Nos últimos
anos manifestações que vêm ocorrendo em diversas partes do mundo sinalizam uma
tendência crescente para um novo olhar sobre o tratamento dispensado pelos humanos
aos animais. Isso pode ser observado pelas proibições em algumas cidades ou
países do uso de animais em circos, ou mesmo em rodeios. Um exemplo que ilustra
bem essa tendência ocorreu, em 2010, quando o Tribunal de Justiça carioca
recusou um pedido de habeas corpus
feito por entidades protetoras de animais para libertar um macaco do zoológico
de Niterói (Rio de Janeiro). Apesar de não haver sucesso nessa solicitação
específica, em função da justificativa do relator de que um habeas corpus não é um instrumento
jurídico para proteger animais, o fato mostrou-se consonante à causa amparada
por pensadores como as filósofas Clare Palmer e Martha Nussbaum e o psicólogo
Richard Ryder, defensores do chamado abolicionismo animal.
O
estadunidense Gray Francione é considerado um dos pioneiros nesse assunto.
Doutor em direito, já publicou livros como Animal
as a person: essays on the abolition of animal exploitation (2008). O
debate que caracteriza esse cenário mostra sua amplitude quando, ao colocar em
questão o que significa um habeas corpus
para um macaco do zoológico, aponta uma maneira de questionar os limites do
sistema jurídico atual, aliada a uma forma de protesto político, que critica
uma tradição filosófica e cultural, que o direito apenas normatiza.
Segundo essa
tradição de séculos, os animais são inferiores aos seres humanos por não serem
dotados de razão, de palavra, de julgamento, de alma. Os seres humanos,
portanto, se autodefinem na natureza como seres opostos e superiores aos
animais.
A ideia de
superioridade do ser humano vem sendo encarada, nessa outra tendência de se
relacionar com os animais, como uma visão utilitarista e predadora, que
aprisiona os animais, mata-os e os mercantiliza de forma massiva, seja para
fins alimentares ou domésticos.
Nas últimas
décadas, o que se observa é que estudiosos e militantes estão dedicados a
discutir a criação de uma "ética animal". Essas pessoas, além de
reivindicarem a criação de leis que dotem os animais de direitos, formam
organizações políticas de proteção aos animais como o Animal Liberation Front
(ALF, criado na década de 1970) e o People for the Ethical Treatment of Animals
(Peta, criado em 1980).
No âmbito acadêmico, vem se desenvolvendo uma nova área
de pesquisas chamada "estudos animais". As investigações nesta linha
são interdisciplinares, envolvendo biologia, filosofia, direito, antropologia,
literatura e artes.
O panorama
que se apresenta na atualidade é, portanto, de uma nova visão de mundo, que
vislumbra os animais como seres merecedores de respeito tal qual os humanos,
com a proposta de mudar culturalmente o olhar tradicional predominante, que vê
os animais como meros objetos para uso humano. É o que afirma Alcino Eduardo
Bonella, professor de ética da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) que é,
também, membro da International Association of Bioethcis (IAB) e da Sociedade
Brasileira de Bioética (SBB).
Raízes desse novo olhar
A militância
pró-animais parece ganhar cada vez mais admiradores e pode se tornar um movimento
de forte impacto na sociedade nas próximas décadas. Num período de descrédito
das ideologias políticas, seria interessante pensar sobre as origens desse novo
olhar.
O sociólogo
espanhol Manuel Castells no livro A
sociedade em rede defende que, no final do século XX, houve uma
reestruturação do modo capitalista de produção que, dentre outras
consequências, trouxe mudanças sociais profundas como, por exemplo, um
remodelamento da “consciência ambiental”. Nessa nova estrutura social, os
movimentos sociais também teriam se modificado, tendendo a serem, de acordo com
Castells, fragmentados. Para ele, em um período histórico marcado por
expressões culturais efêmeras, deslegitimação das instituições e
desestruturação das organizações, cada vez mais as pessoas organizam
significados com base em movimentos sociais com objetivo único, encolhidos em
seus mundos interiores. Nessa sociedade de mudanças confusas e incontroladas,
as pessoas tenderiam a reagrupar-se em torno de identidades primárias:
religiosas, étnicas, territoriais, nacionais, buscando significação social.
Seria esta
uma explicação para a crescente ideia da militância pró-animal? Alcino Bonella
esclarece que a resposta a esta pergunta pode ser afirmativa, se olharmos para
a diversificação e organização de novos movimentos sociais e para a exploração
de novos rumos na democracia atual. Ele explica ainda que as raízes desse de
novo olhar estão no movimento de libertação dos animais, iniciado mais
fortemente na década de 1970, e atualmente presente em vários países na forma
de movimento em defesa do bem-estar e dos direitos dos animais. Para ele, tais
movimentos estão baseados principalmente na filosofia, em especial nas obras
pioneiras de Peter Singer (Animal liberation: a new ethics for our treatment
of animals), e de Tom Regan (The case
for animal rights).
Silvio
Negrão, veterinário e doutor em sociedade e ambiente pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) observa que esse movimento não tem uma ligação direta
com movimentos ambientalistas ou ecologistas, pois “muito se focou na
necessidade de se preservar e recuperar o ‘meio’ ambiente como uma fonte de
recursos naturais capaz de sustentar a vida humana por muitos séculos. A
preocupação com os animais selvagens ou não-domesticados apareceu muito depois
quando as filosofias políticas ambientalistas começaram a ser decifradas”.
