Em cada uma das 1,4 mil voltas que o primeiro satélite artificial enviado pelo homem, o Sputnik, deu ao redor da Terra, os incessantes sinais de rádio – ou beeps – enviados pelo aparelho demonstravam aos Estados Unidos quem havia vencido a primeira batalha da corrida espacial. Além disso, alertavam para a necessidade de reagir. O episódio tornou-se um marco porque traduziu eficazmente a natureza competitiva que transformaria o campo da ciência e da tecnologia. Ao singrar o céu em 1954, o bólido russo transformou-se em uma metáfora de uma empreitada de sucesso que tinha como ingredientes o esforço de uma série de cientistas de diversas áreas, investimento farto e a necessidade quase obrigatória de obter resultados positivos.
A união de diferentes áreas em prol da solução de um problema científico ou tecnológico passou gradativamente a tornar-se um modelo de produção do conhecimento e de uma ciência competitiva.
“Cada vez mais são exigidos equipamentos caros e sofisticados, e grupos mais numerosos. Sem isso, o poder de competir no cenário internacional fica reduzido”, explica João Evangelista Steiner, astrofísico e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Astrofísica. Ele comenta que, nas últimas duas décadas, o Brasil vem tentando melhorar tal interação. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso houve duas tentativas de acabar com o isolamento dos cientistas. O primeiro com o Pronex (Programa de Núcleos de Excelência) e, depois, com os Institutos do Milênio. Com a mudança do governo federal, a ênfase passou a ser nos Institutos Nacionais de Ciência (INCTs), a fim de apoiar as redes de pesquisa.
O cientista político Renato Boschi, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED) comenta ainda que o elo com as políticas públicas é fundamental. “É através delas que se dão as intervenções mais importantes do ponto de vista de alteração da realidade social. Dessa forma, a produção de conhecimentos não pode ser dissociada da definição de metas e dos meios para alcançá-las”. Ele complementa dizendo que a lógica da produção de conhecimentos pressupunha um isolamento a fim de assegurar resultados neutros. Cenário que já não existe na nova realidade integrada e refletida pelos multicentros. “Essa premissa é frontalmente questionada nessa nova perspectiva de se produzir ciência construindo pontes entre os resultados de pesquisa e sua aplicação prática”, disse. No fim, o objetivo das iniciativas parece sempre ser o mesmo: deixar de pulverizar investimentos e tratar cada pesquisador de maneira individual.
No melhor estilo do ditado popular “a união faz a força”, a história demonstra como a ciência tem tido, nos últimos séculos, uma trajetória de prática científica que passa – na maioria dos casos – por se institucionalizar para obter algum tipo de benefício para os atores. Com isso, alianças políticas e institucionais tornam-se fundamentais. Para o professor Márcio Barreto, físico e doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), são dois caminhos possíveis para se pensar em como a ciência se estrutura atualmente. “Há duas formas de integração das diversas áreas do conhecimento nas práticas científicas, uma delas bastante avançada e outra ainda incipiente: a primeira delas segue na direção da agregação de áreas afins que antes se desenvolviam isoladamente; a outra é a que busca o diálogo entre áreas mais distantes umas das outras na compartimentação tradicional do conhecimento, mais especificamente entre as ciências naturais e as ciências humanas”, disse. Barreto explica ainda que a primeira, calcada na transdisciplinaridade, acaba por gerar avanços nas práticas científicas e estruturas orgânicas de pesquisa e de colaboração. Já a segunda empaca na eterna briga entre hard sciences e ciências humanas – sendo que, para ele, a elasticidade da rede acaba por não resistir.
Ciência, dinheiro e fim de um estereótipo
Talvez a figura que mais represente a ideia de um cientista isolado em seu laboratório, elucubrando sobre leis gerais da natureza seja a do físico Albert Einstein. Naquela época, ciência era mais um objetivo intelectual e diletante do que uma profissão estabelecida e competitiva. Hoje a imagem é uma mera caricatura do cientista do início do século XX e não reflete o que se produz como ciência. Sobressaem-se os grandes grupos de pesquisa, trabalhando em parceria entre universidade, laboratórios e até mesmo empresas privadas. No entanto, o Estado ainda aparece como um grande parceiro.
Como lembra Renato Bosch, do Iesp, nem mesmo nos Estados Unidos, onde a independência científica é grande, existe intervenção. No Brasil, desde 2000, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) já investiu mais de três bilhões e 100 milhões em fomento a projetos de pesquisa – um aumento de cerca de 765% em uma década. “Centralização e controle não devem ser confundidos com autonomia na produção de inovações. O fato que esse processo se dê por algum tipo de intervenção do Estado não pode ser minimizado, porém. Coordenação seria a vantagem e a capacidade a ser desenvolvida nessa nova modalidade de se fazer ciência. Controle e centralização excessivos são os riscos”, aponta ele.
Por outro lado, Márcio Barreto afirma que o convênio entre ciência e capital é bem vindo, mas nem por isso está acima de críticas ou é realizado sem conflitos. A contradição, segundo Barreto, é que o capital quer simplesmente se reproduzir, enquanto que nem sempre os objetivos científicos estão alinhados com esse paradigma. “O capital é cada vez mais bem-vindo na irrigação do campo científico, de modo que, ao contrário de limitar a ciência, amplie suas possibilidades; no entanto, tudo se passa como se os avanços tecnocientíficos fossem desprovidos de valores e de interesses que vão além do conhecimento puro, e isso não é verdade.” Ele complementa afirmando que, em geral, se pensa o modelo científico por uma dupla via que une uma extremidade provedora de recursos e outra capaz de devolver os investimentos em benefícios tecnológicos. “Pouco se analisam as opções políticas e econômicas que determinam as direções em que as pesquisas vão. Em outras palavras, tudo se passa como se a ciência, em sua aliança com o capital, fosse imune às influências dos interesses das empresas”, exemplifica ele.
Aqueles que defendem com radicalidade a aliança entre ciência e capital desconsideram a politização da ciência e da tecnologia. “Logo vem à cabeça dos cientistas modernos que tal ponderação é ultrapassada e que pensar criticamente, por exemplo, a associação entre as empresas e a universidade é sinal de ignorância e de atraso: há quem fique de cabelo em pé só de ouvir alguém questionar se o capital não está se apropriando da ciência nas universidades”, aponta Barreto. Para ele, somente demonizar a união entre capital e ciência é um retrocesso nas iniciativas em que o modo de fazer ciência avançou por causa da corrida científica. Já para o físico João Steiner, a questão não é um jogo de estratégia, mas sim algo imperativo. “Não vejo nisso um jogo de vantagens ou desvantagens. A articulação em rede e uso de infraestrutura comum não ocorrem por opção, mas por necessidade de sobrevivência”. Pelo visto, os beeps ainda soam para os homens da ciência.
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