Por que se preocupar com a correlação positiva ou negativa entre o funcionamento do sistema político que orienta a democracia, e a gestão tecnológica? Tal preocupação é tributária das correntes dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (ESCT) que proliferaram a partir dos anos 1980 para captar onde e como se enraíza na sociedade a política sociocognitiva da tecnologia. Enquanto racionalidade instrumental em seu trânsito no mundo do poder, do mercado e da democracia, a tecnologia carrega, em si mesma, valores éticos que se tornaram por demais evidentes, desde a explosão da primeira bomba atômica, em 1946. As pesquisas, nesse campo, investigam a complexidade sob quatro perspectivas distintas. Duas primeiras mais antigas são: a visão instrumentalista ; e sua gêmea, a perspectiva determinista do progresso técnico. A terceira perspectiva sobre tecnologia é a substantivista, emergente desde os anos 1930. A quarta despontou desde o final do século XX, como uma teoria crítica da tecnologia que contrasta com as demais, propondo em seu lugar uma nova síntese. Ela poderá ajudar grandemente os esforços de fundamentação ora em curso, para a quarta geração de direitos que implica o controle das tecnologias sobre a segunda natureza humana (que é a nossa biosfera) e o ambiente construído, nossas sociedades.
No final da grande crise de 1929 a 1945, os Estados-Nação aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos1. A partir de 1946 foi implantando o Plano Marshall, que recuperou a economia da Europa e lançou as bases para o desenvolvimento dos países semi-periféricos e da periferia mais remota. O movimento histórico da geração de direitos, no qual se inscrevem os direitos humanos, teve início no século XVIII. A p rimeira geração de direitos foi chamada de individuais negativos marcados pela proibição ao Estado de abuso do poder, em defesa da propriedade privada, da igualdade perante a lei, liberdade de crença e associação, e direito à vida.
Os direitos de segunda geração vinculam-se às conquistas sociais, econômicas, culturais como direitos positivos que adotaram a mística da igualdade e da liberdade como indissociáveis das condições materiais para exercê-la. O resultado foi a expansão dos serviços públicos para acesso da sociedade à educação e saúde, previdência social, lazer, segurança pública, moradia e direitos trabalhistas (Estado do Bem-Estar). E, junto, deu-se um desenvolvimento único das formas sociopolíticas e culturais de aglomeração das tecnologias e sistemas técnicos. Tal complexidade – já anunciada na descrição da grande indústria capitalista feita por Karl Marx, em O Capital – converteu-se em tecnoestruturas. Sem elas, talvez não fosse possível o atendimento da demanda coletiva de grandes massas pela liberdade nos direitos de segunda geração. Contudo, tecnoestruturas geraram o sufocamento das pessoas pela extrema impessoalidade de suas racionalidades.
A terceira geração de direitos buscou corrigir isso sem sucesso. São chamados de direitos difusos e coletivos, assumem o caráter de garantias transindividuais enquanto direitos de coletividades (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito à paz e ao desenvolvimento sustentável).
Esses direitos são suficientes? Este questionamento é feito pelos movimentos sociais contemporâneos. Segundo ambientalistas, feministas, grupos étnicos, de gênero e política do corpo-consumo, precisamos ir além com direitos de quarta geração, de controle da manipulação do domínio tecnológico sobre processos biológicos e vitais para o futuro da sociedade.
Juridicamente esses direitos aplicar-se-ão ao controle da engenharia genômica, manipulação dos códigos genéticos de humanos, animais, vegetais, bactérias e organismos celulares, cruzamento de organismos de diferentes classes desde bactérias às plantas e animais geneticamente modificados2.
Democracia & tecnologia
As pessoas comuns olham para a tecnologia como suporte. Instrumental para alcançar valores e desejos que dependem do poder e do dinheiro para se realizar. Em si mesmo, o sistema técnico é algo neutro – instrumento do político e do poder econômico.
Tal perspectiva co-valida o comportamento dos tecnólogos e engenheiros que adotam o instrumentalismo (ou P1). P1 é es ta neutralidade associada ao direito comercial de propriedade intelectual como algo natural. Um circuito, uma combinatória, um desenho de um processo técnico, de um objeto ou dispositivo tecnológico tornam-se trancados por direito de patente. Este conhecimento patenteado torna a mudança técnica uma das molas propulsoras das tecnoestruturas. Desde os anos 1970 vivemos as tecnoestruturas como parte do regime cognitivo social e político3 de penetração das relações mercantis e econômicas em outras esferas da subjetividade humana na sociedade.
