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Reportagem
A versão biológica da dor
Por Susana Dias
10/05/2007

Para que serve a dor? As respostas podem ser muitas, assim como são inúmeras as sensações e percepções dolorosas. Para encher a paciência, tirar o sono, quebrar a rotina, produzir uma desordem na vida. Para punir, disciplinar, purificar e até entender a dor do outro. Também para conhecer os limites, superar desafios e saber onde começa o prazer. E, ainda, para lembrar que estamos vivos, ou que é preciso parar, descansar, ir ao médico, ouvir o grito silencioso dessa desagradável sensação.

Para a maioria dos médicos, biólogos e enfermeiros, entretanto, a dor é um sinal de alerta para um perigo iminente. A principal função da dor seria a proteção do organismo. Mostrar os limites que não podem ser transgredidos. O exemplo mais clássico citado é o da mão que encosta na chapa quente e, rapidamente, é retirada devido a eficácia da via sensorial específica para a dor (a via nociceptiva, noceo quer dizer nocivo).

A dor é sempre associada a fenômenos neurofisiológicos, que são considerados iguais para todos os seres humanos. Já as diferenças nas experiências e descrições dolorosas seriam explicadas por elementos psicológicos, sociais e culturais presentes nas formas como se percebe e se vivencia a dor.

Insensibilidade à dor

Parte dos estudos sobre a neurofisiologia e evolução biológica da dor partem de pesquisas com pessoas que têm uma síndrome chamada de analgesia congênita. Com insensibilidade à dor, parcial ou total, essas pessoas não têm o sistema de alerta da dor. “É dramática a vida dessas pessoas”, relata o pesquisador Carlos Amilcar Parada, do Departamento de Fisiologia da Unicamp, que acompanhou um paciente na França com essa síndrome. Elas precisam viver em um ambiente modificado, como se fosse uma bolha, porque correm o risco de se lesionar o tempo todo. As crianças com essa síndrome machucam-se com frequência, têm escoriações, ferem língua, lábios, bochechas, até fraturas ósseas ou dentárias, e nada sentem. Também é comum apresentarem infecções que só são percebidas quando em estágio avançado. Mas o indício mais curioso, ressalta Parada, é que essas pessoas têm os movimentos mais grosseiros, não aprendem a se movimentar direito, por não terem o feedback do ambiente com a sensação da dor. “A sensação da dor é importante para o desenvolvimento do nosso sistema nervoso, por incrível que pareça, ela tem essa função”.

Para José Tadeu Tesseroli de Siqueira, cirurgião-dentista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), as constatações sobre essa síndrome são uma “prova da importância da dor para a sobrevivência do indivíduo”. Por meio da dor aprenderíamos a não ter dor. Essa função estaria diretamente ligada ao processo evolutivo da espécie humana. Na escala evolutiva animal a dor é uma sensação importante, não propriamente a dor que sentimos, mas uma sensação de perigo, que faz com que os animais fujam, se afastem do perigo. A dor, assim como o prazer, são sensações que teriam atuado de forma fundamental no desenvolvimento e sobrevivência da espécie humana no processo de evolução biológica.

Entretanto, se há dores que podem ser associadas a um mecanismo de defesa do organismo, há outras que escapam a essa definição e que não apresentam nenhum papel “pedagógico”, nem “evolutivo positivo”. Enquadram-se nessa classificação as dores resultantes de trauma, infecção, isquemia, doença degenerativa, invasão tumoral, injúria química ou irradiação, que levam à compressão ou lesões no sistema nervoso na coluna vertebral. Essas não são dores agudas que desaparecem após o tratamento, mas dores crônicas que persistem por no mínimo três meses. Também as cefaléias (dores de cabeça) sem lesão identificada; as chamadas “dores de crescimento”, relatadas por crianças e que não têm explicação científica; as dores fantasmas, que acometem as pessoas que amputaram um membro; e as dores da depressão, que podem até levar ao suicídio. Dores que desafiam os médicos e cientistas e provocam incapacidade para realização das atividades mais corriqueiras. Por outro lado, também existem sérios processos patológicos não dolorosos, que sugerem que, se a dor pode avisar da existência de problemas, a sua ausência não garante a saúde plena do organismo.

Oposições clássicas em jogo

A dor é um fenômeno que marca as oposições da maneira ocidental de pensar, tais como: físico e psicológico, objetivo e subjetivo, positivo e negativo, individual e social, natural e cultural. Isso porque, como constata Schuyler Henderson, da University of Illinois, no artigo “A complicada natureza da dor”, as “pesquisas médicas têm nos proporcionado rica compreensão nos mecanismos da dor, mas a fisiologia dos nervos e anatomia dos dermátomos não conseguem explicar a experiência da dor”. Embora a investigação fisiológica seja importante, ela não pode mais ser reduzida à fisiologia, ressalta ele, concluindo que “a dificuldade de falar sobre dor, e compreender a dor de outra pessoa, resulta de sua complicada origem como função de nosso corpo e de nossa identidade”.

