Caso seja reeleito no segundo turno das eleições presidenciais, Lula
poderá ser cobrado, em seu segundo mandato, por dois pontos que
aparecem no programa de governo da atual campanha: o recadastramento
completo de todas as concessões de rádio e TV do país, para cancelar
aquelas que não estiverem em conformidade com a lei, e a regulação do
setor de comunicação, cuja principal legislação em vigor é o Código
Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117), de 1962. Já o programa de governo de Alckmin não toca nessas questões.
Em junho deste ano, no entanto, Lula requisitou à Câmara dos Deputados
a devolução de 227 processos de renovação de concessões de rádio e TV
que estavam prestes a serem rejeitados por problemas na documentação,
75 dos quais envolvendo concessões de rádio vencidas há mais de dez
anos. Diversas concessões são de parlamentares ou seus familiares, como
o deputado federal Jader Barbalho (PMDB-PA), que a base governista
ajudou a conduzir, em 2005, à presidência da Comissão de Ciência,
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), responsável pela outorga
e renovação de concessões de rádio e TV.
No
período da gestão da CCTCI, que se encerrou em março de 2006 com Jader
Barbalho como presidente – cuja família detém as concessões da Rádio
Clube do Pará, da Rádio Carajás FM e da Rede Brasil Amazônia de
Televisão, todas vencidas –, além dele, outros 10 deputados, entre os
40 que compõem a comissão eram concessionários de rádio ou de TV.
Embora o artigo 54 da Constituição proíba parlamentares de terem
concessões públicas, somando-se as duas casas da atual legislatura do
Congresso (2003-2006), são quase 80 concessionários: 28 senadores –
mais de um terço dos titulares do Senado –, de acordo com pesquisa do
Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), e 51 deputados
federais – dois deles, bispo Rodrigues (PL-RJ) e José Borba (PMDB-PR),
renunciaram ao serem acusados de envolvimento com o mensalão –, segundo
levantamento do Núcleo de Estudos de Mídia e Política (Nemp) da
Universidade de Brasília (UnB).
“As
leis de comunicação, assim como diversas outras leis no país, têm
brechas, e os parlamentares encontram um subterfúgio: eles não podem
ser sócio-diretores de rádio e TV e se desligam quando assumem um
mandato, mas continuam controladores do veículo”, afirma James Görgen,
coordenador de projetos do Epcom e secretário-executivo do Fórum
Nacional para Democratização da Comunicação (FNDC). Alguns
parlamentares, contudo, sequer se dão ao trabalho de se desligar do
veículo. É o caso do próprio atual ministro das Comunicações e senador
licenciado, Hélio Costa, que só formalizou o afastamento da rádio FM
ABC, de Barbacena (MG), após a divulgação da pesquisa que incluía seu
nome ao lado de outros caciques do Congresso. Também possuem concessões
em seu nome ou em nome de sua família os senadores José Agripino Maia
(PFL-RN), Tasso Gereissati (PSDB-CE), Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA)
e José Sarney (PMDB-AP). A família do ex-presidente possui um grupo de
comunicação que inclui a Rádio Mirante, de São Luís (MA), controlada
pela senadora Roseana Sarney (PFL-MA) e pelo deputado federal Sarney
Filho (PV-MA), que há 12 anos está com a concessão vencida, mas mesmo assim
continua em funcionamento.
O
período em que ACM foi ministro das Comunicações, quando Sarney era o
presidente da República, é apontado por Görgen como o início do
fenômeno da “bancada da mídia”. “Antes disso, as concessões não estavam
ligadas a políticos ou a grandes grupos econômicos, mas a algum
jornalista ou comunicador”. Entre 1985 e 1988, quando ainda era
atribuição exclusiva do poder executivo a outorga de concessão de rádio
e TV, o presidente Sarney outorgou mais de mil concessões, 168 delas
para veículos de parlamentares que o ajudaram a aprovar a emenda
constitucional que deu a ele cinco anos de mandato. Desde o código de
1962, as concessões eram dadas pelo executivo por um prazo de 15 anos
para TV e 10 anos para rádio, sendo necessário para a renovação, entre
outras coisas, estar em dia com o INSS, o FGTS e o fisco municipal,
estadual e federal. A Constituição de 1988 manteve os prazos, mas
passou a atribuição da outorga e renovação para o Congresso Nacional.
