No futuro, é possível que alguns se espantem ao pensar que em 2015 as pessoas não tinham a mínima ideia de quando iriam adoecer. Aparelhos eletrônicos conectados ao corpo poderão indicar as chances de um indivíduo desenvolver uma doença com base em grandes massas de dados e nas mudanças bioquímicas que acontecem no organismo. Poderão até acionar um alerta para o serviço de saúde em caso de emergência. Esse futuro está a cerca de uma década de distância, na visão de Alexandre Chiavegatto Filho, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
A grande massa de dados que irá subsidiar as informações médicas é o big data
. A saúde é um dos setores em que já é possível observar mudanças reais acontecendo, se considerarmos uma (das muitas) definições de big data: uma quantidade tão grande de dados que muda as análises tradicionais.
Nessas novas análises, os dados não estruturados como os rastros digitais que deixamos ao usar as redes sociais, o cartão de crédito ou o celular, estão sendo aproveitados na saúde. O Google Flu Trends e o Google Dengue Trends, por exemplo, consideram os termos usados no buscador para verificar tendências de casos de gripe e dengue ao redor do mundo. Mas as bases de dados como os censos demográficos ou os registros médicos do Sistema Único de Saúde, continuam sendo recursos valiosos. Ambos os tipos de dados podem ser confiáveis sendo testados por técnicas estatísticas, a questão é a qualidade dos dados e as metodologias utilizadas.
Mudanças na pesquisa
Laura Rodrigues, epidemiologista e professora da London School of Hygiene and Tropical Medicine da London University, participa de estudos em big data e compara o potencial para a saúde: “houve uma grande expectativa com a genética e o mapeamento do genoma humano, mas acho que não foram saltos tão grandes como se esperava. O big data vai ser um salto porque permitirá novas pesquisas e mais baratas”, afirma.
A quantidade crescente de dados gerados pela internet é um prato cheio para a epidemiologia, área em que o uso de dados eletrônicos vinculados tem tradição.
Na medicina clínica pode haver uma mudança maior com o uso do big data na orientação de tratamentos. Hoje, há opções de tratamento para uma mesma doença com pequenas diferenças entre elas, e não se faz ensaios clínicos porque são estudos de alto custo. Como explica a professora, para tratar uma doença pulmonar crônica, sabe-se que o antibiótico precisa ser dado por mais tempo no caso do paciente que tem enfisema. Porém, não há uma precisão sobre o quanto o tratamento deve se estender. Isso será possível com o big data, monitorando um grande número de pacientes, que inclusive poderão participar dos ensaios clínicos a partir da consulta médica, como propõem pesquisadores da Inglaterra. “Vai ajudar a refinar as diretrizes clínicas para muitas condições”, diz Rodrigues.
A epidemiologista comenta ainda que o big data vai facilitar a realização de ensaios clínicos, mas a regulamentação como no caso de vacinas, vai ter que ser feita da maneira tradicional. “Não acho que isso vá mudar”, diz Rodrigues.
Com o big data, novas questões sobre metodologias estão aparecendo. Volta a ser importante a pesquisa do tipo fishing expedition, quando se usa uma massa de dados para observar todas as associações e depois chegar a uma conclusão. Esse tipo de estudo já existia, mas perdeu lugar quando os financiamentos passaram a priorizar pesquisas orientadas por hipóteses.
Mas há uma grande questão nos debates sobre o tema, que é a privacidade dos dados, já que eles são individuais e têm uso coletivo no big data. Na pesquisa, a responsabilidade do cientista em proteger os dados de indivíduos será cada vez maior, segundo Chiavegatto Filho que recomenda: apagar dados que identifiquem as pessoas nos materiais de pesquisa, como nome e número de documentos e, assim, em caso de algum ataque hacker ou um descuido, evita-se o acesso à identidade desses indivíduos. Outra sugestão é a de acessar os dados originais remotamente em um terminal de acesso restrito, retirando somente as tabelas finais. É fundamental manter o antivírus em dia ou usar técnicas como a criptografia, para esconder os dados de possíveis invasores.
Laura Rodrigues lembra de outro ponto importante que é a exclusão de uma parte da população que não tem acesso às tecnologias que deixam esses rastros digitais; esse viés terá que ser considerado pelos analistas de dados.
Sobre isso, Chiavegatto Filho acrescenta que as metodologias tradicionais podem ajudar a lidar com o problema de amostragem em big data. É possível, por exemplo, atribuir pesos de acordo com a representatividade dos indivíduos, em relação à população de interesse na pesquisa. Conforme o uso de big data em pesquisas avança, novas e mais complexas metodologias de amostragem devem se desenvolver, diz o professor em artigo sobre o tema.
Apesar do otimismo e das boas intenções do big data na saúde, Sebastián Medina Gay, pesquisador associado da Escuela de Salud Pública da Universidad de Chile, destaca a relevância de se refletir sobre essas tecnologias no contexto de saúde em países latino-americanos, que se caracterizam por fragmentação e misturas público-privadas (com centros de atenção primária rurais e urbanos, hospitais de diversas complexidades, clínicas privadas, farmácias, administradores de recursos, ministérios de saúde etc.). Para o pesquisador, é preciso considerar os diferentes atores sociais no setor da saúde, seus interesses, e como essas tecnologias se transformam em agentes capazes de gerar efeitos, que podem até ser insuspeitos para seus próprios elaboradores, mas não necessariamente melhoram o sistema ou fortalecem o direito à saúde.
“Um dos desafios mais importantes é conseguir a integração desta grande variedade de atores para cumprir sua promessa de proteger o direito à saúde. Nesse sentido, ‘tomadores de decisão’ veem como uma possível resposta a incorporação de softwares que possam reunir dados sociodemográficos, econômicos e clínicos dos pacientes e logo compartilhá-los nos distintos pontos da rede de atenção”, diz Medina.
