No multifacetado, polimorfo e controvertido campo de investigações e de práticas, que o filósofo norte-americano Joseph Rouse (1993) diz integrarem os estudos culturais da ciência, tem recebido destaque o papel atribuído à cultura nos processos de construção e produção do conhecimento científico. Wortmann & Veiga-Neto (2001) ressaltaram que nesses estudos cultura tem a ver com práticas sociais, tradições lingüísticas, processos de constituição de identidades e comunidades, solidariedades e, ainda, com estruturas e campos de produção e de intercâmbio de significados entre os membros de uma sociedade ou grupo.
A produção científica é então vista, nesse campo, como resultante de construções sócio-culturais e, nesse sentido, tais estudos retiram a prática e o conhecimento científicos do âmbito exclusivo da epistemologia, trazendo-os para o mundo da vida, como destacaram os mesmos autores (ibid). Isso implica admitir estarem codificados na episteme das teorias científicas aspectos como nacionalidade, gênero e raça, bem como consumo e propaganda, entre outros aspectos culturais. Atuando na direção de indicar processos a partir dos quais tais codificações se dão, os praticantes desses estudos têm buscado destacar representações culturais de ciência (e discursos sobre ela proferidos) colocadas em circulação em instâncias como os laboratórios científicos, os museus, os papers, os anais de congressos e revistas científicas como Science e Nature, entre outras instâncias histórica e socialmente legitimadas para dela tratarem; mas, também, eles têm incursionado à literatura (da literatura infantil à literatura de viagem), ao cinema (não se restringindo à ficção científica) e atentado para uma multiplicidade de produções da mídia, entre as quais estão as revistas de divulgação científica, mas, também, os jornais diários, as revistas de variedades e de notícias, os quadrinhos, as charges, os anúncios publicitários, entre muitas outras.
Além disso, os estudos culturais da ciência têm buscado indicar que nas descrições, discussões e questionamentos, que tais representações e discursos ensejam são postas em jogo relações assimétricas de poder, força, dominação, controle e prestígio, as quais exercem efeitos construtivos tanto sobre os sujeitos envolvidos nessas relações, quanto sobre as epistemes que orientam suas ações e práticas. Tais propósitos justificariam, assim, a busca de significados que seus investigadores fazem para além do âmbito das publicações acadêmicas e das ações empreendidas pelas comunidades científicas. Aliás, a esse respeito é importante lembrar, a partir de Jesús Martín Barbero (2002), que o ecossistema comunicativo do mundo contemporâneo encontra-se tão disperso e fragmentado, que os saberes circulam cada vez mais intensamente fora dos lugares sagrados que antes o detinham, além de terem-se afastado das figuras sociais que os administravam.
Ou seja, os saberes não pedem permissão à academia ou a quaisquer outras instâncias oficiais para expandirem-se socialmente, sendo, também, impressionante, a velocidade com que esses são colocados em circulação. E esses são outros aspectos que justificam a importância desses estudos focalizarem tais instâncias, especialmente a mídia, neles vista não apenas como servindo à disseminação de informações e ao lazer, mas como implicada na produção/fabricação discursiva dessas informações. E mais! É possível dizer, a partir da noção de “pedagogia cultural”, enunciada por autores como Henry Giroux (2003), particularizada na expressão “pedagogias da mídia”, por Douglas Kellner (2001), que apesar das instâncias midiáticas ocuparem-se, preferencialmente, com propósitos lúdicos, comerciais, entre outros, elas exercem sempre efeitos educativos que independem da explicitação de tal propósito por seus gestores/organizadores ou produtores. Ou seja, como destacou Kellner (2001), tais produções da cultura operam na direção de urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo os materiais com os quais os sujeitos forjam suas identidades.
Dessa forma, as produções culturais midiáticas constituem-se como instâncias que conformam e produzem representações de mundo (e também as de ciência e muitas outras mais), (re)produzindo, (re)organizando e (re)inventado novas relações para elas. Mas é importante destacar, ainda, que esse processo de instauração de significados não decorre, apenas, de uma particular enunciação colocada em destaque, por exemplo, em tramas simbólicas procedidas pelo autor de um artigo jornalístico, ou de um artigo científico, mas de muitas e intrincadas interações postas em ação pelos/as leitores/as, suas experiências anteriores e o texto em questão. Feitos esses esclarecimentos e ressalvas, indico alguns significados de ciência que penso estarem imbricados em títulos de reportagens publicadas em um jornal brasileiro de grande circulação1, inspirada, especialmente, por estudos considerados canônicos quanto ao estabelecimento de relações entre ciência e mídia, tais como os que foram conduzidos pela socióloga norte-americana Dorothy Nelkin (1995), e os desenvolvidos pela brasileira Daniela Ripoll (2001).