Para Bonella
também não há muita ligação entre o movimento de libertação animal e o
ambientalista. “Há até certo estranhamento porque, por exemplo, os defensores
dos direitos animais estão interessados em direitos individuais, como o direito
individual de não ser aprisionado, enquanto os ambientalistas estão falando em
preservação de espécies”. Haveria certa aproximação entre os dois movimentos
depois de 2000, quando ambos passaram a criticar a exploração capitalista
exacerbada do meio ambiente e o aprisionamento de animais, afirma Bonella.
Sobre esta
questão, o biólogo e doutor pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), André Luis de
Lima Carvalho, afirma que há pontos em comum entre as preocupações
ambientalistas e as da ética animal, mas também pode haver divergências
bastante significativas. Uma das convergências é o questionamento – e o alerta
– a respeito da atitude predatória, gananciosa e destrutiva com que o poder
econômico e a alienação voluntária das pessoas trataram, historicamente, o
mundo natural. “A tendência das agendas ambientalistas é a de adotar uma
perspectiva que permanece antropocêntrica, na qual a preservação ou conservação
dos ecossistemas mantém-se, em última análise, atrelada ao valor meramente
instrumental desses ambientes naturais para a continuidade da existência humana
e sua qualidade de vida”.
Carvalho
exemplifica com o caso da construção da usina de Belo Monte, afirmando que os
ambientalistas se preocupam acima de tudo com os chamados impactos ambientais
em termos de biodiversidade, mas não é uma questão ética para eles saber
quantos milhares ou milhões de tamanduás, antas, pacas, macacos, aves, lagartos
ou cobras terão suas vidas ceifadas, morrendo afogados nesse processo (com um
entendimento de que cada indivíduo dessa população é digno de
consideração moral, um semovente cuja vida possui valor em si mesmo).
“Nesse ponto
vê-se um problema no que diz respeito à legislação de nosso país. Os interesses
dos animais estão inscritos dentro da legislação ambiental, e não de uma
legislação mais específica, que contemple os direitos dos animais como
indivíduos e não a mera proteção das espécies da extinção. Uma das implicações
práticas disso é que criam-se brechas para esforços de retirar os animais
domésticos e de fazenda da esfera de proteção da lei, já que cães, gatos, bois
e porcos não se encontram sob risco de extinção”, observa Carvalho.
Nasce uma nova forma de se relacionar com a
natureza?
Para Sonia
Teresinha Felipe, filósofa da UFSC, a centralidade e importância dos animais no
movimento de defesa de seus direitos tem a ver com uma nova consciência dos
humanos em relação ao fato de que são, também, animais.
Nesse
sentido, o veterinário Negrão destaca que a crescente onda de individualismo e
isolamento no mundo moderno reforça a necessidade dos seres humanos estarem em
contato com outros seres (que sejam ou não humanos), aumentando, assim, a
ocorrência e a intensidade de relacionamentos entre nós e algumas espécies
animais. “Observa-se, na prática, que todos esses fatores têm contribuído para
um número maior de pessoas adotarem animais de estimação para compartilhar sua
vida e dirimir sua solidão no intuito de encontrar no animal de companhia o
amor incondicional”, lembra.
Por
consequência, na maioria das vezes, ocorre uma antropoformização dos animais,
que passam a ser encarados e tratados como se fossem dotados de atributos
humanos esperando-se que reajam da mesma forma que seus proprietários ou
responsáveis. “Deve-se levar em consideração que cães e gatos estão assumindo
grande importância na manutenção da saúde mental e até mesmo física das
pessoas. Como consequência, cada vez mais os animais são considerados membros
da família, e até mesmo substitutos de filhos e outros familiares. Muitas vezes
essa convivência pode ser nociva ao ponto de gerar transtornos comportamentais
nos animais”, afirma Negrão.
Para o
biólogo Carvalho, atualmente, a imensa maioria das pessoas continua agindo e
pensando como se tivéssemos o direito de explorar os animais conforme nossos
interesses e conveniências. O pesquisador da Fiocruz explica que ainda vivemos
sob um paradigma social antropocêntrico (reforçado pela mídia, políticos e
intelectuais), que estabelece que o homem continua sendo a medida de todas as
coisas. “A preocupação com o aquecimento global, por exemplo, é apresentada aos
olhos públicos acima de tudo como um risco para a continuidade da espécie
humana. É preciso que compreendamos de vez que os animais estão no mundo conosco,
e não para nós”, esclarece o biólogo.
“Os
discursos morais vigentes enfatizam a importância da justiça social, da
cidadania, do respeito às diferenças individuais e culturais, o combate às mais
variadas formas de discriminação – sexismo, racismo, homofobia – mas os animais
geralmente não são contemplados com dignos de direitos – tema que ainda é
motivo de chacota”, defende Carvalho.
Ele ainda
destaca que, aos poucos, e a duras penas, vêm sendo superados o racismo, o
sexismo e, agora, o também o chamado “especismo”, que pode ser definido como a
atitude de negar o valor e o direito a uma vida digna a um indivíduo
simplesmente por este não pertencer à espécie humana. A ideia da singularidade
humana vem caindo por terra, na medida em que os estudiosos do comportamento
animal vão revelando a existência de capacidades cognitivas e sensibilidade
emocional em cães, macacos, corvos, papagaios – “uma lista de grupos
taxonômicos e faculdades mentais que só tende a aumentar, evidenciando a
afirmação de Charles Darwin de que as diferenças entre a mente humana e a mente
animal são diferenças de grau, e não de tipo”, afirma.
Segundo
Felipe, “tendo consciência de si, os humanos podem rever todos os demais
conceitos em relação ao que é a natureza, e mudar sua forma de se relacionar
com ela e consigo mesmos, especialmente ao voltar a ter noção do quanto estar
vivo na condição animal representa de dor e sofrimento, sem discriminação de
espécies”.
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