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Reportagem
São Paulo: espaço urbano em constante transformação
Por Cristiane Paião
10/05/2010
Desde a sua fundação, em 1554, até os dias de hoje, a capital paulista vem passando por diversas transformações. De vila pobre e isolada do centro da colônia, a cidade se transformou, ao longo dos séculos, no principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América Latina. No decorrer desse processo, a cidade foi sendo moldada por uma série de interesses, entre eles, os industriais e imobiliários, que fizeram com que a cidade fosse sendo caracterizada e construída como a conhecemos hoje. São Paulo é uma das maiores e mais importantes cidades do mundo, e traz consigo uma série de questões e problemas dignos de sua grandiosidade. Com imensos congestionamentos, poluição, desigualdades sociais, a cidade desperta reflexões que buscam compreender sua realidade e, assim, buscar alternativas e soluções para seus problemas. 

Conhecida na década de 1950 como “a cidade que mais cresce no mundo”, São Paulo foi se consolidando como uma cidade de grandes ciclos de crescimento e desenvolvimento, que hoje, contudo, já não se encaixam mais no seu perfil. Estudos recentes mostram que seu crescimento tem se desacelerado, chegando até a pontos nulos em algumas regiões. Segundo dados das pesquisas em distritos censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Fundação Seade), a cada ano as áreas centrais da cidade, correspondentes às regiões tradicionais e àquelas ligadas ao vetor sudoeste – área que engloba as regiões oeste e centro-sul – apresentam uma taxa negativa de crescimento demográfico (de -5% entre 2000 e 2008).

“O crescimento populacional nunca foi tão baixo, o que existe hoje é um crescimento imobiliário, não populacional, que revela a lógica especulativa de desenvolvimento da cidade. Atualmente, as regiões centrais da cidade, já consolidadas e urbanizadas, apresentam um crescimento em termos de área construída, mas um decréscimo em termos de população. Os bairros periféricos, por outro lado, seguem crescendo tanto em área construída quanto em população, mas é mais no sentido de um adensamento dos loteamentos já existentes. Há um processo de subdivisão dos lotes que apresentam um crescimento de 4,5% a 7% ao ano. Nessas regiões, o crescimento da área construída corresponde ao crescimento populacional. Contudo, embora haja um perda da população, ganha-se, ao mesmo tempo, em metragem quadrada e em crescimento patrimonial”, explica o urbanista Pedro Arantes, da Usina CTAH - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado.
  
O desenvolvimento da capital paulista ocorreu atrelado ao desenvolvimento da indústria. Em um artigo publicado na revista Patrimônio, do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), Paulo Fontes, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, explica que no início do século XX, seu relevante parque industrial começa a ser formado. Distritos como Lapa, Mooca, Barra Funda e Brás – onde se localizava a “hospedaria dos imigrantes”, que recepcionava os recém-chegados trabalhadores europeus e asiáticos – tornaram-se bairros operários, devido à alta concentração de indústrias nessas regiões e a proximidade com ferrovias e rios que cortavam a cidade. 

De acordo com o artigo, a partir dos anos 1980, no entanto, embora o estado tenha permanecido como a região brasileira mais industrializada, a cidade de São Paulo diminuiu gradativamente sua participação na produção industrial do país. A participação do setor secundário municipal no total da força industrial do estado caiu de 36% em 1980, para 22% em 1990. Na década seguinte, uma veloz reestruturação produtiva com profundas mudanças tecnológicas, as contínuas transferências de fábricas para outros estados e os processos de fusão e incorporação de empresas tradicionais por grupos estrangeiros, aceleraram a desindustrialização da cidade. 

Esse processo determinou o fechamento de fábricas, manufaturas e vilas operárias, levando à deterioração das edificações e equipamentos, à demolição de muitas delas, vítimas da voracidade da especulação imobiliária na cidade, como conta Fontes em seu artigo. Antigos parques fabris, no entanto, estão sendo transformados em bairros residenciais e comerciais, e novas áreas estão sendo povoadas, ou ao menos tendo sua especulação imobiliária intensificada. O processo de expansão urbana nas últimas décadas aliou especulação imobiliária, esvaziamento das áreas centrais e precariedade nos novos loteamentos. Devido à dificuldade de aceder à terra urbana qualificada em áreas centrais, milhares de famílias veem-se obrigadas a ocupar regiões ambientalmente frágeis – como as de mananciais, o que leva a uma sobrevalorização do transporte individual sobre o transporte coletivo – levando à atual taxa de mais de um veículo para cada dois habitantes e agravando o problema da poluição ambiental e do tráfego intenso, duas características bastante marcantes dessa capital.