Tais autoras examinaram, respectivamente, como a ciência era focalizada pelos jornais diários norte-americanos e por algumas revistas semanais de notícias brasileiras. Seus comentários coincidem na direção de indicar, que vivemos a idade da “ciência fantástica e do culto à ciência”, sendo surpreendente notar que, apesar da racionalidade científica ser sempre valorizada como a base de nosso conhecimento da sociedade, a ciência na mídia tenha sido investida, ao mesmo tempo, de muita mágica e misticismo, na medida em que dela se esperam soluções do tipo “passes de mágica” ou o alcance de curas milagrosas.
Coloco a seguir em destaque títulos de algumas das reportagens que coletei. Vamos a elas: “Sonda americana escavou gelo em Marte”; “Brasil quer suspender patentes de remédios. Para retaliar os EUA, opção é considerada a mais eficaz porque não prejudicaria a indústria nacional que importa algodão”; “Cálculos feitos por brasileira radicada na Austrália indicam que elevação do nível dos oceanos tende ao pior cenário”; “USP produz proteína para recuperar osso. Primeiro biofármaco para reposição óssea sintetizado totalmente no Brasil estará no mercado em três anos, diz grupo”; “E por falar em dengue... Não é a primeira vez, mas parece que não aprendemos nada com as anteriores, no sentido de nos prepararmos para um surto epidêmico”; “Supermicroscópio dobra alcance óptico. Instrumento criado por pesquisadores de EUA e Alemanha pode mapear estruturas no interior de células em 3-D”; “9% dos cientistas já notaram desvios éticos em laboratórios”; “Inpa devolve insetos raros a colecionador particular suspeito de crime contra a fauna”; “Jovens da providência foram mortos com 46 tiros, diz IML”; “Homossexualismo não vai contra a natureza. Geneticista diz que os genes que tornam homens mais propensos a se tornarem gays são transmitidos por suas mães”; “Polícia apreende 1150 fósseis ilegais. Peças extraídas de diversos pontos do Brasil seriam vendidas em Minas, Goiás e Rio Grande do Sul”; “Físico da USP ganha prêmio de R$ 800 mil. José Goldemberg leva o Planeta Azul por trabalhos na área de energia sustentável e biocombustíveis”; “Demanda asiática acelera sumiço de tubarões no país. Só em 2007, Brasil exportou US$ 2,3 mi em barbatanas, usadas me sopas na china”; “Após três anos, campanha vai focar saúde do homem. Governo quer desenvolver política de prevenção com homens de 25 a 59 anos”; “Transição para energia limpa vai custar US$ 45 trilhões, diz agência. Estudo aposta em fontes renováveis, usinas nucleares e ´enterro` do carbono”; O programa brasileiro de combate à Aids dá a devida atenção aos homosexuais?”.
Um exame não muito detido, mesmo que interessado, de tais títulos, indica que há muitos e diferenciados atributos destacados para a ciência nessas matérias; indica, também, que nelas aborda-se a ciência de forma bastante diferenciada do que é considerado em análises de cunho filosófico e acadêmico, ou mesmo na divulgação científica. Por certo, em algumas dessas matérias, é feita alusão a uma ciência ocupada com a descrição do universo e do mundo natural e que, além de permitir o alcance de importantes descobertas, autoriza os investigadores a fazerem prognósticos e alertas acerca das modificações (perigosas) em curso na Terra relativamente à vida humana!
Aliás, prognósticos desalentadores quanto ao futuro do planeta e de seus habitantesse se repetem, mais de uma vez, nas poucas edições de jornais examinadas. Mas, em outras notícias, aponta-se como o capital científico entra no jogo estratégico empreendido pelas nações no comércio mundial, bem como se dá destaque ao imenso custo requerido pela investigação voltada a substituir opções obsoletas ou ecologicamente problemáticas de energia; outras notícias colocam em pauta ações e investigações conduzidas por cientistas brasileiros, alemães e estadunidenses, inscrevendo na ciência a sua nacionalidade, bem como dando destaque às instituições em que trabalham; algumas outras, tratam de erros e de fraudes que conseguiram escapar a punições mais expressivas. E essas fraudes não são apenas realizadas por cientistas amadores (o caso do colecionador ilegal de fósseis narrado em uma das matérias selecionadas), mas, também, por investigadores que trabalham no interior de laboratórios de pesquisa!
