Já se foi o tempo em que valia o ditado “a pressa é inimiga da perfeição”. No mundo de hoje, nos transportes, na comunicação, no trabalho, e até no lazer, alta velocidade é uma exigência generalizada. Apesar disso, essa velocidade que rege o mundo atual não é única e nem a percepção das pessoas é singular. Vivemos em tempos múltiplos e em diferentes velocidades.
De acordo com Márcio Barreto, físico e doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a colonização da vida das pessoas por uma série de ocupações e atividades causa “a sensação de que não vivemos mais ou que as coisas ocorrem numa velocidade muito maior do que podemos apreender. Parece que não conseguimos mais ter a experiência”.
A alta velocidade que caracteriza o tempo hoje mudou a percepção de tempo das pessoas – pelo menos para a geração que não nasceu na era da internet e da comunicação digital. No livro A Condição Pós-Moderna, David Harvey aborda a compressão do tempo-espaço para compreender essa mudança. Harvey afirma que durante muito tempo na história da humanidade, o referencial que se tinha de velocidade era o da carruagem e do barco à vela, transportes mais lentos que davam ao mundo uma dimensão espaço-temporal muitíssimo maior do que a que se tem hoje. Num período de tempo mais curto, surgiram as ferrovias e barcos a vapor, que deram outros referenciais de velocidade e dimensões ao mundo. Finalmente, num intervalo de tempo muito menor, presenciou-se a criação dos jatos que ultrapassam a velocidade do som. A sensação trazida por essas modificações é de que o mundo ficou menor, porque se gasta bem menos tempo para percorrê-lo.
Para quem nasceu há 80 ou 50 anos atrás, e viveu um tempo definido de algum modo pela velocidade impressa nas possibilidades de comunicação e transportes dos anos 20 e 50 do século passado, não é de estranhar a sensação de velocidade e aceleração vivida nos dias de hoje, explica o sociólogo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) Osvaldo López-Ruiz. Nascido na Argentina, ele ilustra sua análise com a lembrança de uma canção de um conterrâneo seu, Atahualpa Yupanki, que diz: “a cavalo, pelo caminho, a gente vai chegando a uma pedra, uma árvore, um rio, uma casa... De avião, a gente não chega até chegar”. A perda da experiência é bastante simbólica da pressa e impaciência de quem viaja de avião.
Na vida das pessoas, em ritmo frenético, também falta tempo e espaço para desacelerar. Exemplo disso está nas formas de lazer, em como “aproveitam” o seu “tempo livre”. Márcio Barreto analisa o turista típico com a máquina na mão: “Ele olha tudo pela máquina e guarda aquilo pra viver depois. É um viajante preocupado em capturar todo tipo de experiência, mas paradoxalmente, não tem a experiência”. López-Ruiz acrescenta que ele troca a experiência da viagem por outro tipo de experiência tecnológica. “Fotografa-se a torre Eiffel porque não se tem tempo de parar e ver. Então só vou vê-la quando chegar em casa”, brinca ele.
Para Barreto, no capitalismo a equação “tempo igual dinheiro” só é possível se o tempo for linear, espacial, racionalizável, quantificável. Neste tempo pode-se pôr um preço. Isso é diferente quando se trata do tempo entendido como duração, que é individual; o tempo da experiência não tem um equivalente como a moeda. “A estratégia do capitalismo é nos manter conectado ao tempo linear, sem que haja espaço para o tempo vivido - explica ele - Tentamos preencher o tempo com pseudo-experiências, com experiências que não experimentamos, ou que experimentaremos no futuro”. É a idéia de que “amanhã vou ter tempo para ver as fotos e curtir a viagem”, completa López Ruiz.
Tempo como invenção
Pesquisadores do assunto se mostram unânimes: o tempo vivido hoje é invenção do capitalismo atual. Um tempo que mudou pela alta velocidade. É o tempo veloz, útil e inteligente de reprodução do capital. “O capital se reproduz mais rapidamente quanto mais se tira do tempo”, explica López-Ruiz. E o ritmo alucinado de trabalho extrapola para outras esferas da vida cotidiana. Como na lógica capitalista tempo é dinheiro, as pessoas procuram otimizar seu tempo. “Não é ruim ganhar tempo; é bom ganhar tempo”, pondera Barreto. “O ruim é não conseguir sair desta lógica”, afirma. López-Ruiz descreve a angústia causada por esse panorama: “O problema é que nunca se alcança um ponto ótimo de aproveitamento. Há uma suspeita permanente que o tempo poderia ser melhor otimizado, ou que poderíamos ter feito algo a mais para poupar o tempo”, diz ele.