Nessa transformação do cenário urbano, São Paulo conta com algumas experiências bem sucedidas de transformação dessas antigas fábricas em espaços culturais e educacionais, como são os casos do Sesc Pompéia (entre os bairros da Lapa e Barra Funda), do Sesc Belenzinho (na Mooca) e de uma unidade das Faculdades Anhembi Morumbi, instalada em uma antiga fábrica de calçados no Brás. Há também mobilizações de movimentos sociais comunitários, com apoio do Comitê Brasileiro de Preservação do Patrimônio Industrial (TICCIH-Brasil), seção nacional da organização internacional The International Comittee for the Conservation of the Industrial Heritage – TICCIH, pela preservação de antigas fábricas e espaços industriais e operários, como as ações em torno da Vila Maria Zélia (vila operária próxima ao Brás e Mooca), do Cotonifício Crespi na Mooca, Cia. Nitro Química, em São Miguel Paulista, e as fábricas Matarazzo Petybom e Melhoramentos, na Lapa. O objetivo é garantir uma melhor qualidade de vida para os moradores dessas áreas, e preservar a memória dos trabalhadores, migrantes e moradores que construíram a riqueza e o desenvolvimento da cidade. 

A cidade e seus rios
Entre os elementos da capital que sofreram transformações, os rios ganham destaque. Havia no passado uma relação positiva, e de lazer, entre o paulistano e os rios que cortam a cidade, especialmente o Tietê. No início do século XX, os clubes de regatas foram palco de grandes confraternizações entre as famílias em suas margens, que se reuniam para esportes náuticos e pescarias, partidas de futebol e piqueniques. Ao longo dos anos, porém, com a industrialização e o crescimento da população, os rios passaram a ser utilizados como veículos de canalização de esgotos. Hoje, já não são vistos como passíveis de lazer, perderam todo seu encanto e passaram a ser objeto de incômodo para os moradores de seu entorno. O que se vê são rios mortos, esquecidos, ignorados, verdadeiros esgotos a céu aberto. 

Embora os rios Tietê e Pinheiros venham passando já há alguns anos por um programa de despoluição, o problema ainda não foi resolvido, e é também agravado pela ocupação irregular das áreas de mananciais, em decorrência da expansão urbana, impulsionada pela dificuldade de acesso à terra e à moradia em áreas centrais, por parte da população de baixa renda. A má distribuição de renda, aliás, é hoje um dos maiores e mais evidentes problemas da cidade – favelas convivem lado a lado com edifícios e condomínios residenciais de alto padrão em regiões nobres – ampliando os  problemas de segurança e violência. 

Segundo José Rodolfo Scarati Martins, professor e pesquisador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), “em todas as cidades grandes que sofrem com o crescimento desordenado existe uma iniciativa de restaurar córregos e rios que estavam totalmente poluídos, e de integrá-los à paisagem urbana como 'ilhas' para suavizar a dureza dos edifícios e do concreto. Mas cada realidade necessita que medidas específicas sejam adotadas”. “A cidade é inimiga do rio”, enfatiza, “o uso urbano do solo acaba comprometendo muito os elementos da drenagem natural, espremem o rio num canto, e ele dá o troco, inundando tudo. A impermeabilização da cidade aumenta o volume das águas, nos rios e nas ruas, o escoamento das galerias pluviais conduz as águas até as áreas dos córregos e rios que já estão cheias, agravando a situação. É preciso que se amplie o espaço de escoamento e infiltração das águas de chuva, e que todo um processo de re-naturalização das várzeas seja planejado”, diz Martins. 

A maneira de reverter esse processo, de acordo com o professor da Poli, seria fazer com que essas áreas fossem valorizadas para, em seguida, serem adotadas medidas que provocassem menos impactos ao ambiente, “é preciso chegar menos água nos rios e córregos, recuperar a capacidade de infiltração, resolver a questão do lixo, separar e tratar os esgotos e re-naturalizar o entorno pelo reflorestamento da mata ciliar. Isto poderia ser feito, por exemplo, por meio da criação de parques ao redor dos rios, que recuperariam sua função ambiental, e ainda serviriam de áreas de lazer para a população”, explica. O pesquisador conclui dizendo que “áreas inundáveis são desvalorizadas, e isso favorece a ocupação de habitações precárias, reforçando o já existente problema social”.

Para Pedro Arantes, a questão dos rios foi também, desde o início, uma questão ligada à especulação imobiliária. Ele menciona o estudo 1 de Odete Seabra, geógrafa da Universidade de São Paulo (USP), no qual ela relaciona problemas históricos, como atrelar a drenagem ao sistema elétrico de São Paulo, a danos no período de cheias. Durante um debate realizado na Câmara Municipal de São Paulo, em fevereiro deste ano, Seabra afirmou que o espaço das várzeas, que são espaços de circulação das águas, foi o grande ganho das empresas de energia. “Ou se faz administração tecnológica dos rios e das várzeas, que é uma mudança de concepção, ou as enchentes acontecerão todos os anos. Os rios e as várzeas são um espaço tecnológico, pois se tornaram um espaço produtivo destinado à circulação, ou seja, não são mais um espaço natural. As enchentes são um fenômeno social”, concluiu a geógrafa.

