Fazer
o caminho de encontro ao maravilhoso. Essa foi a intenção de vários dos
viajantes que estiveram no Brasil entre os séculos XVIII e XIX. A
América do Sul, assim como a África, era vista pelos europeus como
lugares maravilhosos ou paradisíacos. O desconhecido que se torna
fantástico pelo contraponto ao que já era conhecido: o velho continente.
Desde
que Alexander von Humboldt publicou suas impressões sobre sua viagem
científica pelo continente americano, cresceu o interesse pelo
inusitado dessas terras entre naturalistas, pintores e outros viajantes
europeus. Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e os
movimentos de independência nas colônias espanholas e portuguesas, o
acesso à região foi facilitado e, no caso do Brasil, enfim permitido.
"O país foi aberto a qualquer estrangeiro e um grande número de
naturalistas, viajantes, comerciantes e artistas foram ‘descobrir’ as riquezas dessas terras", explica a historiadora da Universidade de Colônia (Alemanha), Débora Alves.
Segundo
ela, a fazenda do naturalista e cônsul geral da Rússia no Brasil, Georg
Heinrich von Langsdorff, era um centro de encontros científicos e base
para organização de muitas expedições. "A fazenda Mandioca e o seu
proprietário foram citados e descritos por vários estudiosos que
estiveram no Brasil nas primeiras décadas do século XIX, como Spix e
Martius, John Luccock, Emmanuel Pohl, Maximilian zu Wied-Neuwied,
Saint-Hilaire, Friedrich Sellow e outros", cita.
Acompanhado
de outros cientistas ou mesmo sozinho, Langsdorff realizou várias
viagens pelos arredores de sua fazenda no Rio de Janeiro e foi, por
vezes, um pouco mais longe. Entre maio de 1824 e março de 1825,
realizou uma expedição pela província de Minas Gerais e chegou a
percorrer o total de 1500 km. Ao todo havia 39 pessoas na expedição,
dentre elas nomes conhecidos como os pintores Hércules Florence e
Adrian Taunay, o astrônomo Nestor Rubtsoz, o botânico Ludwig Ridel, e o
naturalista Wilhelm Freyreiss. Há quem afirme que a expedição foi uma
tragédia, pois seu fim resultou na perda completa da memória do barão,
vitimado por febres tropicais e abalado com a morte de outros
integrantes, como a do pintor Adrien Taunay, na tentativa de atravessar
a nado o rio Guaporé. Em compensação, as coleções de desenho e
aquarelas de Johann Moritz Rugendas, Adrien Taunay e Hércules Florence
foram logo divulgadas e altamente valorizadas. "A expedição enfrentou
inúmeras dificuldades, acidentes e enfermidades, mas, apesar disso
tudo, teve um grande êxito científico", avalia Alves.
Obra de Hércules Florence, reproduzida por Adriano Gambarini
Este legado está sendo aos
poucos recuperado por pesquisadores de diversas áreas. No ano de 2000,
passados 176 anos do início da expedição de Langsdorff, iniciou-se a
filmagem do documentário, “Nos caminhos da expedição Langsdorff”, para
os canais de televisão Discovery Channel e France 3. Adriana Florence,
artista plástica e tataraneta de Hércules Florence participou e
percorreu com a equipe mais de 6 mil km do rio, pelo interior do
Brasil. Em trinta dias de filmagem, eles percorreram os espaços dos
índios Guatós, Apiakas e Mundurukus, de descendentes de escravos no
Mato Grosso e o garimpo de Juruema, na Amazônia. “Eu levei uns livros
com material iconográfico, um material de desenho feito por outros
viajantes sobre aquela população há 200 anos. O que me impressionou foi
ver o fascínio dos pajés e dos caciques em volta daqueles desenhos ao
verem seus antepassados”. Florence conta que a partir daquelas imagens,
essas comunidades se reconheceram e rememoraram práticas já
abandonadas. “Quando eles olhavam os desenhos feitos por Taunay,
Hércules e outros viajantes que eu levei, eles reconheciam pinturas
corporais que têm significados para eles. Nossos índios não perderam a
cultura. A cultura é uma coisa mais ampla, é quase um estado de
espírito e também uma maneira de viver”.
Expedição refaz em 2000, caminho percorrido por Langsdorff
Adriana
Florence conta que alguns lugares estão intocados, como a região do
Pará, ao longo do rio Tapajós. Paisagens que foram desenhadas pelos
viajantes em 1824 não mudaram, “é possível observar a mesma árvore
centenária, o mesmo tipo de vegetação, o mesmo rio”, destaca. No
entanto, ela identifica algumas mudanças mais graves, atribuídas ao
desenvolvimento, ou ao “pseudodesenvolvimento”, como ela prefere. “Eu
percorri o Pantanal inteiro, desde Corumbá até Porto Jofre. A
industrialização da pesca, por exemplo, acabou gerando cidades
abandonadas, mas que eram cidades importantes no passado”.
