10/06/2009
Neurologista, atuando principalmente com o diagnóstico e tratamento ao acidente vascular cerebral, Sheila Martins trabalha como neurologista vascular no Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS) e no Hospital Mãe de Deus, da mesma cidade. Ela está envolvida em projetos de pesquisa em neurologia e coordena a criação da Rede Nacional de Atendimento ao Acidente Vascular Cerebral, criada pelo Ministério da Saúde. Nesta entrevista, ela dá explicações sobre a doença e comenta como surgiu e como vai atuar a rede.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, o AVC é a primeira causa de morte no Brasil em pessoas acima de 65 anos e em mulheres em geral, superando até o câncer de mama. A senhora acha que houve alguma negligência social para que isso ocorresse? Ou esse fato pode ser relacionado a alguma outra causa?
Sheila Martins – Acho que o fator mais importante é a falta de informação da população. As pessoas não fazem a prevenção das doenças circulatórias que, com medidas simples, poderiam ser evitadas. A pressão alta, o diabetes, o colesterol elevado e o fumo correspondem a 88% das causas de AVC, e todos esses fatores podem ser tratados. Quando as pessoas têm um AVC, não reconhecem os sintomas e não procuram o hospital, pois não sabem que o AVC é uma urgência médica. Acho que isso é papel do Ministério da Saúde: informar a população sobre a doença e seus fatores de risco e sobre como agir na presença dos sinais e sintomas.
O que a sociedade precisa entender sobre AVC para que esse quadro de mortalidade diminua? Sheila Martins – O AVC pode ser de dois tipos. O AVC isquêmico ocorre devido à obstrução de um vaso sanguíneo cerebral, causando falta de irrigação sanguínea em uma região do cérebro e consequente morte das células nervosas. O outro tipo é o AVC hemorrágico, que ocorre devido à ruptura de um vaso e extravasamento de sangue para o cérebro. As principais causas do AVC são a hipertensão arterial, o diabetes mellitus, o colesterol elevado e o tabagismo, entre outras causas. Tratar adequadamente essas doenças e parar de fumar diminui muito a chance de um AVC. Os principais sinais e sintomas do AVC são: início súbito de perda de força e/ou dormência em um dos lados do corpo (braço, perna, face), dificuldade para falar ou compreender a fala, dificuldade para enxergar em um ou ambos os olhos, tontura, desequilíbrio, dificuldade para caminhar. A presença de um desses sintomas deve alertar para o AVC e, imediatamente, o paciente ou seus familiares devem chamar ajuda do SAMU 192, que estará preparado para encaminhar o paciente ao hospital preparado para o atendimento.
Como surgiu a idéia de uma Rede Nacional de Atendimento ao Acidente Vascular Cerebral?
Sheila Martins – A idéia de organizar uma Rede Nacional de AVC surgiu há vários anos, com um grupo de neurologistas da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares. Na época, queríamos organizar uma rede de pesquisa na área, fazer um banco de dados único dos centros de AVC e trabalhar com a educação da população e treinamento para o atendimento ao AVC. E foi ouvindo uma apresentação, em novembro de 2007, sobre essas ideias e sobre a estruturação do atendimento do AVC no sul do Brasil, que a Coordenação Geral de Urgência e Emergência (CGUE) do Ministério da Saúde decidiu criar um projeto nacional de atendimento ao AVC. A CGUE coordena o SAMU nacional, as emergências do SUS e o QualiSUS. Como é o SAMU que dá o primeiro atendimento a muitos casos de AVC, eles ficaram sensibilizados, vendo que poderiam ser a ferramenta para mudar a assistência a esses doentes.
E o que essa iniciativa do Ministério da Saúde prevê, em termos de ações?
