Erich
Fromm (1900-1980), psicólogo e filósofo alemão, já proclamava em seu livro Ter
ou ser (1977), que uma das principais premissas psicológicas que
sustentavam as sociedades industriais era a de que “o culto do eu, o egoísmo e
a voracidade” seriam essenciais para o funcionamento do sistema, e essenciais,
portanto, para a obtenção de harmonia e paz. A partir daí, a avidez por
dinheiro, fama e poder tornara-se o tema dominante da vida. Em suas palavras,
“o homem moderno é incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que não
esteja centrada na propriedade e na avidez”.
Essa
tendência parece ter-se realmente arraigado e se mantém visivelmente manifesta
na época contemporânea. Mas, em que medida o cenário atual da vida nos grandes
centros urbanos está marcado por tal concepção de mundo? A qualidade de vida
nos ambientes urbanizados está se deteriorando em virtude da progressiva
incorporação desse tipo de pensamento ao nosso cotidiano?
Qualquer
resposta imediata a essas questões corre o risco de se mostrar incompleta.
Diversos são os aspectos a serem analisados se quisermos traçar um panorama de
como as relações na moderna sociedade ocidental vêm se transformando, e os
impactos disso na própria atribuição de sentido às nossas vidas. Entre eles, é
válido analisarmos – dada a inegável relevância – as questões dos deslocamentos
e do acesso (ou falta dele) a bens culturais como possíveis impulsionadores de
uma cultura individualista e marcada, em não raros momentos, por ódio e medo.
Parados
em máquinas velozes
Aspecto
primordial a ser discutido, o trânsito nas grandes cidades nos impacta
fortemente, reduzindo as possibilidades em nossas vidas. Um modelo de
urbanização marcado por interesses de classes abastadas nas grandes metrópoles
está diretamente relacionado às segregações espaciais nas cidades. “Em grandes metrópoles, como São Paulo, por
exemplo, o automóvel se coloca no centro de um embate sobre o acesso ao espaço
público e à própria cidadania”, diz Marco Antônio Sávio, historiador e
professor da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, da Universidade
Federal de Uberlândia. Segundo ele, o privilégio ao automóvel é um
contrassenso, uma vez que se espelha num modelo de sociedade centrado no
indivíduo (típico do século XIX), que, no entanto, se proliferou numa sociedade
de massas, como é a dos séculos XX e XXI. Para ele, o acesso das pessoas ao
espaço urbano é uma expressão da própria cidadania. “No caso brasileiro, o
automóvel sempre foi o símbolo de uma modernidade excludente que via o espaço
da cidade como exclusivo de determinados grupos e, assim, se manteve ao longo
do tempo. Isso se refletiu na dificuldade de implementação de políticas
públicas de transporte que beneficiassem o transporte público em detrimento do
individual”, diz. “O resultado disso é uma qualidade de vida cada vez pior e a
segregação do acesso à cidade a grandes contingentes da população”.
Conforme
expõe o professor da UFU, na última década, a cidade de São Paulo (objeto de
análise recorrente dentro da temática) investiu bilhões na reforma das vias
marginais e construção de pontes e viadutos visando à solução de problemas
pontuais de fluxo de carros. Segundo Sávio, tais medidas resultaram numa
melhoria diária ínfima – da ordem de 2km/h – na média de velocidade em horários
de pico. “Os grandes investimentos e os resultados parcos tornam injustificável
os gastos com a ampliação de vias e a aposta no transporte individual”, avalia.
Marco
Antônio relata que, desde princípios do século XX, as cidades passaram a ser
efetivamente pensadas para os automóveis. “No Brasil, a história do automóvel
deixa claro a sua relação com o poder desde os seus primórdios”. Frases
conhecidas de políticos ilustres, como “governar é construir estradas” ou
“congestionamento é progresso” são uma prova de como o automóvel – e toda a
mentalidade individualista contida nele – ditou e continua ditando os rumos das
políticas públicas de mobilidade.