Aqui se recorre ao argumento determinista (P2) de que estamos diante da melhor ou mais avançada das tecnologias, e o melhor modelo de tecnologia é decidido no jogo das patentes. Diariamente, disputas jurídicas nos tribunais contestam registros de patentes. Ações desse tipo se acumulam nos tribunais das cidades-mundiais. O sistema de inovação e a política de patentes mais que impedir o domínio público do conhecimento, entretanto, alimenta o regime cognitivo das tecnoestruturas em seu trânsito pela sociedade civil.
Todas as outras formas de conhecimento tornam-se passíveis de apropriação privada. Isto apresenta evidentes riscos para os direitos humanos, pois pode criar direitos de propriedade intelectual patenteando componentes da cultura local (tecnologias tácitas ou informais) bactérias, vegetais, sementes de domínio público. A tecnoestrutura tem uma poderosa arma para controlar o cotidiano das pessoas por meio de ambientes de aculturamento, projetos e processos racionalizadores socioculturais e político-institucionais pragmáticos. Seus gestores e quadros executivos são guiados por concepções de um mundo ou mundos sistêmicos.
Não haveria problemas se fosse possível separar sistemas e o mundo da vida no funcionamento das organizações de mercado e governos sob a democracia representativa. Daí surge a questão: como regular esse trânsito se a democracia representativa não tem sido suficiente?
É necessário que os direitos de quarta geração possam ser orientados por outros regimes cognitivos. Uma das propostas melhor qualificadas é a do agir comunicativo, do filósofo Jungen Habermas (1929)4. O agir comunicativo está relacionado à articulação da democracia representativa com a deliberativa. Formas de conselho, assembléias, organizações e movimentos civis podem acessar o conhecimento por meio de novos arranjos institucionais e deliberar numa base estendida de racionalidades, na qual o regime cognitivo de mercado é uma das racionalidades presentes.
Outras formas de conhecimento e experiência também se fazem necessárias nas decisões que estão além de decidir sobre tecnologias. Exemplos concretos disso são as inovações sociais demandadas na moradia rural e urbana, transportes de massa, recursos hídricos, saúde pública, biossistemas e melhores técnicas no complexo social da produção agro-familiar, ou na agricultura urbana, além da coordenação econômica e financeira viáveis para a democratização do crédito (finanças e economia solidárias). Há, portanto, nessas áreas, demandas sociais reprimidas pela política de ciência, tecnologia e inovação convencionais. Poderiam estar sendo enfrentadas se existissem esses canais de representação e de deliberação no cotidiano para as demandas sociais e soluções adequadas em tecnologia. Diante desse quadro, podemos encontrar a contribuição de duas outras perspectivas sobre a tecnologia. A terceira levantou seu olhar essencialista (ou P3). Sua tese é radical: toda tecnologia é uma manipulação das pessoas. Ela aniquila o nosso potencial de criar e elaborar livremente, e nos tornamos apêndices das máquinas. Meios e fins são determinados pelo sistema. Esta crítica essencialista provém de Martin Heidegger (1889-1976). Ele e outros buscaram comprovar que toda tecnologia carrega uma cesta de valores em si mesma. A tecnologia incorpora valor substantivo no seu funcionamento (daí a expressão “essencialistas”). Retomemos o nosso ponto de partida: como entender que as pessoas comuns tomam a tecnologia como neutra e não enxergam que ela é dotada de uma cesta de valores embutida? A impregnação de valores à tecnologia opera por meio de uma qualidade surpreendente: ocorre justamente por meio da ilusão de neutralidade da ação do sujeito criada pelo instrumento técnico5!
Quanto mais complexa a tecnologia, maior a ilusão de neutralidade, porque nos distanciamos dos efeitos causados pela tecnologia ao ambiente humano e natural. Esta é a visão da quarta corrente ou teoria crítica da tecnologia (P4). Ela r econhece criticamente os eixos P1 e P2, mas rechaça o pessimismo de P3 (substantivismo) e realiza uma síntese. Seu intérprete mais destacado hoje é o filósofo da tecnologia Andrew Feenberg, que propõe uma teoria da instrumentalização primária e secundária6.
Feenberg é otimista quanto ao desenvolvimento das formas de controle, porque vê graus de liberdade. O desafio é criar meios nas instituições para o controle não se restringir ao ato de arrombar portas abertas, que é decidir sobre o supérfluo da tecnologia. Ao contrário, propõe Feenberg e outros da mesma corrente, o foco é a e scolha dos valores que presidem a construção interna dos sistemas tecnológicos.
