos. Caso haja familiares procurando por parentes com as características identificadas pela equipe do laboratório em um esqueleto, pode-se comparar o DNA para confirmar a identificação. “Se não há reclamantes, após realizarmos o exame, geramos um relatório com todas as informações e o mantemos arquivado, para o caso de algum dia o familiar dessa vítima vir a procurá-la”, explica a pesquisadora.

Utilizando-se de análises semelhantes à da antropologia forense, a paleoantropologia estuda os esqueletos humanos fossilizados buscando compreender como eram, fisicamente, nossos ancestrais. Em associação com a arqueologia, essa compreensão pode ir ainda mais longe, desvendando também aspectos sociais e culturais das sociedades pretéritas. É esse tipo de estudo que vem sendo desenvolvido no sítio arqueológico Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, desde 2001, pelo Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), da USP.

Em mais de uma década de escavações, um total de 35 sepultamentos humanos foram exumados na Lapa do Santo, fornecendo informações que vão desde a antiguidade dos primeiros povos do continente sul-americano, passando pelas afinidades morfológicas dessa população com outras populações ao redor do mundo, até aspectos de seu estilo de vida, tais como hábitos alimentares. Os dentes e ossos da face são partes fundamentais para compreensão da história de vida dos nossos ancestrais, e os seus hábitos alimentares podem ser conhecidos por essas estruturas. “Apesar do esmalte (do dente) ser a parte mais calcificada do organismo, ele é, do ponto de vista evolutivo, uma das mais plásticas. Pode mudar para se adaptar de acordo com o tipo de alimentação”, informa Line.

Segundo matéria da revista Ciência Hoje, na edição de agosto deste ano, os dentes dos esqueletos e múmias encontrados na região de San Pedro de Atacama, no Chile, apresentaram indícios de tártaro (cálculo salivar), lesões de cárie, falhas no esmalte dentário e desgaste na coroa dos dentes. Todas essas características contam a história do tipo de alimento consumido; quanto mais duro, como grãos, maior o desgaste nas coroas; quanto mais cárie, maior o consumo de milho, “base da comida no Atacama antes do contato com o império boliviano”.

De acordo com Line, “as variações na estrutura do esmalte ocorrem em escala de milhões de anos”. Assim, é possível identificar quais dentes encontrados em sítios arqueológicos são responsáveis por novas adesões à arvore genealógica humana. Segundo a edição especial da Scientific American Brasil, de outubro deste ano, um único fragmento de dente foi o responsável pela descoberta do Ardipithecus kadabba, um dos mais antigos hominídeos, A reportagem ainda destaca que “uma resposta à antiquíssima pergunta ‘Como cheguei aqui?’ já não está mais fora do nosso alcance”. Para responder a essa pergunta, a cultura do povo é tão ou mais importante que fragmentos do esqueleto.

Ritos de passagem
Desde 2011, as práticas funerárias dos primeiros americanos também entraram para o interesse das pesquisas desenvolvidas na Lapa do Santo, a partir de estudo desenvolvido por uma equipe multidisciplinar e coordenado pelo pesquisador André Strauss, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, da Alemanha, em parceria com o LEEH/USP. De acordo com Strauss, nenhum outro aspecto arqueológico apresenta maior potencial para revelar comportamento ritual e simbólico do que as práticas de sepultamento humano. “O funeral de um membro da sociedade sempre vem acompanhado de uma dimensão simbólica”, defende o pesquisador. No entanto, para encontrar padrões que possam permitir inferências sobre essa dimensão comportamental em uma população específica, é necessária a análise de um número significativo de sepultamentos. Strauss viu na Lapa do Santo essa oportunidade.

A análise dos sepultamentos humanos encontrados na Lapa do Santo mostrou uma diversidade de padrões, que variaram ao longo do tempo. Porém, “três padrões aparecem de forma mais consiste e segura, tanto do ponto de vista de sua idade quanto de suas características”, diz Strauss. O padrão 1, que compreende sepultamentos ocorridos entre 10.600 e 9.700 anos atrás, caracteriza-se pela presença de um único indivíduo em cada cova, enterrado com as pernas flexionadas e sem nenhuma manipulação do corpo. Já o padrão 2, praticado entre 9.600 e 9.400 anos atrás, ao contrário, apresenta ênfase na manipulação do corpo, com presença de desarticulação do esqueleto, cortes, queima, aplicação de pigmentos, reunião de mais de um indivíduo dentro da mesma cova e reorganização dos ossos segundo uma lógica de oposições binárias (osso de indivíduos jovens com ossos de indivíduos adultos; crânio e ossos do corpo; dentes soltos e alvéolos vazios). Strauss explica que “essa ênfase em pares de oposições, que marcavam os rituais funerários na Lapa do Santo, pode ser entendida como uma das mais antigas expressões dessa lógica binária (tão comum na cosmologia Ameríndia) que alguns antropólogos, como Claude Lévi-Strauss, acreditavam estar na base do próprio pensamento humano.”

A partir 8.600 anos até cerca de 8.200 anos atrás, a forma como o povo de Lagoa Santa sepultava seus mortos sofreu nova mudança e os indivíduos passaram a ser enterrados em covas muito apertadas e rasas, de formato circular. O esqueleto era totalmente desarticulado e os maiores ossos do corpo dos indivíduos adultos eram quebrados para caber no espaço exíguo. Strauss acredita que as características presentes nesses sepultamentos indicam que as mortes ocorriam longe do abrigo, provavelmente durante expedições de caça, e os restos mortais eram trazidos para ser enterrados ali. De acordo com o pesquisador, a elaboração de rituais mortuários que utilizam o próprio corpo do morto para expressar a cosmovisão do grupo reflete um alto grau de complexidade simbólica, ao contrário do que se pensava anteriormente em relação às tradições culturais dos povos do Brasil Central. Strauss foi capaz de mostrar, portanto, que os mortos de Lagoa Santa ainda têm muito o que nos contar.