O consumo excessivo é apontado pelo movimento ambientalista como o grande responsável pela pressão sobre os recursos naturais. Mesmo fora do movimento, é praticamente consensual que a manutenção dos padrões atuais de consumo levará ao esgotamento dos recursos do planeta em um futuro não muito distante. Diante desse prognóstico, a alteração no modo de consumir é apontada como única solução. Surge daí a questão: outro consumo é possível? Visto que o consumo não é apenas uma questão de hábitos e comportamentos dos consumidores, mas de produção, políticas de desenvolvimento, produtos disponíveis, cultura de consumo, outra questão emerge: outro sistema é possível?
Algumas mudanças relacionadas ao consumo estão em curso, ainda que muitas vezes representem intervenções pontuais. Aparelhos que consomem menos energia, reuso da água, reciclagem de papel e de outros materiais, substituição das sacolas plásticas descartáveis por outras de pano e a aposta nos biocombustíveis são alguns dos exemplos. “Os alertas sobre a crise ambiental percorrem décadas e estão aí alguns resultados, como políticas públicas, ONGs e iniciativas de educação ambiental”, afirma Aloisio Ruscheinsky, sociólogo e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Diversas organizações foram criadas visando conscientizar a população sobre a necessidade de um consumo consciente, como o Instituto Akatu, e muitas outras aderiram à causa, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz (Vitae Civilis).
Contudo, ainda não houve uma mudança estrutural nos padrões de consumo. A sociedade de consumo parece se retroalimentar e demonstra uma capacidade de influência muito superior a das instituições e vozes que preconizam alterações profundas. “Quem detém mais poder? A mídia, sustentada pela propaganda, instigando o consumo ou os obstinados ambientalistas?”, questiona Ruscheinsky. “As vozes de crítica ao consumo em massa têm sido ainda marginais ao processo social e mesmo dentro da academia e da produção do conhecimento”, completa.
Para Pedro Roberto Jacobi, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Teia- Laboratório de Educação e Ambiente, a lógica atual de consumo transcende ideologias e governos. Por outro lado, consumir também passou a significar muito mais do que apenas suprir necessidades. “O ‘status' da pessoa é, muitas vezes, medido pelo que consome e não pelo que possa ser necessário e útil em sua vida”, lembra Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza, geógrafa e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, em seu artigo “Consumo sustentável: um compromisso de todos”. As profundas transformações, necessárias para garantir a sustentabilidade, encontram grandes obstáculos nessa sociedade em que o consumo está fortemente arraigado e na qual as pessoas estão constantemente insatisfeitas e são regidas justamente pela busca incessante da satisfação de todos os seus desejos.
Novos modelos
Apesar das dificuldades para efetivarem-se, novas formas de consumir são consideradas viáveis por quem as defende. “O Akatu só existe porque acredita que um outro consumo é possível”, enfatiza Raquel Diniz, coordenadora da área de capacitação comunitária do Instituto. Segundo ela, esse outro modelo possível baseia-se na consciência dos impactos gerados pelo consumo e dos limites dos recursos do planeta e na reflexão sobre valores e responsabilidades. Contudo, Ana Lucia Cortegoso, psicóloga, doutora em psicologia da educação e professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), considera que ainda é incipiente e insuficiente o nível de percepção que a humanidade tem da relação entre as ações individuais e os problemas globais.
Muitos grupos lutam para reverter esse quadro e diversas expressões foram cunhadas para se referir a esses novos modos de consumir: consumo sustentável, consumo ético, consumo responsável, consumo consciente, entre outras. Em geral, todas evidenciam o papel decisivo das escolhas do consumidor, que deve optar por suprir suas necessidades sem comprometer a capacidade do planeta de fornecer recursos naturais para as gerações futuras e de absorver os impactos negativos provocados pela produção, utilização e descarte dos produtos. Para que isso aconteça, de acordo com Jacobi, alguns paradigmas da sociedade industrial terão de ser repensados, como o uso intensivo de energia e insumos. “O consumo sustentável implica necessariamente numa politização do consumo”, afirma. Para ele, esse modelo transcende as mudanças comportamentais ou apelos mercadológicos orientados aos consumidores individuais, enfatizando uma escala de valores que rompe com a lógica mercadorizada.