Aproveitar o tempo tornou-se uma obrigação. Por isso também o tempo de férias tem que ser otimizado, preenchido com várias atividades. O ócio, valorizado pelos nobres na Idade Média, e contraposto ao trabalho, tornou-se estranho ao mundo contemporâneo, analisa López-Ruiz. O ócio perdeu seu tempo e seu espaço. Mas de certa forma está associado à expectativa de experiência no tempo futuro. O viajante que vai de avião a Paris teoricamente teria mais tempo para curtir a cidade, mas chegando lá ele sente que não tem tempo suficiente. “Conectado com a lógica de aproveitamento máximo do tempo, ele joga para o futuro a possibilidade da experiência”, explica López-Ruiz. Márcio Barreto sintetiza: “Ele reinveste”. Com isso, o tempo lento e tranqüilo da experiência vira uma ilusão. Na opinião dele, não se trata de tentar recuperar o passado, mas de descobrir aonde foi parar a experiência, ou de redescobrir outras formas de vivenciar o tempo.
Inseridas na lógica da alta velocidade, da aceleração, as pessoas têm pouco tempo para pensar no sentido da sua vida. Por isso, segundo López-Ruiz, tentar escapar dessa lógica é muito difícil. Para muitas pessoas, “implicaria debruçar-se sobre um vácuo, pois é como se estivessem viciadas. Fazer algo o tempo todo vira uma necessidade, mesmo que fiquem o reclamando que não têm tempo”, argumenta ele.
Isso é o que o psiquiatra Alexandre Augusto Paulucci, do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) também avalia. “Pelo avanço da psiquiatria e por essa cultura da rapidez, o que se vê hoje em dia é as pessoas querem pílulas mágicas. Elas não procuram tratamento e, quando procuram, geralmente querem uma resposta rápida para as coisas”. É uma forma de retro-alimentação do sistema: como num trem, a velocidade de um vagão puxa ou empurra a do outro. No cotidiano das pessoas, o corpo seria o limite, mas ele também entra na lógica. “Você precisa encontrar formas de otimizar o rendimento do seu próprio corpo, desde tomando anabolizantes, energéticos, até colocando próteses. A estratégia das pessoas é correr pra frente, nunca desacelerar”, explica López-Ruiz.
Paulucci vê a cultura da rapidez na maneira como as pessoas descuidam da própria saúde. O corre-corre, o acúmulo de funções e o excesso de preocupação e cobrança muitas vezes geram estresse e ansiedade, que precipitam doenças como aumento da freqüência cardíaca e da pressão arterial, do nível de açúcar, além de transtornos mentais, como depressão, quadro dissociativo, síndrome do pânico. Muitos sintomas somáticos, como formigamento, falta de ar, sensação de sufocamento, diarréias, dores de cabeça e fibromialgia, estão associados a fatores emocionais. Segundo Paulucci, resolver esses quadros muitas vezes requer mais do que remédios, isto é, psicoterapia, mudança de hábitos de vida, dieta equilibrada e exercícios físicos. Mas as pessoas não têm paciência pra isso. Quando têm, é porque se tornou mais uma obrigação do dia-a-dia, passa a ser uma atividade ou ocupação a mais para preencher o tempo ao máximo. Esse é o caso de executivos de grandes empresas, pesquisados por López-Ruiz: trabalham de doze a até quinze horas por dia, e acordam às cinco da manhã para freqüentarem uma academia.
Num estudo sobre a percepção da velocidade nas organizações, a doutora em psicologia social Maria José Tonelli, da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (Eaesp/FGV), captou uma pérola do depoimento de um desses executivos. Em sua avaliação pessoal, o ganho de velocidade propiciado, por exemplo, pelos computadores, é positivo, mas ele atenua que “isso talvez nos torne um pouco mais ambicioso com coisas que levam mais tempo para serem resolvidas, como com relações pessoais ou com a saúde. Você quer uma reposição imediata: estou resfriado, troque meu nariz, pronto, resolve!”.