“Ao
observarmos isso e a resistência por parte de grandes fatias da população em
políticas que restrinjam o uso dos automóveis, fica claro que a questão do
espaço da cidade e o acesso das pessoas ao mesmo é uma questão mais ligada à
história do desenvolvimento urbano, à história das instituições e à forma como
é encarada a relação entre o público e o privado”, enfatiza, adicionando que
uma das decorrências desse processo é que, numa sociedade como a nossa, em que
o automóvel é visto como símbolo de status e de ascensão social, quaisquer
legislações que visem à regulação do tráfego, ainda que bastante racionais, são
sempre recebidas com repulsa. “Escândalos envolvendo a não ampliação de
sistemas de transporte de massas, como o metrô, são vistos como um problema
menor, mas qualquer tentativa de se restringir o uso de automóveis, mesmo em
algumas poucas vias em momentos determinados, é alvo de violentas
críticas”. “Esse é o dilema de nosso
tempo. Buscamos cidades mais justas e humanas, mas não queremos abrir mão exatamente
do que as torna mais injustas e desumanas, ou seja, o automóvel”, conclui.
O
acesso aos bens culturais
Num
mundo em constante transformação e marcado por evidentes desigualdades, o
acesso aos chamados bens culturais é um aspecto a ser considerado se quisermos
avaliar a qualidade de vida. Temos acesso, hoje, à mais ou menos cultura do que
tínhamos há algumas décadas (ou séculos) atrás?
Segundo
Michel Nicolau Netto, professor e pesquisador do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp, há um crescimento, e não uma diminuição, no acesso
aos bens culturais, o que independe, a princípio, de classe social. O que
ocorre é que esses bens não estão, necessariamente, ligados às instituições
tradicionais de arte, como teatro, casas de shows, museus, cinemas ou mesmo
elementos como discos ou livros. “Um dos lugares onde as pessoas mais ouvem
música é nas igrejas”, pontua Netto, fornecendo exemplo de uma nova instituição
de bens culturais. Outro exemplo é a internet, onde serviços de
compartilhamento e assinatura de filmes e músicas desbancaram discos e fitas.
Entretanto, essas novas instituições culturais são, como ressalta, “de difícil
quantificação” e, portanto, não é simples avaliarmos o quanto de cultura
artística é consumido por essas vias.
Mas,
afinal, temos acesso a bens culturais melhores ou piores que antes? “Não há uma
arte pior hoje do que ontem”, ressalta Netto, “existe uma modificação no que
entendemos como arte que tem muito a ver com uma certa quebra dos padrões entre
alta e baixa cultura”, estabelecidos desde o século XIX, mas que hoje se
perderam. O que entendemos por arte hoje é outra coisa do que entendíamos
antes; há abertura na conceituação. Existe, pontua, um processo de
“artificação”, em que vários elementos que não eram entendidos como arte passam
a ser: “ a arte da gastronomia, a arte de viajar, a arte do design”,
exemplifica. “Não acho que exista uma perda de qualidade, o que existe são
novas formas de compreensão sobre arte e uma relação mais presente com o
mercado”, avalia. O que não significaria, necessariamente, uma perda de
qualidade.
O que
há, por outro lado, – e aí entram questões voltadas às classes sociais – são
níveis diferentes da amplitude de acesso aos bens culturais. Tais questões,
segundo o professor da Unicamp, “envolvem uma série de limitações que, não
necessariamente, são absolutas, mas podem ser diferenciadas”, no sentido de que
há barreiras econômicas, sociais e técnicas que forjam acesso diferenciado à
cultura.
Tais
diferenças no acesso aos bens culturais impactam de maneira importante na
formação da individualidade e singularidade dos cidadãos. “Quanto mais
restrição as pessoas têm aos acessos à cultura, há uma tendência de a cultura
que está mais acessível ser a cultura de um grupo mais restrito”, pondera
Michel. “Se eu não consigo acessar uma série de bens culturais, eu tenho tendência
a reproduzir os bens culturais que a minha família e amigos próximos conseguem
me colocar à disposição”, e conclui, “o acesso interfere na individualidade e
na singularidade numa ligação direta à possibilidade ou impossibilidade de
emancipação ou reprodução de seu espaço social.”
Exclusão
e segregação na base da cultura do ódio
Como
suscitado pela análise dos dois elementos (mobilidade e acesso a bens
culturais) apresentados, a segregação de classes dá-se em vários níveis e é,
aliás, uma marca de nossa sociedade. De acordo com Michel Nicolau Netto, “a
sociedade brasileira é mestre em fazer com que as pessoas não se misturem”, o
que se dá, segundo ele, “criando uma série de elementos para as pessoas de
certas classes mais privilegiadas para que elas não precisem conviver com
outras classes”. Esses elementos, comenta, seriam o acesso a veículos
automotores individuais, plano de saúde e escolaridade privados, entre outros,
vistos como direitos, independentemente dos impactos que isso venha a ter num
contexto social mais amplo.