Assim como os parlamentares concessionários, o governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso também encontrou uma brecha na legislação e
outorgou, até o final de 1996, 1.848 licenças para estações
retransmissoras de televisão (RTVs), que não precisam da aprovação do
Congresso. Dessas, os pesquisadores estimam que pelo menos 268
beneficiaram grupos controlados por 87 políticos, entre eles 19
deputados federais, seis senadores e dois governadores. Com o apoio
desses beneficiados, em janeiro de 1997, FHC consegue a aprovação da
emenda constitucional que dá a ele o direito à reeleição.
Concentração das comunicações
As retransmissoras e repetidoras locais de televisão estão
vinculadas a grupos de comunicação que incluem rádios e jornais e que
compõem um quadro geral de concentração dos meios de comunicação no
país. De acordo com o estudo “Os Donos da mídia”,
publicado em 2002 pelo Epcom, seis redes privadas dominavam, até então,
o segmento de TV e se vinculavam a rádios e jornais de todo o país,
totalizando 668 veículos de comunicação. “Hoje, a TV é o meio que
estrutura os demais”, afirma Görgen, mencionando o alcance do veículo a
mais de 90% dos domicílios. A Rede Globo, que contava com 54% da
audiência e 53% da verba publicitária de um mercado que movimenta
aproximadamente US$ 3 bilhões por ano, aglutinava naquele ano 30 grupos
empresariais com 204 veículos, entre TVs VHF e UHF, rádios AM e FM e
jornais. Atualmente, o site da empresa diz que somente entre geradoras
e afiliadas de TV, possui 121 veículos que atingem 99,84% das cidades
brasileiras. O SBT, que em 2002 tinha 23% da audiência e 20% da
publicidade, somava 180 veículos; a Record possuía 8% tanto da
audiência quanto da publicidade, e somava 105 veículos. A Band, embora
tivesse apenas 4% da audiência, contava com 10% da verba publicitária e
aglutinava 128 veículos de comunicação no país. As outras duas redes
privadas, a Rede TV! e a CNT, tinham uma pequena parcela do mercado, e
as redes públicas de TV e grupos independentes, mesmo somando 8% da
audiência total, ficavam com apenas 2% da verba de publicidade.
De
acordo com o estudo do Epcom, desde a década de 60 – quando surgiu a
Rede Globo – a TV supera os outros veículos no mercado publicitário.
Jornais, revistas e rádios somam pouco mais que a metade da verba
publicitária destinada à TV. O crescimento vertiginoso da Globo se
deve, em parte, à queda de dois importantes veículos concorrentes e a
dois grandes impulsos financeiros e, em parte, ao oportunismo, a
aproximação com o poder público e à visão empresarial de seu fundador,
o jornalista Roberto Marinho. Antes de criar a TV, ele começou com o
jornal O Globo, em 1925, e fundou a Rádio Globo em 1944, para competir
em um meio radiofônico já saturado. Obteve, em seguida, uma concessão
para operar em FM, embora ainda não houvesse aparelhos receptores para
aquele tipo de modulação. “Não é à toa que Roberto Marinho tem
reconhecida como virtude a sua visão estratégica de mercado. Ele
acreditava que este novo formato, que oferecia menos ruído e maior
fidelidade, viria para ficar”, diz Gabriel Collares, da Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em pouco tempo, a
FM se popularizou.
A
TV Globo foi criada em 1965, e nesse mesmo ano chega ao Brasil um
ex-diretor de uma estação do grupo Time na Califórnia, Joseph Wallach,
para trabalhar como assessor técnico da nova emissora de Roberto
Marinho. Segundo Collares, Wallach cuidava da administração e direção
das finanças da Globo e decidia junto com Roberto Marinho os rumos da
emissora. A suspeita de ingerência de um grupo estrangeiro (o
Time-Life) no setor de comunicações do Brasil – o que era proibido pela
legislação nacional – levou à instauração de uma CPI no Congresso para
avaliar o caso. A CPI comprovou que Wallach tinha amplos poderes na
Globo e ele próprio, de acordo com o Banco Central, remetia dólares do
grupo Time-Life para as empresas de Roberto Marinho. O acordo da Globo
com o Time-Life teve que ser dissolvido, mas a emissora já havia
recebido até maio de 1966 mais de US$ 6 milhões.
