Escritor e tradutor
que formou uma geração de estudiosos da literatura russa no Brasil morreu no
último dia 18 de maio
Foto: Josias Teófilo
Os tradutores e estudiosos de literatura russa no Brasil
ficaram órfãos no último dia 18 de maio, com o falecimeno, em São Paulo, do
tradutor, professor e escritor Boris Schnaiderman. Aos 99 anos, ele continuava
tão lúcido, ativo e produtivo como sempre, sem jamais perder a centelha criativa, a vontade de
aperfeiçoar o que já parecia perfeito, o interesse por tudo que era humano –acabara
de lançar, pela Editora 34, a tradução de O Amor de Mítia, do primeiro
russo a vencer o Nobel de Literatura Ivan Búnin (1870-1953).
Boris nasceu em Úman, na Ucrânia, no ano da Revolução Russa
– 1917. Ainda criança, viu as filmagens de O Encouraçado Potiômkin, de
Serguei Eisenstein, em Odessa, antes de vir ao Brasil, com os pais, em 1925.
Formou-se na Escola Nacional de Agronomia do Rio de Janeiro,
naturalizou-se brasileiro e, como pracinha, participou da campanha da FEB
contra os nazistas na Itália, experiência que ele trataria ficcionalmente em Guerra
em Surdina, de 1964 e, mais recentemente, nos ensaios autobiográficos de Caderno
Italiano (Editora Perspectiva).
A primeira tradução literária, com o pseudônimo de Boris
Solomonov, e posteriormente repudiada, foi do romance Os Irmãos Karamázov,
de Dostoiévski, em 1944. Em 1957, Schnaiderman passou a colaborar na imprensa,
e essa relevante e caudalosa atividade jornalística acabou dando impulso a sua
carreira literária. Embora não tivesse feito formalmente curso de Letras, foi
escolhido para iniciar o curso de Língua e Literatura Russa na USP, em 1960.
Logo vieram os anos de chumbo da ditadura militar, e ensinar
“língua de comunista” virou tão suspeito que ele chegou a ser detido em 1969. A
história é conhecida: Schnaiderman escrevia na lousa, em aula, quando a sala
foi invadida por militares armados. Pergunta do professor: “Nós estamos aqui
com giz e apagador e os senhores vêm interromper a aula armados de
metralhadora?” Uma reação suficiente para lhe garantir o “recolhimento” ao
Dops.
Aposentado em 1979, continuou não apenas a traduzir, como a
continuar burilando as traduções já publicadas. Os Irmãos Karamávoz, em um certo sentido, constituíram uma exceção em
seu trabalho – normalmente Boris privilegiava não romances caudalosos, e sim
textos mais breves, que este ourives perfeccionista reexaminava
incessantemente, sempre em busca da palavra justa, do tom certo,
da frase exata. Vieram daí jóias como Dama de Espadas, de Púchkin
(Prêmio Jabuti de tradução em 1999), Sonata a Kreutzer e A Morte de
Ivan Ilitch, de Tolstói, Memórias do Subsolo, Um Jogador e O
Eterno Marido, de Dostoiévski, os contos de Tchékhov etc.
Ao lado dos irmãos Campos, ele marcou época na
poesia, com memoráveis versões de poetas russos, especialmente Maiakóvski, cuja
fortuna crítica em nosso país foi, desde então, definitivamente reconfigurada –
de mero propagandista da Revolução, ele passou a ser visto como um dos grandes
poetas experimentais das vanguardas da primeira metade do século XX. Ainda na
área poética, Boris trabalhou a quatro mãos com Nelson Ascher em traduções da
lírica de Púchkin. Foi também pensador de fôlego, recebendo o Prêmio Jabuti de
ensaio com Dostoiévski prosa poesia (Perspectiva, 1982). As homenagens
incluíram ainda o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras (2003) e
a Medalha Púchkin, do governo da Rússia, em 2007.
Não é exagero considerar Boris Schnaiderman o pai
fundador da escola moderna da tradução de literatura russa no Brasil. Em um
tempo em que as distâncias entre nosso país e a Rússia eram maiores, e que
ambos os países viviam regimes ditatoriais, foi fundamental ter um mediador
cultural com sua cultura enciclopédica, paixão infatigável, gosto amplo,
apetite intelectual pantagruélico e rigor científico. Graças a ele, demos um
salto qualitativo decisivo: do diletantismo disperso ao profissionalismo
sistemático. E, graças a seus ensinamentos, essa mudança de paradigma ético,
estético e intelectual hoje parece irreversível. Se em nossos dias a literatura
russa ocupa um lugar especial na cultura brasileira, e os estudos de russo por
aqui são os mais avançados da América Latina, isso é devido não apenas à qualidade
intrínseca das obras, mas ao tipo altamente qualificado de defesa e difusão que
ela vem recebendo de Boris e seus discípulos.
Schnaiderman ajudou a definir o cânone da
literatura russa no Brasil e formou, direta ou indiretamente, gerações de
tradutores e estudiosos. Só quando o professor Bruno Gomide, da USP, concluir a
biografia intelectual dele a que vem se dedicando é que teremos condições de
aquilatar seu legado na justa medida.
Irineu Franco Perpetuo é jornalista. Publicou, pela Editora
Globo, a tradução, diretamente do russo, de dois livros de A. S. Púchkin: Pequenas Tragédias (2006) e Boris Godunov (2007). Traduziu
diretamente do russo os livros Memórias
de Um Caçador (Editora 34), de Ivan Turguêniev, Vida e Destino (Editora Alfaguara), de Vassili Grossman, A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói e Memórias do Subsolo, de Dostoiévski (ambos
pela Publifolha). É colaborador da revista Concerto
e dá palestras nos concertos internacionais da Sociedade de Cultura Artística.
Coautor, com Alexandre Pavan, de Populares
& Eruditos (Editora Invenção, 2001), e autor de Cyro Pereira – Maestro (DBA Editora, 2005) e dos audiolivros História da Música Clássica (Livro
Falante, 2008), Alma Brasileira: A
Trajetória de Villa-Lobos (Livro Falante, 2011) e Chopin: O Poeta do Piano (Livro Falante, 2012).
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