Sheila Martins – O projeto prevê a criação de uma rede de assistência ao AVC em todos os níveis de atenção: reconhecimento da população, atendimento pré-hospitalar, hospitalar, reabilitação e prevenção. Iniciamos organizando o atendimento ao AVC agudo, identificando os hospitais públicos com estrutura para implementação da trombólise endovenosa com rtPA para tratamento do AVC isquêmico (AVCi). Esses serão os hospitais de referência para o AVC. A trombólise com rtPA é o único tratamento aprovado para o AVCi. Diminui muito a chance de sequelas neurológicas, mas o atendimento precisa ser muito rápido para que o paciente reconheça os sintomas, chame a ambulância, chegue ao hospital, faça tomografia de crânio, avaliação neurológica e inicie o tratamento em menos de 4,5 horas. Os pacientes que estiverem além desse período não podem receber esse tratamento. Irão para os hospitais de retaguarda, que também serão treinados para dar todo o cuidado ao paciente com AVC (isquêmico ou hemorrágico), diminuindo mortalidade e sequelas. Todos esses hospitais serão interligados pelo SAMU, para rápido reconhecimento e direcionamento do paciente ao hospital preparado. Hospitais sem experiência serão auxiliados por centros de excelência no atendimento do AVCi agudo no país (públicos ou privados), com a utilização de telemedicina para análise do exame neurológico do paciente e para a avaliação de neuroimagem (tomografia de crânio) nos hospitais com estrutura adequada mas sem neurologista clínico. Os dados de segurança – taxa de sangramento cerebral sintomático e mortalidade –, serão monitorados através de banco de dados internacional. A implementação ocorrerá de maneira escalonada, inicialmente em centros bem estruturados e com neurologistas experientes no tratamento com rtPA, e posteriormente em centros com estrutura adequada mas sem experiência, necessitando capacitação; e, futuramente, em centros sem a estrutura adequada, que necessitam reestruturação de seu sistema de atendimento, formação de equipes e capacitação. O objetivo é melhorar a qualidade do atendimento ao AVC, diminuir o número de pacientes incapacitados e mortos e diminuir os custos a longo prazo com a doença. O projeto piloto foi implantado no Rio Grande do Sul, pois é o estado com maior experiência do Brasil em trombólise, com mais de 400 pacientes tratados em seis anos. Já existiam dois hospitais oferecendo tratamento aos pacientes do SUS – o Hospital de Clínicas de Porto Alegre e o Hospital São Lucas da PUCRS – e um hospital privado – o Mãe de Deus. Incluímos mais dois hospitais na rede metropolitana de Porto Alegre: Hospital Conceição e Hospital de Pronto Socorro de Canoas. Este último foi o primeiro hospital do país a tratar pacientes com AVC por telemedicina. Agora estamos em fase de organização dos hospitais de retaguarda e da rede básica, além da expansão do projeto para o interior do estado. Várias outras cidades no país já começaram a organização de seus hospitais e de sua rede.
Observamos que, no Brasil, por uma série de fatores, as regiões Sudeste e Sul são mais favorecidas pelas políticas públicas. Qual vai ser a estratégia adotada pela rede para que todas as regiões brasileiras sejam atendidas? Sheila Martins – O país é muito grande e, realmente, as diferenças entre as regiões são enormes. Nós temos grandes cidades, com toda a tecnologia e os melhores profissionais, e nós temos cidades muito pobres, principalmente no Norte e no Nordeste, com população ribeirinha, onde até o acesso ao sistema de saúde é difícil. Para fazer um projeto nacional, precisamos levar em consideração todas essas diferenças. Foi feito um mapeamento do país e estamos visitando todos os estados. O primeiro passo está sendo reunir os gestores locais na capital dos estados: secretários de saúde estaduais e municipais, coordenadores de urgência do estado e do município, diretores dos principais hospitais, chefes de emergência e coordenadores do SAMU. O Ministério da Saúde, junto com esse grupo, decide que hospitais naquele estado ou município tem estrutura para ser referência para trombólise e que hospitais ficarão na retaguarda. A partir dessa decisão, visitamos os hospitais e definimos qual é o melhor local para atendimento agudo desses pacientes. A maioria dos pacientes recebe o tratamento e a monitorização por 24 a 48 horas na emergência em leito monitorado. Muitas regiões do Brasil não têm neurologistas. Nesses locais, hospitais sem especialistas mas com estrutura física e organizacional adequada serão centros de referência no AVC orientados por especialistas em neurologia vascular a distância por telemedicina, para avaliação neurológica do paciente e avaliação da tomografia de crânio em tempo real. Até agora já visitamos Acre, Amazônia, Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Nos próximos dois meses, serão visitados Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Goiás, Rondônia e Sergipe. Até o final do ano, todos os estados terão sido visitados e já teremos uma proposta para a inclusão de cada um na rede.
A senhora mencionou a telemedicina. O que é preciso para usar essa tecnologia? Sheila Martins – O centro que está atendendo ao paciente, chamado centro remoto, precisa ter um sistema de internet conectado a um centro especializado em AVC. Através de uma webcam, o especialista avalia o paciente a distância, e através de um software e um computador conectado ao tomógrafo do hospital remoto, o especialista avalia a tomografia e auxilia na decisão de utilizar tratamento trombolítico ou não em cada paciente. A avaliação é feita em tempo real. A telemedicina pode ser utilizada para implantação do tratamento trombolítico em zonas remotas, onde não existe neurologista.
