A ideia
de que o corpo humano consiste numa estrutura comparável a uma máquina não é
nova, mas tampouco é tão velha assim. Trata-se de uma metáfora moderna, nascida
junto com os primeiros suspiros do industrialismo. E, embora tenha se mantido
vigente ao longo dos últimos séculos, não o fez sem sofrer algumas mutações bastante
significativas, sobretudo nas décadas mais recentes. Para sondar essas
transformações e tentar desvendar seus sentidos, vale recorrer a um par de imagens
que são emblemáticas de duas configurações históricas bem diferentes.
Em
primeiro lugar, convocaremos a figura de uma árvore cujo tronco cresce de modo torto,
inclinado para um dos lados. Em função desse desvio, procura-se endireitá-lo
com uma estaca ou um tutor, que com o tempo irá forçá-lo a se desenvolver de
forma cada vez mais reta. Pelo menos, é isso o que se espera com essa operação,
embora não exista nenhuma garantia de sucesso. De fato, esse método de intervenção
na matéria viva tem certas características que o associam ao ideal mecânico e, observado a partir de uma perspectiva
contemporânea, poder-se-ia dizer que usa uma técnica analógica, em oposição à aparelhagem digital que hoje vigora entre
nós.
Imagem extraída do livro Vigiar e
punir, de Michel Foucault
Em
síntese, essa empreitada reflete uma vontade de esculpir ou lavrar um organismo
que possui certa flexibilidade, mas que ao mesmo tempo é duro, rígido e opaco.
Trata-se de uma matéria que resiste diante da ação desses procedimentos
técnicos que pretendem normalizá-la
ao endireitá-la. Por tudo isso, trata-se de um método árduo e lento, também um tanto
bruto e inclusive cruel, cujos resultados são incertos: não é uma estratégia cem
por cento eficaz. Apesar de todos os cuidados e dos avanços obtidos ao longo
dos séculos nas técnicas usadas para atingir objetivos desse tipo, não se sabe ao
certo se no final a planta ficará erguida; nem quando isso ocorrerá, se é que
de fato irá acontecer.
A
segunda imagem a ser evocada, para contrastar com a anterior, mostra o broto de
uma semente cujo genoma foi alterado. Assim, convertido num organismo transgênico,
o vegetal que surgirá desse grão estará projetado ou programado geneticamente
para ser de determinada maneira e não de outra. Não só para que ele não cresça de
modo defeituoso, mas também para que possua algumas características específicas,
tais como a tolerância a um herbicida, por exemplo, certo tamanho ou
determinada cor, ou então a adição de uma série de nutrientes. Tudo isso pode ser
conseguido porque o código genético da semente em questão foi programado para que a planta desenvolva
tais traços.
Um
exemplo desse tipo de intervenção biotecnológica é a famosa soja transgênica Roundup Ready (RR), produzida pela
empresa Monsanto, que possui em seu genoma um gene de bactéria
resistente ao inseticida glifosato, também comercializado pela mesma firma. Um
caso menos conhecido – entre muitos outros que já foram liberados pelas
instituições competentes e estão ativos na superfície deste planeta – é a planta de tabaco fluorescente, fruto da inserção
em seu DNA de um gene de vaga-lume que contém código da enzima luciferase.
A
distância entre as estratégias exercidas sobre os dois tipos de vegetais descritos
nos parágrafos anteriores poderia resumir, de algum modo, a história da intervenção
técnica na matéria orgânica, seja humana ou não-humana. Pelo menos, até agora.
Em sentido tanto literal como metafórico ou simbólico, essas duas imagens
sintetizam a "evolução" das formas com que usamos a tecnologia para
alterar a vida. Cada uma dessas imagens condensa uma forma de implementar determinados
saberes e ferramentas, que foram inventados para transformar os organismos
vivos com o propósito de satisfazer objetivos, necessidades ou desejos humanos.
Nesse conjunto de seres alterados tecnicamente se inclui, é claro, o corpo vivo
da espécie humana.
Cabe
frisar, porém, a importância das aspas no vocábulo acima evocado: "evolução",
pois entre o primeiro e o último exemplo mencionados não houve apenas uma acumulação
de avanços gradativos rumo a um aperfeiçoamento técnico cada vez maior. O que
ocorreu, aliás, foi uma verdadeira ruptura a ser destacada: uma descontinuidade
histórica que se manifesta tanto em termos tecnológicos como biológicos. Esse corte
radical – para além das óbvias continuidades que, sem dúvida, também existem – deve-se
à seguinte constatação: a matéria que conforma cada um desses dois organismos
vivos é diferente. Isso porque a sua materialidade é pensada como sendo
distinta e, em função disso, ela pode ser manipulada de outras formas. Embora
em ambos os casos isso se efetue sob a imprescindível luz da ideia de máquina,
parece se tratar de dois artefatos bem diferentes.
A
primeira planta é modelada ou "corrigida" de fora para dentro. Nessa
tentativa, seu invólucro exterior, sua carcaça ou sua casca é pressionada por
meio de rudes técnicas mecânicas que se ancoram no instrumental analógico da
era industrial. Já a segunda planta é projetada de dentro para fora. Com
esse fim, ela é programada a partir de seu núcleo interior – isto é, seu substrato molecular ou celular –
recorrendo a métodos bem mais sofisticados que são de índole biotecnológica e
têm inspiração informática. Por isso, poderia se afirmar que estes últimos
procedimentos são mais próximos do universo digital que do analógico, e apontam
a reprogramar algo considerado
imperfeito por natureza em vez de tentar corrigir
certos desvios da normalidade.
