10/09/2011
As tecnologias de
comunicação, mesmo as mais avançadas, não são capazes de construir por si
próprias novas formas de saber e de inteligência. Isso porque, seu impacto
sobre as existências individuais e coletivas depende diretamente da habilidade
das pessoas que as utilizam. A afirmação é do filósofo francês Pierre Lévy,
celebrado como um dos pensadores de ponta da cibercultura. Afinal, defende o
criador do conceito de inteligência coletiva, ao longo da história, os seres
humanos vêm se adaptando a padrões estabelecidos pelos mais diversos tipos de
equipamentos, dos telefones convencionais aos tablets, fazendo os mais diversos usos deles. É a habilidade
demonstrada pelas pessoas na interação com os equipamentos que torna mais ou
menos ricas a produção e a transmissão de informação mediada pela tecnologia e,
consequentemente, o processo de produção do conhecimento. Leia, a seguir, a
íntegra da entrevista coletiva concedida por Lévy recentemente em São Paulo e da qual a ComCiência participou.
ComCiência
– Muitas pessoas afirmam a relação entre homem e computador ou celulares
como sendo intuitiva, em especial os desenvolvedores que trabalham a
usabilidade. O senhor considera que a tecnologia simplifica ou complica a vida
das pessoas?
Pierre Lévy
– A resposta simples: complica! (risos)
ComCiência
– Em que medida a aprendizagem de uma nova tecnologia é intuitiva ou
depende de processos ou movimentos educacionais (não necessariamente formais) e
culturais? Entender a relação tecnologia e homem como intuitiva não acaba
sobrepondo diferenças culturais, étnicas, etárias ou socioeconômicas?
Pierre Lévy
– É verdade que os grupos sociais que vivem em condições desfavoráveis têm
mais dificuldade para utilizar as novas formas de comunicação. Há uma espécie
de padronização dos protocolos de comunicação no mundo todo. Tomemos dois
exemplos. O primeiro é o telefone. Usar alguns números para contatar uma pessoa
é muito estranho, se pararmos pra pensar. Mas com a usabilidade, é possível
selecionar o nome de quem se deseja contatar e a ligação é feita. Esquecemos os
números, mas eles estão ali. Por causa da padronização podemos telefonar de
qualquer ponto do mundo para qualquer parte do globo. Assim, a padronização é
inevitável. O segundo exemplo é o carro. Os carros são todos iguais. Há
pequenas diferenças, como a mão da direção na Inglaterra, que é do lado
esquerdo ou mecanismos automáticos que existem em alguns carros e em outros
não. Mas todo o resto é exatamente a mesma coisa no mundo inteiro. E essa
padronização simplifica a vida das pessoas, sobretudo das que viajam. É
evidente que se pode ter uma adaptação local, mas eu acho que no futuro a
padronização industrial vai continuar, especialmente no campo das comunicações
e telecomunicações. Essa é uma tendência irrefreável. E eu acho que isso é bom,
pois não haveria internet se não tivéssemos o sistema de endereçamento
padronizado. Não haveria world wide web
sem sistemas universais de páginas, URLs, e assim por diante. Se quiser ainda
outro exemplo, temos o formato digital para músicas mp3, que é o mesmo para
diferentes tipos de música. No nível técnico, isso é completamente padronizado.
Assim, a padronização da técnica é uma coisa e a padronização do conteúdo é
outra completamente diferente. Existe a música africana, a música brasileira...
Por isso, precisamos distinguir a padronização técnica da padronização
cultural. Acredito que a padronização técnica é uma coisa boa para a mudança
cultural; misturar diferentes tendências, diferentes correntes, diferentes
culturas.
ComCiência
– Mas o fato de os produtos serem padronizados supõe que as pessoas terão
a mesma facilidade para utilizá-los sejam elas de qualquer origem ou cultura?
Pierre Lévy
– Esse é um aspecto material, de computadores, iphones... Mas eu diria que é difícil para todo mundo, muito mais
para culturas orientais e países do hemisfério sul, especialmente, para a
geração mais antiga, em qualquer lugar. É menos uma questão de país de origem
do que de quantos anos tem o usuário dessas tecnologias. Eu tenho dificuldades.
Não gosto de smartphones, são muito
pequenos, a visualização é difícil... Não gosto.
ComCiência
– Nós temos hoje em dia os smartphones,
os tablets e diversos outros
equipamentos que contribuem para o desenvolvimento da inteligência coletiva.
Qual é o real papel dessas ferramentas nessa nova forma de construção do saber?
Como elas podem definir essa construção?