“Queremos despertar o consumidor para o seu papel de protagonista na mudança do consumo”, explica Diniz. Por isso, o Akatu aposta no consumidor consciente como multiplicador desse ideal e agente indutor de políticas públicas e ações empresariais. “As pessoas acham que são impotentes e que sozinhas não vão mudar nada. O grande desafio é fazer com que elas entendam seu papel e saiam do automático na hora de consumir”, avalia ela. Para “sair do automático”, segundo Cortegoso, os consumidores precisam compreender o que os motiva para o consumo e atuar sobre essas motivações.
Para Diniz, a partir daí, o primeiro passo é reconhecer que cada ato de consumo gera um impacto. “Muitas pessoas esquecem, mas para fabricar e transportar qualquer tipo de produto, gasta-se água e energia”, pontua. Refletir sobre esses impactos é o primeiro dos 4 Rs, que englobam também reduzir, reutilizar e reciclar. “Deve-se educar primeiramente para a redução, afinal nem tudo que consumimos é realmente uma necessidade”, aponta Ortigoza, lembrando que é preciso distinguir as necessidades “reais” daquelas “criadas” pela mídia.
Contudo, apenas modificar os hábitos de consumo a fim de reduzir os efeitos ambientais negativos não basta. É preciso diminuir a pressão sobre os recursos naturais. “É necessário termos a habilidade de buscar o equilíbrio entre o que é ecologicamente necessário, socialmente desejável e politicamente atingível”, salienta o ativista holandês Manus van Brakel em seu artigo “Os desafios das políticas de consumo sustentável”. Para ele, a busca de um benefício social máximo a partir da utilização mínima dos recursos naturais requer uma espécie de revolução industrial ecológica “que leva a transportes bem menos intensivos no uso de energia, a uma maior utilização de recursos secundários do que primários, a produtos mais facilmente reparáveis e a uma agricultura com baixo nível de insumos externos”.
Outros atores
Além dos próprios consumidores, outros atores precisam mobilizar-se para garantir uma troca de paradigma. “A sustentabilidade se garante por meio de mudanças nas práticas sociais e de uma crescente co-responsabilização dos diferentes agentes econômicos e da sociedade civil”, ressalta Jacobi. Ruscheinsky vê a necessidade de elaboração de um “pacto ou contrato social” que defina o grau de impacto e de intervenção no ambiente que se considera permitido ou inevitável. Nesse sentido, os governos figurariam como espaços de negociação do conflito. “Cabe ao governo ser mediador da construção de um projeto social que se importe com o futuro mais do que com os ganhos políticos de ações em curto prazo”, pondera Cortegoso.
Já as empresas, para Jacobi, além de um papel estratégico de comunicação e sensibilização, têm um dever ético de não produzir bens insustentáveis. “Quanto maior o número de empresas que produzem madeira certificada, papel certificado e reciclado e outros bens resultantes de reciclagem e reaproveitamento, menor o impacto ambiental”, lembra.
Apropriação do discurso
Se, por um lado, a adesão, ainda que parcial, das empresas ao discurso ambiental diminui a pressão sobre o meio ambiente, por outro, o próprio discurso de sustentabilidade ganha contornos de mercadoria e aumenta o consumo. “A institucionalização da questão ambiental é um bem e um mal, isto é, está permeada de ambigüidades e contradições”, reflete Ruscheinsky. Muitas vezes, o “selo verde” almejado para seus produtos é entendido pelas empresas apenas como um atrativo e diferencial na hora da escolha do consumidor, e não como uma imposição necessária à manutenção dos recursos do planeta. “A lógica com que as empresas se apropriam de um outro discurso e pela qual cumprem com as exigências das políticas ambientais refere-se ao ganho de competitividade internacional”, frisa o pesquisador. Ao manter essa lógica interna, as empresas não contribuem efetivamente para a mudança de paradigmas.
Outros aspectos permeados de ressalvas são o alarde sobre os impactos do consumo e o radicalismo na proposição de outros modelos. “Na sociedade do consumo efêmero, é usual que tudo seja visto como passageiro”, lembra Ruscheinsky. Por isso, a manutenção de posturas firmes e a reiterada ênfase nos riscos do consumo exagerado para o meio ambiente podem ser eficazes para a mobilizar a população na medida em que a memória social é cultivada, suscitando a contestação.
Por fim, em um contexto no qual 20% da população mundial é responsável por 86% dos gastos com consumo individual, segundo relatório de 1998 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), os especialistas são unânimes: é fundamental discutir como garantir o acesso aos bens mínimos necessários para a sobrevivência dos amplos contingentes populacionais que ainda encontram-se à margem do consumo sem que isso comprometa ainda mais a sustentabilidade do planeta.
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