Na opinião de Paulucci, com a alta velocidade de vivência do tempo, as relações pessoais ficam mais distantes. “Quando uma pessoa percebe que está deixando de dar atenção para os filhos e para a esposa, e até para si mesma, pode se sentir culpada, gerando angústia e desconforto mental. Mas ela não tem tempo para, ou não consegue, fazer uma reparação como deveria – com afeto. Às vezes acaba encontrando a saída de dar presentes, por exemplo, em vez de se fazer presente. Opta por soluções paliativas, rápidas. E a sensação de impotência às vezes acaba gerando sintomas somáticos”, analisa Paulucci.
Velocidade e liberdade
Para os executivos de alto escalão, mais fortemente inseridos na lógica veloz de reprodução capitalista, a possibilidade de diminuir a velocidade, sempre almejada para o futuro, é uma fantasia, avalia López Ruiz. “Primeiro porque estão condicionados e habituados a esse ritmo de vida, e também porque economicamente é muito difícil descer de patamar. Estão acostumados a um nível de consumo que depois não é fácil abrir mão”, explica ele. O contraditório é que o dinheiro ganho através de uma vida agitada proporciona uma sensação de liberdade que, na opinião de López Ruiz, é ilusória: “há uma sensação de liberdade, mas que não existe. Às vezes existe uma certa independência em termos econômicos, mas não sei se independência financeira pode se confundir com liberdade”, reflete. Paulucci concorda: “muitas vezes não está ao alcance das pessoas mudar o ritmo de vida. As pessoas têm poucas escolhas”. O estudo de Tonelli também apreendeu idéia parecida: na percepção das pessoas em seu cotidiano de trabalho, a velocidade tanto liberta e facilita, como aprisiona e limita.
Velocidade e desigualdade
Apesar de ser generalizada a idéia de que o mundo está girando mais depressa, e a sensação de falta de tempo, de que o tempo voa, de que perdemos muito tempo e de que nunca temos tempo suficiente para fazer tudo que desejamos ou que é preciso, a velocidade do mundo hoje não é única. Esta é uma idéia presente na análise de vários pesquisadores do assunto.
Em sua pesquisa com pessoas de diferentes níveis hierárquicos nas organizações, Maria José Tonelli conseguiu enxergar dois grupos: no primeiro estão aqueles que acessam, dominam e dispõem das novas tecnologias – são os executivos, velozes, ultra-rápidos; no segundo, aqueles que ficam alijados desse novo modelo – a faxineira e a copeira de sua amostra. Mas a divisão vai além. Maura Véras, socióloga e reitora da PUC-SP, num estudo sobre a cidade de São Paulo, deparou-se com assincronias urbanas: de um lado, a cidade da elite, em que o tempo é o do deslocamento rápido, seguro e protegido, cujo símbolo é o helicóptero; de outro, a cidade da pobreza, cujo tempo é lento, marcado pelo deslocamento pendular entre “a habitação e o trabalho”. O tempo da pobreza é o do transporte coletivo, do congestionamento e dos riscos. O perverso é que na metrópole paulistana, mesmo correndo pelas escadas rolantes das estações de metrô, a massa de trabalhadores leva horas para se deslocar entre a casa e o trabalho.
O tempo gerido pela velocidade de reprodução do capital e da desigualdade tem outras crueldades. Na avaliação do psiquiatra Paulucci, seus pacientes de classe social mais elevada estão mais sujeitos aos problemas de angústia e estresse relacionados à sobrecarga, à correria e à cobrança excessivas. Entre os seus pacientes de classe social mais baixa há, segundo ele, predominância de transtornos mentais típicos, aqueles popularmente associados à loucura. A tensão cotidiana com que convivem gira em torno de aflições muito concretas: como pagar o aluguel, se terá alimento para os filhos, se o barraco não vai cair, como será o amanhã. “Cada dia é uma luta, porque não têm perspectiva nenhuma. Quem está nesse quadro social vive numa tensão intensa”, completa. Num ritmo de vida mais lento, as pessoas desses estratos sociais também são vítimas, pela exclusão, da alta velocidade ditada pelo capitalismo.
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