Feenberg dialoga com as correntes socioconstrutivistas da tecnologia que se abriram ao longo dos últimos trinta anos7. Vale observar que a conceituação de direitos de quarta geração tem se revelado uma promessa em construção. Se historicamente foi positiva na modernidade a associação entre regime democrático e fomento tecnológico, na era contemporânea a associação tornou-se negativa.
É o caso de situações concretas envolvidas na política nuclear, armamentos, indústria automobilística diante do desenho do transporte de massa nas cidades; industrialização da agricultura com tecnologias químicas; os OGMs diante das tecnologias sociais de sementes crioulas. Ou ainda, a profunda degradação ambiental e depleção ecológica de ambientes naturais; os medicamentos alopáticos e alimentos artificiais.
A proposta jurídica da quarta geração de direitos humanos teve origem na obra de Norberto Bobbio (1909-2004). Seu marco é embrionário porque tenta regulamentar e controlar as aplicações da tecnologia genômica (em breve, também as nanotecnologias) como direito individual negativo.
O que é necessário, mas evidentemente insuficiente. A razão é simples: trata-se de uma reação defensiva. Daí a proposta da corrente P4 : uma teoria crítica da tecnologia busca criar as condições para uma democratização do desenho e do projeto tecnológico pelos próprios atores. Feenberg critica a teoria do agir comunicativo de Habermas, por ela considerar a tecnologia extensão do poder político e das empresas, e não levar em conta que ela não é, em si mesma, neutra.
O agir comunicativo, nesses casos, afirma Feenberg, deve estar ligado aos resultados práticos da tecnologia. Um exemplo disto é o extensionismo tecnológico e educacional, universitário e rural, para fazer parte desse
processo de democratização. Sem sua integração a redes sociotécnicas
não há como assegurar escalas (números) de integração entre
conhecimento científico e as práticas de tecnologias sociais das comunidades8.
Exemplo de inovação social na política de C&T seria uma ampla política nacional de fomento a práticas de residência, estágio universitário com imersão do aluno na comunidade e sociedade local organizada. Daí a importância da democracia deliberativa para influir nas escolhas tecnológicas, a partir das próprias comunidades envolvidas. Ainda não temos essa realidade. Mas ela está sendo construída em silêncio.
Ricardo T. Neder é sociólogo e economista político, professor no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o projeto de extensão, pesquisa e ensino Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina. Autor de (em lançamento) Rede sociotécnica e inovação social para a sustentabilidade das águas urbanas (São Paulo: Ed. Malhuy&Co. 2008). Email: rtneder@unb.br
Notas
1 Mais precisamente no dia 10 de dezembro de 1948 foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em Assembléia Geral das Nações Unidas.
2 Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
3 Sobre regime cognitivo de mercado ver RAMOS, Alberto Guerreiro. Política cognitiva – a psicologia da sociedade centrada no mercado. (cap. 5) In: A nova ciência das organizações. Rio de Janeiro: FGV, 1981.
4 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
5 Isto tem sido constatado empiricamente de muitas formas: ao dirigir meu automóvel numa grande cidade perco minha co-responsabilidade pelo dano ambiental e urbano causado pela máquina. Não sou culpado pelo engarrafamento... Para mais detalhes ver: NEDER, R.T. Crítica à cultura do automóvel ou teoria crítica da tecnologia? Ciência & Ambiente, no. 37, jul/dez 2008:29-38.
6 A primária é o momento de criação da tecnologia nos laboratórios, fora da sociedade. A racionalização secundária está associada à primária e corresponde ao choque dos valores embutidos na tecnologia com os valores da sociedade. As obras de Feenberg principais nesta perspectiva (P4) são: Alternative modernity: the technical turn in philosophy and social theory. University of California Press, 1995; Questioning technology.Routledge, 1999; Transforming technology. Second edition of Critical theory of technology. Oxford University Press, 2002.
7 Correspondem aos trabalhos correntes da sociologia, economia, engenharia e psicologia de estudos sociais da tecnologia e da ciência após 1980. Dentre os autores mais representativos estão: Bruno Latour com Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (São Paulo: Edunesp, 2000) e A esperança de Pandora (Bauru/São Paulo: Edusc, 2001); David Noble com América by design. Science, technology and the rise of corporate capitalism (New York, Oxford University, 1977); Renato Dagnino com Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico (Campinas: Unicamp, 2008); e Benjamim Coriat na obra Ciencia tecnica y capital (Madri: H.Blume, 1976).
8 Ver a propósito: NEDER, R. T. Tecnologia social como pluralismo tecnológico. Boletim eletrônico da Rede de Tecnologia Social. Acesso em 2/2/2009: http://www.rts.org.br/informativo-rts/news49
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