Pierre Lévy
– Não é o gadget que eu uso que
é definidor: é a habilidade em usá-lo. O que é importante é que nós estamos
agora criando ambientes em rede onde a comunicação é ubíqua. Isso quer dizer
que de qualquer lugar é possível se comunicar com alguém que está conectado à
rede. Este é o primeiro aspecto. O segundo aspecto é que nós temos hoje uma capacidade
quase infinita para guardar informação, e isso praticamente sem custos. E o
terceiro aspecto é que nós temos um tremendo crescimento da potência
computacional, que é a capacidade de o computador fazer operações automáticas através
de números, através de símbolos, tornando mais eficaz o processo de
comunicação. Então existem: a potência computacional, a comunicação ubíqua por internet
e a capacidade quase infinita de guardar informações. Com esses três aspectos
nós temos um novo ambiente de comunicação, e esta é a base técnica para o
desenvolvimento de um novo tipo de inteligência coletiva. Se existem essas três
ferramentas, automaticamente se desenvolve um ambiente forte de comunicação que
permite desenvolver a inteligência coletiva. A exploração ou o uso dessa
capacidade depende de cada um e não das ferramentas.
ComCiência
– Como os processos cognitivos impulsionados e modelados pelas atuais
tecnologias de comunicação móveis, que estão avançando forte e rapidamente,
diferem das tecnologias digitais de cinco, dez anos atrás?
Pierre Lévy
– Não há tantas diferenças assim. A comunicação móvel teve avanços e a noção
de ubiquidade está em todo lugar e em todas as coisas. Essa é a principal
diferença. Para todo o resto, não há grandes diferenças, a meu ver.
ComCiência
– Hoje nós temos uma infinidade de ambientes virtuais abertos que podem
ser usados na educação, além de novas tecnologias que se apresentam a todo
momento. Que tipo de impacto esses ambientes e essas tecnologias estão causando
no ensino?
Pierre Lévy
– A primeira dificuldade em responder esta questão existe porque nós temos
a educação primária, a secundária, a educação superior e, além disso, a
pós-graduação sendo que cada uma tem seu estilo de aprendizado. Eu penso que,
na educação primária, o relacionamento das crianças com os números, com as
palavras, pode ser francamente fortalecido quando elas têm a possibilidade de
manipular esses elementos - eu digo as palavras e os números - em telas, seja
em computadores ou em tablets. E melhor
ainda se essa dinâmica for realmente interativa, online. Então, é possível fazer
uso de todas essas tecnologias na educação primária. Mas eu tendo a pensar
contra a ideia de um impacto da tecnologia na educação. Não há um impacto da
tecnologia na educação. Há ferramentas que estão disponíveis e há educadores
que podem usar essas ferramentas de um modo ou de outro. O modo como se usa
essas ferramentas é que é importante e não as ferramentas em si. É possível criar
várias estratégias de ensino fazendo uso dos mesmos instrumentos, mas não há um
impacto que seja automático e universal. Cada um pode explorar essas
ferramentas a partir de uma determinada estratégia pedagógica: e é essa forma
de aplicação que realmente define a eficácia da utilização dos instrumentos.
ComCiência
– A educação faz a ponte entre o passado, o presente e o futuro, pois é a
via de transmissão cultural, em sentido amplo. Com o avanço das tecnologias de
comunicação, o senhor entende que a educação vem perdendo sua centralidade
nesse processo?
Pierre Lévy
– De forma nenhuma. Tudo o que uma geração aprende depende do que a
geração anterior deixou. As novas tecnologias são ferramentas muito poderosas
para a transmissão do conhecimento, sendo o transmissor e o receptor muito
ativos nesse processo, sobretudo quando se considera o tamanho da memória
contemporânea e também a capacidade de processar informações. Estou falando de
poder computacional. O maior problema que enfrentamos agora é a capacidade de
usar corretamente, ou de otimizar essas novas ferramentas. Ressalto aqui que a world wide web surgiu há apenas uma
geração atrás. É muito pouco na escala da evolução cultural. Vai levar
provavelmente... não sei... três, quatro, cinco gerações até que tenhamos
desenvolvido uma cultura para usar essas ferramentas da melhor forma possível.
ComCiência
– Há um livro recém lançado no Brasil cujo nome é The shallows: what the internet is doing to our brains. Nesta obra,
o autor Nicholas Carr se posiciona, em muitos momentos, contra o uso da internet.
Um de seus argumentos é de que se trata de um tipo de ferramenta que funciona
como uma extensão do nosso próprio cérebro, e que seu uso constante faz com que
exista uma nova maneira de se informar e de pensar. O resultado disso é o
condicionamento a determinada forma de lidar com o saber: uma maneira que não
leva em conta a necessidade de concentração, reflexão e paciência necessárias à
apreciação de um bom romance, por exemplo. Como o senhor avalia esse tipo de
crítica?