Nicolau
Netto declara que as pessoas tendem a se agrupar em função de características
comuns, como classe social, proximidade espacial e predileções culturais, o que
é natural das sociedades humanas. No entanto, é indispensável que haja contato
entre grupos com diferentes visões de mundo para que possa ser construída uma
relação minimamente harmônica. “Você só cria tolerância ritualizando o
compartilhamento de culturas”, comenta.
Como concorda
o historiador Marco Sávio, “quando há uma conjunção numa cultura do automóvel
que elogia o transporte individual como símbolo do sucesso e da modernidade,
quando existem formas claras de segregação espacial na cidade, com a criação de
guetos servidos por equipamentos urbanos e outros desprovidos de tais serviços,
a cidade se organiza ao redor dessa exclusão”. O professor da UFU ressalta que
a cidade é o espaço inevitável de algum nível de conflito, o que se deve ao seu
caráter democrático. “Quando se tenta cercear o acesso à cidade, os conflitos
naturais causados pelas diferenças que a cidade abriga se tornam mais radicais.
Em outras palavras, quanto menos nós aceitamos a diferença, quanto mais
cerceamos o direito ao uso do espaço público, quanto mais desejamos
privatizá-lo, maior é o conflito”, afirma.
Segundo
Sávio, em todas as cidades do mundo há um ambiente de conflito permanente em
algum grau. “No entanto, esse conflito se torna violento e pouco civilizado
quando se tenta segregar o outro”, acrescenta, citando os condomínios no Brasil
e os subúrbios nos Estados Unidos como sendo “sinais desses processos de
exclusão que resultam em violência”.
Como
analisa o professor Netto, da Unicamp, um elemento novo e extremamente
relevante nesse contexto são as redes sociais. Essas se destacam no atual
cenário por terem a capacidade de intensificar o comportamento de agrupamento
das pessoas por afinidades de ideias, propiciando a formação das chamadas
bolhas digitais. “A cultura do ódio passa a ter certa legitimidade, porque as
pessoas circulam suas visões nas redes sociais em torno de grupos que têm as
mesmas visões, o que faz com que elas lhes pareçam verdades”. Segundo constata,
quando saem das bolhas digitais e vão para a rua, acham que podem reproduzir o
que experienciam nas redes sociais. “A cultura do ódio é um processo social que
se observa, no Brasil, extremante incentivado pela forma de organização de
opiniões e visões de mundo nas redes sociais, que é levado para fora delas numa
forma que, muitas vezes, reproduz essas bolhas, mas que, quando não reproduz –
afinal, você é obrigado a entrar em uma rodoviária, aeroporto etc e encontrar
pessoas que não têm a mesma visão – cria uma série de conflitos que se torna um
problema social”.
Pesquisas
sugerem que a internet não diminuiu os encontros presenciais entre as pessoas
(ao contrário do que, erroneamente, às vezes somos levados a pensar), não
existindo, portanto, nesse sentido, um empobrecimento nas relações
interpessoais. Não obstante, a internet faz com que as pessoas passem a formar
“blocos” de convivência, nos quais as opiniões sejam mais homogêneas. “As
relações não se tornam empobrecidas, mas menos criativas e menos diversas, o
que acaba levando a uma intolerância maior. Isso se dá porque há uma troca menor
entre visões de mundo”, coloca.
De
acordo com Netto, precisamos nos habituar a encontrar pessoas diferentes, para
que os encontros, quando ocorram, não se deem de maneira conflituosa. “A noção
de tolerância não tem que se dar no nível da anexação ou mesmo da aceitação do
outro, mas você tem que se habituar a conviver com aquilo. Esse hábito de
convivência vai permitir uma certa forma de tolerância que torne o diálogo
possível, inclusive para permitir que as pessoas se modifiquem”, finaliza.
Nesse
sentido, o professor Marco Sávio é direto: “O ódio, a violência, os
congestionamentos, os conflitos na forma como se apresentam, são os resultados
de nossas escolhas, não de forças endógenas incontroláveis”.
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