Em
1969, a Globo reverteu em seu favor um acidente que poderia ter causado
grandes prejuízos: um incêndio destruiu as instalações da emissora em
São Paulo; o seguro, porém, pagou US$ 7 milhões, que a Globo destinou
para a compra de equipamentos de última geração para sua sede, no
Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, onde centralizou o telejornalismo e
toda a sua produção. Naquele mesmo ano, começam as transmissões via
satélite, e em parceria com a TV Tupi, a Globo transmite a chegada do
homem à lua. Em setembro de 1970, dois episódios são significativos
para a trajetória da emissora: vai ao ar a primeira edição em rede,
para todo o país, do Jornal Nacional, que inaugurou oficialmente a rede
de transmissão em microondas da Embratel – parte de projeto
nacionalista do governo militar de integração do país; e a presidência
decreta a cassação dos canais da TV Excelsior no Rio e em São Paulo,
pela resistência da emissora à ditadura. É a primeira concorrente da
Globo que sucumbe, sendo dividida, em leilão, entre o grupo Bloch, que
criou a TV Manchete, e o empresário Sílvio Santos, que criou o SBT. A
outra concorrente a cair foi a pioneira TV Tupi, que em 1980 ruiria
junto com o império dos Diários Associados.
O futuro das comunicações
Em julho de 2006, foi instaurada dentro da CCTIC uma subcomissão,
presidida pela deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), para rever os
procedimentos de aprovação de novas concessões e de renovação de
concessões já existentes e para propor alterações na legislação.
Görgen, do Epcom e do FNDC, vê iniciativas como essa com otimismo, como
pequenos passos em uma democracia em amadurecimento. “É como a
histórica lista dos concessionários,
que possibilitou saber quem são os donos da mídia”, comenta, em
referência à informação sobre os sócios e diretores de rádio e TV que o
Ministério das Comunicações tornou pública na gestão de Miro Teixeira,
em 2003, e que possibilitou os estudos do Epcom e do Nemp sobre os
parlamentares que têm concessões.
O
relatório da subcomissão da CCTIC, que deve ser apresentado no final do
ano, pode servir de base para a esperada regulação do setor. Em abril
de 2005, o governo federal havia anunciado a criação de um Grupo de
Trabalho Interministerial para a elaboração do anteprojeto da Lei Geral
de Comunicação Eletrônica de Massa (LGCEM), para tratar da organização
e da exploração dos serviços de comunicação social eletrônica no país e
atualizar o código de 1962. Na época, Venício de Lima, do Nemp/UnB, já
alertava para o risco de se ter um projeto de lei que consolidasse, com
amplo amparo legal, o poder dos grupos de mídia já dominantes no país,
caso as forças que lutam para a democratização da comunicação, como o
FNDC, não se fizessem ouvidas na elaboração do projeto. “Não é tarefa
fácil, mas é assim que funciona na democracia liberal e é nela que
estamos”, opina. No entanto, seguindo no mesmo caminho que o projeto de
criação da Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav), engavetado em
2005, a LGCEM sequer se tornou uma proposta concreta, mesmo após a
criação de uma comissão interministerial em janeiro deste ano, em
substituição ao GT anterior.
“Será
que os grupos que dominam a mídia no Brasil já alcançaram, de fato,
poder suficiente para inibir inclusive as ações do poder executivo no
sentido da regulação do setor?”, questiona Lima. “Não se pode mais
acreditar que decisões parciais e acertos entre os mesmos grupos que
historicamente se beneficiam da ausência de regulação sejam solução
para as questões do setor de comunicações”, conclui. Cabe agora aos
eleitores que decidirão entre Lula e Alckimin – cujo programa de
governo não trata da democratização das comunicações – cobrar a revisão
de concessões e essa regulação do setor com a participação de entidades
da sociedade civil como o FNDC.
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