Pierre Lévy
– Eu concordo que essas ferramentas tenham se tornado extensões de nossos
cérebros e que condicionem formas de pensar, como toda mídia dominante. É o
caso da escrita também, que condicionou nosso cérebro. Agora, quanto ao
problema da dificuldade de concentração, vejo novamente como um problema de
educação, de disciplina cognitiva. Esquecemos que um dos principais objetivos
da educação formal é fornecer aos jovens disciplina cognitiva, sem a qual não
se consegue nada. Então, se usarmos essas novas ferramentas com uma forte disciplina
cognitiva, focando em prioridades, nas coisas mais importantes, usando
enciclopédias e dicionários, contatando pessoas que sabem mais que nós sobre
determinado assunto, com capacidade de colaborar, criar algo coletivamente, é
fantástico. É preciso também controlar sua própria mente. Se não fizermos isso,
não será o computador que fará por nós. Ele é uma extensão do cérebro que
depende de como o cérebro funciona, claro (risos). Essa disciplina nunca foi
natural. Fazer uma criança ler um livro do começo ao fim sempre foi difícil. A
tendência é querer sair, brincar, fazer outra coisa, ver televisão. Hoje, acho
que há mais tentações para a distração. Assim, a educação para a disciplina
cognitiva deveria ser reforçada. Não vejo outra solução que não adaptar a
educação.
ComCiência
– Como podemos resolver a questão da propriedade intelectual no universo
das mídias digitais?
Pierre Lévy
– Esse é um problema muito interessante e muito complexo porque, por
exemplo, as pessoas que escrevem romances fazem dessa atividade o seu meio de
sobrevivência, e não há como querer que elas abram mão de seus direitos autorais.
Mas, considerando outro aspecto da questão, é necessário encorajar as pessoas para
a criação intelectual e seu compartilhamento gratuito. Existe ainda o argumento
em relação a guias, manuais, ou livros que são utilizados na educação: é
completamente contraprodutivo ter que pagar por eles – nós deveríamos poder
reproduzi-los sem custos. Eu não sei a resposta correta (para esse problema),
mas o que posso dizer, como membro da comunidade acadêmica, é que minha posição
é a de que cada livro ou artigo acadêmico deveria ser publicado gratuitamente
na internet. É completamente paradoxal que livros científicos sejam tão caros. Vocês
podem perguntar: - Tudo bem, então por que você não publica seus livros de
graça, na internet? Minha resposta é: - Se eu disponibilizo meus trabalhos em
meus sites pessoais, isso não irá contribuir para a minha carreira acadêmica. Porque
eu tenho que mostrar essa produção em jornais científicos e outros veículos
como esses. De um lado, tenho que apresentar meus trabalhos através de
publicações consideradas sérias, e por outro lado eu não quero receber os
direitos por meus livros: eu quero apenas que as pessoas os leiam. Em meu caso,
em particular, alguns dos livros que escrevi estão disponibilizados
gratuitamente na internet. Isso pra mim não é um problema, mas é uma questão
para os meus editores. É uma situação difícil. Penso que estamos em um momento
de transição e que progressivamente iremos encontrar soluções de acordo com as
diferentes situações, para as diferentes pessoas, nos diversos setores da
sociedade, e o problema da propriedade intelectual será suprimido. De qualquer
modo, acredito que o acesso ao conhecimento científico deva ser facilitado:
essa é, de uma maneira geral, a minha posição.
ComCiência
– Esta é uma questão sobre a memória. A maioria das ferramentas que
criamos para a internet considera a questão da memória. A internet, aliás, é um
tipo de memória que está fora do nosso corpo. Existe alguma mudança ocorrendo
para que a web não seja apenas uma
ferramenta de acesso ao esquecido ou ainda desconhecido, mas também um
instrumento de reflexão?
Pierre Lévy
– Eu penso que a inteligência coletiva das diferentes comunidades que estão
se comunicando através da internet não é reflexiva o bastante. É muito difícil
imaginar ou ter conhecimento sobre o modo como nós conhecemos alguma coisa, o
modo como construímos nosso conhecimento. Uma situação que eu posso usar como
exemplo nesse caso é: quando se lê um artigo da Wikipedia, é verdade que é
possível entrar na página de discussão sobre como foi construído aquele
verbete. Isso não existe em outros ambientes, e mesmo no caso da Wikipedia é
muito difícil porque é necessário acessar as páginas, clicar, procurar. Então,
eu sonho com uma situação onde possamos ter uma espécie de espelho de criação
da inteligência coletiva, que nos ajudará a sermos criativos e a colaborar da
melhor maneira possível. Se nós tivermos o espelho e não apenas a nossa
inteligência pessoal, nossa consciência receptiva, mas um tipo de consciência
reflexiva a respeito de nossa inteligência coletiva, já teremos muito. Mas hoje
esse não é o caso. Logo, para mim, uma das pesquisas mais importantes que
devemos realizar segue por esta via.
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