Adriana Florence, tetraneta de Hércules Florence,
retrata a viagem diante de mundurukus
O redescobrimento de Burton
Mais
reflexos do impacto de dois séculos da ação do homem sobre as florestas
brasileiras puderam ser vistos em outra expedição refeita em 2005, e
que resultou no livro e documentário: a expedição "Manuelzão desce o
rio das Velhas". A aventura comparou a realidade natural do século XXI
com a natureza tropical descrita pelo orientalista e explorador inglês
Richard Burton, em 1867, descrita no livro Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico, quando Burton percorreu o rio das Pedras e o rio São Francisco.
O
expedicionário, que também era cônsul inglês em Santos, estava entre os
viajantes que viam no país oportunidades de investimento. “Burton nunca
foi um naturalista, como Spix, Neuwied ou Langsdorff”, afirma o
lingüista Alfredo Cordiviola, que pesquisou as viagens de Burton pelo
Brasil. “Ele viajava pelo Brasil por conta própria ou do consulado”,
explica. De acordo com o pesquisador, Burton apresenta um panorama bem
favorável do país, e até diz que não foi "contratado" pelo governo para
falar bem, mas que tenta ser objetivo. “Burton se interessa por tudo:
pela história, pela paisagem, pela fabricação e usos da cachaça, pela
língua portuguesa e pela geologia. E é extremamente detalhista”, avalia.
E
foi o detalhamento de suas aventuras que inspirou a nova expedição que
faz parte do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas
Gerais, que, desde 1997, desenvolve um trabalho na área da saúde,
cidadania e ambiente na bacia do rio das Velhas. “Os trechos
percorridos por Burton serviram para definirmos a nossa navegação”,
explicou Rafael Bernardes, um dos três navegadores que refizeram, a
caiaque, a viagem de Burton. Segundo Bernardes, o principal objetivo da
viagem foi mobilizar a população dos 51 municípios percorridos para a
recuperação do rio e a necessidade de se tratar os esgotos e o lixo dos
municípios.
A
qualidade das águas, os obstáculos naturais, como cachoeiras que
existiam em 1867, e o tamanho das cidades ribeirinhas foram algumas das
características observadas durante o percurso. “Mas o que foi mais
comentado é que os peixes pescados na época de Burton hoje não existem
mais", informa. "A semelhança com os relatos de Burton ficou somente no
imaginário, pois há trechos dos quais havia relatos de corredeiras e
obstáculos naturais que não existem mais por causa do assoreamento do
rio”, lamenta Bernardes.
Outras expedições
Entre
os naturalistas que estiveram no Brasil no século XIX o mais famoso é
Darwin. Ele veio ao país em 1831 a bordo do navio Beagle e ficou de
fevereiro a julho. Conheceu Fernando de Noronha, a Bahia e o Rio de
Janeiro. Seu interesse se concentrava na geologia e na distribuição da
fauna e flora. "Darwin coletou muito material ao longo da sua viagem,
mandava este material para casa, e quando finalmente chegou de volta à
Inglaterra, em 1837, tinha muita coisa" afirma Ricardo Ferreira, autor
do livro Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução. Segundo ele, esse material foi estudado e publicado entre 1840 e 1858, quando Darwin começou a escrever A origem das espécies, no qual descreveu parte deste material.
Os
outros dois exploradores naturalistas envolvidos com a teoria
darwiniana das espécies, Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates,
não se tornaram tão famosos quanto Darwin, mas suas viagens são
consideradas importantíssimas para a descrição da diversidade biológica
e social da região amazônica no século XIX. Eles estiveram no Brasil
entre 1848 e 1859 numa viagem financiada com recursos próprios e
levaram ótimas impressões do país. “Bates quase ficou de vez no Pará”
afirma Ferreira. Segundo o pesquisador, ele gostava de repetir a frase
"Quem vem ao Pará, pára!".
Nos
onze anos que Bates e Wallace estiveram na Amazônia coletaram muitos
animais e plantas. Ao voltar à Inglaterra, Bates tinha 14.000 espécies,
na maioria animais (insetos, peixes, pássaros). "Eles dependiam dessas
coleções para viver no Brasil, uma vez que não tinham emprego" explica
Ferreira. A coleta era feita em duplicata e o material era vendido para
colecionadores amadores em Londres.
Suas
expedições resultaram não só na catalogação de novos espécimes, que
hoje fazem parte de importantes coleções museológicas na Europa, mas
também em livros sobre suas aventuras na floresta. "Vale dizer que
esses livros eram lidos não só pelos estudiosos de história natural,
mas também, pela elite européia, que os lia como narrativas épicas,
cheias de bravura", conta Rubens da Silva, pesquisador do Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan).
Neste ano a viagem de Bates e Wallace à Amazônia completou 158 anos. "E mesmo passado esse tempo, The naturalist on the river Amazon (obra de Bates) continua
a ser uma obra bastante procurada nas bibliotecas para a
contextualização de estudos contemporâneos sobre essa região do
Brasil”, conclui da Silva.
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