Para ele, uma das principais intenções de fundo do uso dessas tecnologias parece ser, na verdade, o controle dos grandes custos em saúde associados às duplicações de diagnósticos, tratamentos e provisão de medicamentos. “Assim, sem problematizar a pouca racionalidade, pertinência e sustentabilidade de nossos fragmentados sistemas de saúde, onde coexistem (sempre em tensão e assimetria de poderes) instituições e atores que não necessariamente estão interessados na proteção do direito à saúde, senão que se mobilizam pelo lucro associado ao aumento das atividades assistenciais”, afirma.
Mudanças operacionais
Ao se incorporar na saúde, o big data traz a necessidade de mudar os procedimentos que geram dados. Nesse novo cenário, os registros em papel precisam ser superados, mesmo aqueles digitalizados (há pouco tempo aprovados no Senado), segundo os pesquisadores da área. Além de serem pouco eficientes pela demora na coleta de dados, pode-se perder muitas informações pela dificuldade em entender a caligrafia.
Outro problema dos prontuários convencionais impacta diretamente na vida do paciente: o chamado viés de memória. Se um paciente é atendido em um bairro e no dia seguinte em outro, a informação do atendimento não é compartilhada, nem lembrada por ele, principalmente no caso do idoso. Um sistema integrado de informações daria acesso ao histórico de medicamentos, internações e exames. Pouparia tempo e gastos desnecessários, como ressalta Chiavegatto Filho.
Um artigo que reúne informações sobre a implantação de prontuários eletrônicos em diferentes instituições brasileiras conclui que ainda há resistência dos profissionais de saúde para usar novas tecnologias. Esse pode ser um sinalizador importante para as políticas de implantação desses sistemas.
Os prontuários eletrônicos representam registros em nível individual. Mas há também os dados gerados no contexto do sistema de saúde, como faz o DataSUS, provendo informações que já são usadas em análises de dados. Com mudanças recentes, a saúde suplementar também passará a gerar esse tipo de informação.
O Padrão TISS (Troca de Informação de Saúde Suplementar) é a norma obrigatória desde 2014 para que prestadores de serviços enviem dados de atendimento às operadoras que, por sua vez, informam a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O padrão vai gerar informações epidemiológicas como o número de atendimentos, de diagnósticos de doenças e procedimentos no setor privado, que até então não tinha um sistema integrado. Além de ser subsídio para pesquisas e políticas públicas, será possível identificar despesas, aprimorar o planejamento e reduzir custos no setor, que crescem de maneira exponencial.
Em agosto de 2015 a ANS apresentará um aplicativo que usará as informações do TISS como instrumento de transparência. O aplicativo mostrará a frequência de uso dos procedimentos realizados na saúde suplementar, destacando as informações por estado, faixa etária e o valor cobrado em cada procedimento.
“Em médio e longo prazo, os dados de atenção à saúde poderão ser incorporados ao Portal de Saúde do Cidadão, onde o usuário poderá ter acesso ao seu histórico de registros das ações e serviços de saúde, conferir as informações de suas internações hospitalares, dados sobre atendimento ambulatorial de média e alta complexidade, entre outros”, afirma Marizélia Leão Moreira, gerente-executiva de Padronização e Interoperabilidade da ANS.
Brasil precisará de analistas
Laura Rodrigues ressalta que o Brasil está em situação favorável pela tradição na produção de dados da rede pública e também da rede privada – que fornece registros como mortalidade, nascimento, notificações de doenças como o câncer, dados de exames preventivos como papanicolau e mamografia.
“O Brasil tem um potencial enorme para big data porque tem uma população muito grande, estável, e tem também uma tradição de dados eletrônicos. Isso não acontece na Índia, na China, e nem nos Estados Unidos porque lá o sistema de saúde é fragmentado. O Brasil está em uma situação única para avançar no big data em termos de saúde pública”, analisa a professora.
As redes sociais, por exemplo, já são usadas para monitorar doenças, como tem feito o Ministério da Saúde no Observatório da Dengue. Dados obtidos através de notificações das secretarias de vigilância também estão sendo usados, como acontece no projeto Info Dengue, no Rio de Janeiro. Há ainda pesquisas avançadas utilizando bases de dados estruturados como o cadastro único dos participantes dos programas sociais do governo federal. Junto com dados de educação e trabalho, entre outros, um estudo analisa impactos como a redução da mortalidade infantil na população de 100 milhões de brasileiros beneficiados pelos programas. O trabalho é liderado pelo professor Maurício Barreto, da Fiocruz-Bahia.
Para Chiavegatto Filho, o grande problema no Brasil é a falta de profissionais capacitados e atuantes em análise de dados. Outro gargalo é a avaliação sistemática de políticas públicas com evidências obtidas na análise de dados. Por exemplo, para avaliar o programa Mais Médicos, não se analisa apenas se ele chegou a todas as cidades, quantas pessoas atendeu, mas também a relação do programa com índices de mortalidade, amamentação etc.
O pesquisador conta que iniciou uma experiência de formação nessa área com um curso de verão de "Introdução à Big Data em saúde” realizado na Faculdade de Saúde Pública da USP. A primeira turma, em fevereiro de 2015, teve 21 inscritos. O curso será publicado na Coursera, plataforma de cursos online gratuitos (já há cursos disponíveis em inglês).
Laura Rodrigues acrescenta: “tem que começar e ter mais financiamento, nutrir esse movimento, criar colaboração entre departamentos de estatística, epidemiologia e tecnologia da informação. São barreiras a serem superadas”.
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