A iniciativa da rede prevê treinamento de pessoal e aparelhamento hospitalar até 2010. Como vai ser o repasse de verbas para que isso ocorra? Sheila Martins – Os recursos vão ser empregados diretamente nas ações, sem intermediários, e os resultados serão monitorados de perto. Por exemplo, a capacitação será realizada pela Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares, com recurso da isenção fiscal do Hospital Oswaldo Cruz; a reestruturação física e a equipagem das emergências serão feitas pelo QualiSUS. A medicação, por enquanto, tem sido fornecida pelas secretarias estaduais e municipais de saúde. Todos os hospitais em estruturação recebem visitas frequentes do Ministério da Saúde para verificar o andamento do projeto. A qualidade do atendimento será monitorada por banco de dados internacional – chamado de registro SITS –, que agora incluirá o banco de dados nacional ligado ao Ministério da Saúde. Em junho de 2009, o registro será iniciado com 45 hospitais, públicos e privados, em pleno funcionamento, e serão registrados todos os casos de AVC (não apenas os trombolisados). As complicações registradas lançarão um alerta para quatro pessoas do grupo de controle de segurança, que avaliará cada caso. Esses registros serão auditados, de tempos em tempos, por equipe do Ministério da Saúde, para verificar a confiabilidade dos registros.
Com a atual estrutura hospitalar brasileira, com hospitais lotados, equipamentos sucateados e profissionais sobrecarregados, a senhora acha que esse sistema está pronto para atender um paciente com um AVC?
Sheila Martins – Os pacientes estão tendo AVC e estão chegando, com hospitais lotados ou não. O que nós temos que escolher é tratá-los bem ou não tratá-los. A diferença é que o paciente bem tratado tem menor chance de sequelas e, por isso, tem alta hospitalar mais rápido, menos chance de reinternação e pode voltar ao trabalho. Com isso, um paciente que ficaria de 30 a 45 dias no hospital passa a ficar de 3 a 5 dias, liberando leito para outro paciente que precise de atendimento. Para hospitais lotados, estamos sugerindo a organização de uma área específica na emergência para atender as doenças vasculares agudas: uma unidade vascular. Essa unidade servirá para atender as doenças que são tempo-dependentes e, por isso, exigem agilidade no atendimento: AVC, infarto agudo do miocárdio, doenças agudas da aorta e embolia pulmonar. Essa unidade, com leitos monitorados e equipe multidisciplinar treinada, atenderá com mais segurança o paciente. O neurologista será o responsável por conduzir o tratamento trombolítico, pessoalmente, na maioria dos hospitais brasileiros, ou à distância, onde não houver neurologistas.
Quais os principais custos que o Estado tem ao cuidar de um paciente que teve AVC e não foi devidamente socorrido?
Sheila Martins – Custos com longos períodos de internação, fisioterapia, reinternações frequentes, previdência social – 70% dos pacientes com AVC não retornam ao trabalho. Um paciente hospitalizado por AVC que fica sequelado tem um custo de aproximadamente R$ 32 mil só durante a hospitalização: 40 dias de hospital, UTI, antibióticos para pneumonia e outras complicações do AVC. O SUS paga aproximadamente R$ 640 para o atendimento de um paciente com AVC nesse período, deixando o hospital deficitário em R$ 31.360.
E os custos para quem teve um socorro eficiente?
Sheila Martins – O paciente que recebe o tratamento adequado tem uma chance maior de recuperação completa. Esse paciente tem internação hospitalar mais curta – vai para casa em 3 a 5 dias –, volta à vida normal, volta ao trabalho e o custo é apenas com a medicação preventiva para o AVC, muitíssimo menor do que o gasto com o paciente sequelado. O custo hospitalar desse paciente é de aproximadamente R$ 3.400, ficando o hospital deficitário em R$ 2.760, um valor bem menor do que o gasto com o paciente que ficou sequelado.
A rede nacional ainda não foi muito bem divulgada para toda a população. Em sites de busca, pouca informação aparece explicando o que é, o que prevê e como funcionará. Existe algum plano de torná-la mais conhecida? Sheila Martins – A rede ainda é muito nova e, por isso, a divulgação ainda está sendo construída. O site da Rede Brasil AVC, em breve, estará no ar trazendo informações sobre a doença, como evitá-la, além de apresentar projetos do Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares, hospitais preparados, protocolos de atendimento, etc. O endereço do site será redebrasilavc.org.br (ainda não está no ar).
Que mensagem a senhora deixaria para os profissionais da área de saúde? Sheila Martins – O AVC é um grande problema de saúde pública, e pode ser evitado. Mas quando ocorre, tem tratamento efetivo se o paciente for encaminhado ao hospital preparado. Nós, profissionais da saúde, temos a obrigação de lutar contra a catástrofe que essa doença causa na vida das pessoas.
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