Na biologia, explica Carlos Parada, a compreensão da experiência passa por entender a diferença entre “sensação” e “percepção” dolorosa. Segundo ele, embora o sistema sensorial seja sempre ativado quando há estímulos, algo pode acontecer no cérebro para que não se perceba a dor. A ativação da via nociceptiva, quando em contato com a água quente, por exemplo, faz com que a sensação da dor chegue até o Sistema Nervoso Central (SNC). Lá, essa sensação é transformada em percepção da dor, uma espécie de interpretação do cérebro à ativação da via sensorial nociceptiva. Essa interpretação varia de pessoa para pessoa, às vezes na mesma pessoa de um momento para o outro, conta o professor da Unicamp. É por isso que, “tecnicamente, podemos dizer que a dor não foi percebida, embora possa ter sido sentida. A dor, embora seja resultado de um estímulo do sistema sensorial, é mais complexa do que isso. A dor é uma interpretação mais elaborada e envolve fatores cognitivos, sensoriais, culturais, motivacionais”, argumenta. O grau de intensidade da dor não é diretamente proporcional à quantidade de tecido lesionado. Muitos fatores podem influenciar a sua percepção: “fadiga, depressão, raiva, medo, ansiedade e sentimentos de desesperança ou desamparo”. Estes são os termos usados no “Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas: uso de opiáceos no alívio da dor crônica”, disponível no site da Sociedade Brasileira de Nefrologia.

Luc Vandenberghe, do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Goiás, lembra ainda que a dor também ocorre em casos em que não há um ameaça direta ao organismo. “Uma pessoa profundamente triste pode sentir dor no peito. O estresse pode ser sentido como dor na cabeça. Problemas que uma pessoa carrega podem ser sentidos como dor nos ombros etc”, exemplifica. Mas mesmo nesses casos, ressalta ainda o pesquisador, a dor sinaliza que há algo nos prejudicando, e que temos que agir para mudar nosso contexto de vida.

É na diferenciação que se faz entre sensação e percepção que é possível perceber, como tem sido explicitado pelas ciências biológicas, os limites e relações entre natural e cultural, objetivo e subjetivo, individual e social, na experiência dolorosa. A sensação da dor apresenta-se como a parte natural, individual e objetiva do fenômeno, já a percepção da dor consistiria na dimensão cultural e subjetiva da dor. Não há, entretanto, consenso sobre essas afirmações fora do campo da biologia. A antropóloga Cynthia Sarti, professora do Centro de Estudos em Saúde Coletiva (Cesco) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), argumenta que considerar a dor como um fenômeno sócio-cultural supõe considerar o corpo como algo que não existe fora do social, nem lhe antecede. “O social constitui o corpo como realidade, a partir do significado que a ele é atribuído pela coletividade. O corpo é 'feito', 'produzido' em cultura e em sociedade”, defende. As preocupações de Sarti se situam especialmente nos processos de intervenção das várias instituições sociais sobre os corpos, exemplarmente analisados pelo filósofo francês Michel Foucault.

É nessa direção que Henderson manifesta-se preocupado com a noção biológica de que dor resulta da transgressão a alguma regra. A dor como alerta e limite abre brechas para se relacionar dor ao caráter moral e comportamento social das pessoas, considerando-as negligentes e/ou transgressoras. Ele comenta que essa é uma característica dos textos sobre a dor literários e religiosos, mas que deveria ser evitada nas práticas médicas. “Uma olhada mais além mostrará recentes afirmações de que a Aids é um meio de punição divina aos homossexuais, assim, ainda hoje, o sofrimento físico não está separado da saúde espiritual. As conseqüências de tais afirmações para aqueles que sofrem são significativas, tanto na luta solitária dos indivíduos para terminar com o seu sofrimento, quanto para aqueles que fazem política de saúde”, adverte.

A particularidade da experiência da dor, cantada por Marisa Monte e Arnaldo Antunes – “A dor, é minha só, não é de mais ninguém” – é bastante aceita entre os médicos e tem influenciado a criação de instrumentos para avaliar a dor. Mas os médicos ressaltam que, apesar das diferenças entre os pacientes, eles são capazes de distinguir dores, especialmente as de fortíssima intensidade, como uma pulpite (dor dental) extremamente forte ou uma crise renal. Já nos casos de dores crônicas, ou de dores de intensidade moderada que persistem, existe muito divergência nas avaliações. Interagem, nesse caso, fatores afetivos e cognitivos como “a experiência passada de dores, a própria cultura do indivíduo e até a expectativa sobre o problema”, comenta o cirurgião-dentista Siqueira (leia mais sobre medição da dor nesta edição).

Animais sentem dor

Muitas pesquisas, inclusive nas áreas de fisiologia e farmacologia da dor, usam animais em experimentos. Existe um protocolo que deve ser seguido pelos cientistas que determina a redução ao máximo da dor dos animais durante as pesquisas. Quando é necessário o sacrifício dos animais a morte deve ser indolor (diz-se eutanásia). O protocolo sugere que, quando possível, deve-se fazer uso de animais que estejam na categoria zoológica “inferior”.

Todas essas recomendações devem-se ao consenso de que os animais também sentem dor. Embora, certamente com sensações, percepções e manifestações muito diferentes dos humanos. Quem tem animais domésticos em casa já deve ter aprendido a linguagem muda deles, reconhecendo sinais de dor como, por exemplo, a mudança de temperamento, a postura arqueada, a relutância em movimentar a parte do corpo afetada, o comportamento e a movimentação anormal. Sem falar daquele olhar apático, das orelhas caídas e redução da ingestão de alimentos e água.

Siqueira, da USP, explica que todos os animais, inclusive unicelulares, têm excitabilidade, o que lhes permite interagir com o meio ambiente. A organização do sistema nervoso teria aumentado sua complexidade em relação à sensibilidade dolorosa gradativamente na escala zoológica. Nos mamíferos já existe um grau avançado com a formação do sistema nervoso central (encéfalo) mas é nos humanos que surgem mecanismos avançados de interação sensorial que incluem a afeição e a cognição. “A dor é um elemento primitivo na evolução animal. O que muda são os mecanismos centrais de processamento e refinamento das informações”, conclui José Siqueira.