Arantes explica que um ponto alto do processo de especulação envolvendo os rios foi a inversão do curso do Rio Pinheiros pela Light, em novembro de 1928. Seabra explica esse processo em entrevista recente concedida ao jornal O Estado de S. Paulo. A geógrafa conta que a inversão se deu para canalizar a água para uma represa que já funcionava no sopé da serra, em Cubatão. Pelos decretos, para compensar seus investimentos, a Light ganhava o direito de desapropriar imóveis de toda a várzea do rio Pinheiros, “para fins de utilidade pública”, o que sempre foi prerrogativa do governo central. Essa área seria delimitada por uma tal “linha da máxima enchente”, que ela encontrou em mapas confeccionados no Canadá, ainda feitos de pano. “Tomaram como referência a famosa enchente de 1929, a maior que houve em São Paulo. E tudo passou a ser da Light, de onde a água chegou até o leito do rio. Entendi nisso a demarcação de um território. E nós, que estudamos geografia, sabemos o que o território é: uma jurisdição de poder. Dali em diante, um fiscal de terras passou a proibir as pessoas de usarem a várzea, fosse para jogar bola ou levar cabras para beber água”, conta Seabra.

Ao retificar o rio Pinheiros, fazer o alargamento e definir cotas de propriedade da empresa, que antes eram terras públicas, os bairros ao seu redor foram mais valorizados, e a apropriação imobiliária trouxe status para determinados bairros. “Os negócios em torno dos rios e marginais sempre envolvem muito dinheiro. Há a construção de pontes, interesses das construtoras etc”, diz Arantes. O urbanista menciona o longo processo de dragueamento dos rios, limpeza e aumento das calhas, que envolveu muitos investimentos, mas que continuaram a ser grandes depósitos de esgoto. Na medida em que cessou esse dragueamento do rio, tudo voltou a ser como era antes. “Isso acontece porque a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) ainda usa os rios da cidade como parte do seu sistema de coletores de esgoto, pois não tem uma rede fechada de coleta, mas uma rede incompleta”, explica. 

De acordo com Arantes, a Sabesp construiu, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), coletores sob o rio Tietê, que foram fabulosos, mas que hoje estão ociosos, porque um segmento da população não quer se ligar à rede para não aumentar as taxas de cobrança pelos serviços prestados pela companhia. “A coleta é cobrada em função do que se gasta de água, tendo seu valor multiplicado por dois, as contas sairiam bem mais caras, e essas pessoas não têm como sustentar esse aumento. Consequentemente, não querem aderir aos novos coletores”, explica. “Não é apenas por descaso ou falta de planejamento que a situação dos rios continua ruim, mas pela forma como foram canalizadas suas marginais e pontes. Tudo isso foi sempre um grande negócio. No Brasil o planejamento costuma ser sempre de curto prazo, dentro de uma gestão de governo”, finaliza o urbanista.

Os interesses industriais e a especulação imobiliária interferiram e continuam influenciando a geografia da cidade. Os recentes projetos de recuperação e/ou reforma das margens dos rios Tietê e Pinheiros, ou ainda, os projetos de se transformar bairros industriais e fabris em residenciais são alguns exemplos. Resta saber se, ao longo dos próximos anos, esses interesses vão unir o que se costuma chamar de “o útil ao agradável” do ponto de vista da população, gerando transformações não apenas físicas, mas também de comportamento, ou se irão continuar reproduzindo as mesmas lógicas do mercado que reproduziram até agora, deixando de lado o bem-estar dos paulistanos. 

Seria possível um novo projeto em que novas vias de tráfego fossem estabelecidas, e as marginais pudessem ser recuperadas, e re-naturalizadas? Seria possível a recuperação das águas dos seus rios? E as enchentes, e seu trânsito caótico, o seria preciso para que o contexto que vemos hoje tivesse seus problemas resolvidos? Tudo indica que este ainda será um longo processo. É preciso que muitas pesquisas tragam à tona essas questões, e que muita reflexão por parte da sociedade seja feita. Para que qualquer projeto possa se concretizar é preciso que, em um arena democrática, poder público, iniciativa privada e sociedade trabalhem juntos pela mesma causa.     


Para saber mais:

Sobre o rio Tietê: http://riotiete.sites.uol.com.br

Nota:

1 Odette Carvalho de Lima Seabra. "Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros, valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo". São Paulo, 1987. Tese (doutorado em geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.