Há uma alta possibilidade de que os efeitos econômicos que a cana e seu potencial de produção de biocombustível causem uma espécie de “efeito Cinderela”, ou seja, que tenha um prazo limitado. Podemos pensar nessa possibilidade porque frequentemente a imprensa nacional e internacional tem divulgado o Brasil e o seu grande feito (o projeto Proálcool) como uma possibilidade de aplacar os efeitos do aquecimento global. Isto provavelmente estimulará cada vez mais outros países a adotarem estratégias similares (produzirem álcool a partir de cana) e entre eles, Austrália e países da África têm um bom potencial. Isto sem falar na Ásia, que é de onde a cana provém.
Chamei de efeito Cinderela para comparar ao que houve com o ciclo da borracha no Amazonas entre 1879 e 1912 em que os ingleses produziram borracha no Brasil, mas quando a possibilidade de lucrar diminuiu, eles levaram a planta para a Ásia e passaram a produção da borracha para lá. Será que teremos um ciclo da cana em proporções similares? Neste momento, o Brasil está realmente muito adiantado em biotecnologia da cana e na tecnologia de produção de álcool, mas o que poderia acontecer se a cana passasse a ser plantada em outros lugares no planeta onde a produção fosse similar, mas os custos de produção fossem ainda mais baratos? Será que os próprios empresários brasileiros não migrarão? Provável? Talvez, Possível? Sim, pois a cana cresce rapidamente e se a tecnologia estiver disponível, o maior lucro provavelmente irá imperar. Se algo assim acontecer, mais uma vez a falta de senso estratégico do Brasil nos deixaria para trás na história.
A cana-de-açúcar produz energia limpa (pelo menos em grande parte) e teoricamente poderia amenizar alguns dos efeitos do aquecimento global. Se a cana tiver mesmo esse potencial, ele estaria relacionado a uma diminuição das emissões e combustíveis fósseis e no potencial de seqüestro de carbono. Examinemos essa situação.
Cana e seqüestro de carbono
Ao utilizar o álcool de cana-de-açúcar como combustível deixamos de queimar petróleo que foi tirado das profundezas da terra. Isto ocorre porque enquanto o carbono das moléculas no petróleo está no subsolo há milhões de anos. O carbono emitido em forma de gás carbônico (CO2) através da queima de álcool de cana é um carbono que havia sido previamente absorvido pelas plantas de cana há alguns meses atrás. O CO2 é assimilado pelas folhas das plantas através da fotossíntese que o incorpora primeiramente na forma de sacarose (o mesmo açúcar usado no dia-a-dia). A sacarose pode ser transformada em amido (como o do pão, macarrão e arroz) e também na forma de celulose (principal componente da madeira). As plantas equilibram seu metabolismo entre essas diferentes formas de armazenamento de carbono. À medida que crescem, as plantas usam a sacarose e o amido para a produção de mais celulose.
Antes da Revolução Industrial no final do século 18 e 19 na Europa e no início do século 20 no Brasil, a concentração atmosférica de CO2 (o principal gás gerador de efeito estufa) era de 0,028% do ar atmosférico. Com o uso intenso de combustíveis fósseis (derivados do petróleo), a concentração foi aumentando e atualmente já estamos medindo cerca de 0,038%. Parece pouco, mas como o gás carbônico é um dos gases causadores do efeito estufa, ele promove um aumento de temperatura na atmosfera, o que, segundo as previsões de modelos meteorológicos atuais, poderá provocar alterações no clima de várias regiões da Terra.
Uma das soluções possíveis para amenizar esses efeitos é aumentar o que chamamos de seqüestro de carbono. Essa expressão se refere a qualquer processo que armazene carbono por um longo período em uma forma não gasosa como a madeira, que não é eficaz em contribuir como o efeito estufa. Isto ocorre porque quando a celulose é armazenada no xilema (vasos que transportam água e nutrientes na planta), que é um tecido com a maioria das células mortas, o carbono fica preso e só será liberado novamente para atmosfera quando a planta morrer e a madeira apodrecer ou for queimada. Para que o seqüestro e carbono seja significativo, é necessário que o carbono fique armazenado por um período longo o suficiente para que a emissão de carbono para a atmosfera diminua, evitando o aumento da temperatura e o aquecimento global. O termo que tem sido usado para esse processo é mitigação. Assim, se poderia dizer que o uso de álcool como combustível seria capaz de mitigar os efeitos do aquecimento global, ou seja, diminuir seu impacto futuro.
A cana e o álcool combustível
Mas qual o potencial de mitigação da cana quando usada para a produção de biocombutível? Para se ter uma idéia, em um experimento que fizemos recentemente, constatamos que cada planta de cana-de-açúcar com um ano de idade, totalmente desidratada, pesava em média 2,5 Kg. Destes, 1,5 Kg corresponderam ao colmo, isto é, o caule que armazena o açúcar a partir do qual se produz o álcool. Como no mínimo 40% deste material é composto de carbono, cada planta teria cerca de 0,6 Kg (600 gramas) de carbono. Vamos assumir que em experimentos de campo a produção seria o dobro 1, ou seja, 1,2 Kg de carbono por planta.
A produção de cana no Brasil em 2006-2007 foi de cerca de 400 milhões de toneladas. Porém, é preciso lembrar que o caule da cana-de-açúcar possui 90% de água que para os cálculos de percentagem de carbono não podem contar. Tirando a água, o montante seria de 40 milhões de toneladas de material seco, o que equivale a 16 milhões de toneladas de carbono. Isto foi o que foi transformado em álcool e açúcar, cerca de metade (8 milhões) para cada um. Ambos retornam à atmosfera em forma de gás carbônico, o primeiro na forma de resíduo da queima por combustão e o segundo como emissão de gás carbônico pela nossa respiração ao consumir a energia do açúcar e respirar.