Já um outro tipo de notícias dá destaque às possibilidades que a investigação abre para a identificação de criminosos. Nesse caso, a ciência oferece instrumentos que permitem a identificação do que é suspeitado, mas que resistiu à detecção em outras buscas. Alertas acerca da eficácia e engajamento das políticas públicas de saúde voltadas ao controle de epidemias ou direcionadas à promoção da saúde de integrantes de diferentes grupos sexuais e de gênero também são feitos em algumas das matérias selecionadas; além disso, em uma outra notícia argumentos da ciência são invocados para afirmar a naturalidade de um grupo social, destacando, no entanto, a existência de um componente genético determinante para tal.
É possível dizer, então, de um modo geral, que tais títulos articulam a ciência, suas práticas e os sujeitos a ela vinculados a decisões, previsões, preceitos morais, questões éticas, econômicas, jurídicas, policiais e sociais, bem como a representam como uma instância que não escapa à dúvida, à busca de sucessos, à ocorrência de fracassos; e, ainda, que essa é uma ciência que faz descobertas, promessas, recomendações e localiza ações e sujeitos. Ou seja, nessas matérias jornalísticas dá-se a produção de muitos significados para a ciência contemporânea, sendo nesse sentido que se argumenta que tanto a imprensa científica, quanto a que comentei, caracterizada por Nelkin (1995) como popular, atuam na direção de definir discursivamente o que a ciência é. Os títulos dos artigos que selecionei fornecem apenas uma pista do que pode ser considerado frente à amplitude dos temas e das questões que têm sido articuladas à ciência em produções da mídia. Seria possível dizer, então, que, apesar dos textos acadêmicos associarem usualmente a ciência a método, descoberta, criação e ao mito do encontro da verdade e da realidade, na mídia, a ciência é muitas outras coisas! Ora um poderoso e rentável empreendimento produtivo, que até pode tornar-se calamitoso, ora instrumento para a descoberta, registro e encontro do inesperado e até do incontrolável! Ora instrumento político para promover o desenvolvimento, permitir a punição, ou a salvação e, ainda, a (re)inscrição de sujeitos na normalidade.
Para finalizar este texto, retomo pergunta que formulei em um breve artigo publicado em A página da educação (2004), ao examinar outras matérias divulgadas sobre a ciência em produções da cultura contemporânea: afinal, que ciência é mesmo essa que está representada na mídia? Uma ciência desfigurada, deturpada e distante dos atributos que a consagraram como uma das produções mais destacadas da humanidade? Ou, essa é uma ciência delineada e (re)significada a partir das muitas contradições e incertezas desses chamados “tempos pós-modernos”?
Maria Lúcia Castagna Wortmann é licenciada em história natural, mestre e doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil.
Referências Bibliográficas
BARBERO, Jesús Martín. Jóvens: comunicación y identidad. Pensar Iberoamérica. OEI, N.0, febrero de 2002. Giroux, Henry Armand. Atos impuros. A prática política dos estudos culturais. Porto Alegre: Artmed, 2003. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: ECUSC, 2001 NELKIN, Dorothy. Selling science. How the press cover science and technology. USA: Freeman and Company, 1995. RIPOLL, Daniela. Não é ficção científica, é ciência: a genética e a biotecnologia em revista. Porto Alegre: UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2001. Dissertação de mestrado. WORTMANN, Maria Lúcia Castagna & VEIGA-NETO, Alfredo. Estudos culturais da ciência & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. WORTMANN, Maria Lúcia Castagna. A ciência que se aprende fora da escola. A página da educação. Seção - Olhares de fora. Porto, 15/01/2004. P.29. Jornal mensal também disponível por meio eletrônico em http://www.apagina.pt/.
Notas
1 Trata-se do jornal Folha de S. Paulo, editado no país há 88 anos, e cuja tiragem nos dias úteis é de 299 mil exemplares. As manchetes transcritas foram retiradas de diferentes cadernos (Ciência, Tendências e Debates, Cotidiano, Dinheiro), de 11 exemplares desse jornal, colocados em circulação no mês de junho de 2008.
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