Portanto, ao consumir álcool combustível, deixaremos de emitir para a atmosfera cerca de 8 milhões de toneladas de carbono a partir de combustíveis fósseis. Em comparação, em 2000, as emissões mundiais conjuntas de carbono para a atmosfera na forma de combustíveis fósseis para a produção de petróleo, gás natural, carvão e cimento chegaram à casa de 6,5 bilhões de toneladas de carbono. Por esse número, podemos dizer que a nossa produção de cana teria um potencial de reduzir apenas 0,125% do total de emissões.
A floresta e seu carbono
Em termos de seqüestro de carbono, agora olhemos para o outro lado da moeda, as florestas. Somente por existirem, elas reduzem enormemente o estoque de carbono na atmosfera. Só na América do Sul, que possui a terceira maior floresta do mundo (a maior tropical, que é a Amazônia), estima-se um estoque de 70 bilhões de toneladas de carbono. Isto significa que localmente os nossos 8 milhões de toneladas de carbono a partir da cana corresponderiam a um estoque de carbono de cerca de 0,01% da floresta tropical.
Agora, ao invés de local, pensemos globalmente. O total de carbono armazenado em nossas principais florestas está na casa de 1,2 trilhões de toneladas. Isto equivale a dizer que os nossos 8 milhões a partir da cana equivalem a 0,0007% do total de carbono armazenado em todas as florestas do mundo.
Algumas estimativas sugerem que só as queimadas na floresta amazônica emitem cerca de 3 bilhões de toneladas de carbono em 1 ano. Imaginemos então que consigamos diminuir as queimadas para dez vezes menos que esse valor. Estaríamos, assim mesmo, emitindo um total de carbono muito maior do que conseguimos produzir com as plantações de cana.
O caminho do meio
À primeira vista, os cálculos acima parecem deprimentes, pois a importância da cana em termos de seqüestro de carbono mal chega a um milésimo do que se emite de carbono ao queimar a Amazônia. Mesmo com a descoberta recente de nosso laboratório de que a cultura da cana poderá se beneficiar com o aumento do gás carbônico na atmosfera, aumentando a biomassa em até 50%, o potencial de seqüestro de carbono da cana nem sequer arranhará o potencial das florestas tropicais.
Por outro lado, dados recentes de nosso laboratório sugerem que plantas jovens de árvores da Mata Atlântica armazenam mais carbono quando crescem em atmosfera artificial com o dobro de CO2 em comparação à atual. Nossos dados sugerem uma média de 20 Kg de carbono por tonelada (2%) seriam armazenados a mais durante a vida de cada árvore. Se implantássemos programas de recuperação de florestas que nos levassem a aumentar somente em 10% as florestas (isto significa parar de queimar e começar a recuperar levando a um saldo positivo de florestas), considerando os nossos atuais 70 bilhões de toneladas nas florestas tropicais nós teríamos, ao fim de 100 anos, 8,4 bilhões de toneladas de carbono armazenados a mais. Estimando uma produção futura de cana da ordem de 250 milhões de toneladas (com água) por ano a capacidade de produção seria de 10 milhões de toneladas carbono em 100 anos. Mas há um problema, todo ano nós “queimaríamos” os 250 milhões de toneladas, devolvendo o carbono para atmosfera para ser assimilado pelas plantas pela fotossíntese para produzir nova cana no ano posterior.
Essas estimativas indicam que, em 100 anos, a produção de cana poderia suprir apenas cerca de 0,1 % do total de carbono armazenado por um mero aumento de 10% em nossas florestas.
Assim, a cana tem outros predicados importantes, que não o de seqüestrar carbono. A cana-de-açúcar não tem tanto potencial assim para mitigar os efeitos do aquecimento global, mas seus atributos estão mais na produção de combustível limpo.
O grande potencial do álcool brasileiro não deverá ser o de aliviar os efeitos das mudanças climáticas, os números mostram isto!
Há dois caminhos possíveis: um é aumentar indefinidamente a produção de cana e tomar áreas que hoje são ocupadas por pastagens e biomas de extrema importância como o cerrado; o outro caminho é evitar a expansão da cana a todo custo.
Mas se o Brasil resolver que seu destino é ser uma potência ambiental, um caminho do meio poderia ser o escolhido. Atualmente há casos de usinas em processo de adequação ambiental, que estão recuperando suas matas ciliares, áreas de preservação permanente e reservas legais.
O caminho do meio consiste em produzir energia limpa sim, mas regenerar florestas ao mesmo tempo e de preferência em meio às plantações de cana produzidas com nossa alta tecnologia. Para evitar que nossa carruagem vire abóbora em uma hora incômoda, talvez seja melhor levantarmos do berço esplêndido e começarmos a pensar em estratégias de produção ambientalmente aceitáveis, como um selo ambiental, que diferencie o nosso álcool dos nossos futuros competidores.
Nota:
1 Estes dados são apenas estimados pois o experimento em questão não foi no campo, mas em laboratório deve estar abaixo do real. Por isso, para efeito de comparação com o potencial de seqüestro de carbono de outras fontes, os dados de carbono foram multiplicados por 2.
Marcos Buckeridge é professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo. Contato: msbuck@usp.br.
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