Se
contemplarmos esses dois tipos de plantas com a perspectiva da clássica metáfora
da máquina – uma figura retórica tão fértil na tradição ocidental, que foi extremamente
ativa ao longo de toda a era moderna –, a primeira delas seria um velho artefato
industrial. Ou seja, puro hardware composto
por engrenagens, alavancas e parafusos, que integram um conjunto de peças
ensambladas para formar uma unidade funcional. Esse complexo mecanismo é
animado por uma misteriosa energia vital, comparável à eletricidade que a acenderia
através de um cabo conectado a uma tomada, por exemplo, ou então à gasolina que
a faria funcionar como acontece com o motor de um automóvel.
Já
a segunda planta seria outro tipo de aparelho: uma máquina cujo hardware – entendido como o organismo ou
a materialidade de seu corpo – está dirigido por uma sorte de software que poderia ser comparável a um
programa informático. Nesse sentido, tanto seu corpo como sua vida estão
comandados pelas instruções que formam seu código genético, por exemplo. Não seria
exagerado afirmar que o DNA funciona, aqui, como uma espécie de sistema operacional
que governa não apenas essas sementes em particular (e as plantas que delas irão
nascer), mas também todos os demais vegetais e ainda todos os animais que vivem
atualmente – ou que alguma vez viveram – na Terra; incluindo, é claro, o ser
humano.
Por
tais motivos, pode-se concluir que a reluzente visão do mundo que acompanha e
acolhe essa segunda imagem maquínica implica outra lógica da vida. Trata-se de
uma nova biológica, que é tanto biotecnológica como biopolítica. Esse relato cosmológico mais recente – quer dizer, essa explicação do mundo que tem
se constituído nas últimas décadas – está se tornando cada vez mais hegemônica
na cultura globalizada do século XXI. Essa narrativa está empurrando e soterrando
outros discursos, com os quais ainda convive mas que almeja deslocá-los e ultrapassá-los
definitivamente.
De
acordo com essas explicações mais atuais, as quatro letras químicas que compõem
"o alfabeto da vida" integram uma linguagem: esses dois pares de
signos conformam o DNA, um código cujas infinitas combinações em instruções
ordenadas de modo helicoidal dão como resultado a enorme diversidade de formas
de vida terrestres. É a mesma linguagem, composta por essas quatro únicas
letras, a encarregada de codificar a “essência” de todos os seres vivos: da mosca
da fruta até o jacarandá ou o cachorro, da borboleta e o urubu até a orquídea
ou o champignon.
Ou
então um pombo, um cactos, uma bactéria, um elefante, um mosquito, uma alface;
em suma, a enumeração poderia ser infinita, pois ela compreende absolutamente
todos os seres vivos e ainda todos aqueles que já viveram alguma vez. Supõe-se
que seus corpos e suas vidas estão programados nessa mesma linguagem, composta
por aquelas quatro únicas letras: A, C, G e T, cada uma delas aludindo a uma substância
química específica que compõe esse ácido desoxirribonucléico encarnado em sua poderosa
metáfora linguística e informática.
Assim,
por exemplo, a diferença entre o chimpanzé e o ser humano já foi quantificada nesses
termos, e os cientistas responsáveis por tais estudos afirmam que essa distinção
contempla menos de dois por cento de seus respectivos genomas. Não se trata
somente de uma discrepância mínima. O que surpreende é que, além disso, ao serem medidas
desse modo, as diferenças entre ambos os tipos de seres se tornam meramente quantitativas, visto que se referem a
uma maior ou menor complexidade, uma maior ou menor quantidade de informação
genética.
Por
isso, vale a pena se deter nas peculiaridades de cada um desses relatos
cosmológicos, ambos baseados na metáfora do corpo como máquina, embora cada um a
seu modo, porque respondem a contextos históricos diferentes. O que se procura,
nessa sondagem, é tentar compreender tanto suas motivações e premissas como suas
implicações e algumas de suas possíveis consequências, que se anunciam imensas
e já estão em andamento.
Retomemos
brevemente o exemplo anterior: se o homem e o chimpanzé fossem observados como
dois mamíferos maquínicos à moda antiga – ou seja, como se fazia antes dessa
reformulação informática da vida e da natureza –, eles seriam vistos como dois artefatos
semelhantes em vários aspectos, mas irredutivelmente diferentes em muitos outros
sentidos. Por um lado, então, teríamos um macaco; e, por outro lado, um homem. Isto
é, dois tipos de seres com diferenças qualitativas
e inexoráveis entre si. Hoje, porém, as metáforas foram alteradas e reformuladas.
E, em consequência, essas comparações de tipo numéricas podem ser efetuadas entre
qualquer par de seres vivos, de modo que o resultado sempre dará uma diferença matemática:
tudo se reduz a um problema de quantidade e de organização da mesma informação.
As
diferenças entre os humanos e a vaca, por exemplo, abrangem por volta de vinte
por cento de seu material genético. Menos que a discrepância entre o genoma do homem
e o do rato, aliás. E a diversidade informática entre o milho e o ser humano pode
ser menos significativa que a distância entre duas classes de bactérias. Para
além dessas disparidades e curiosidades aritméticas, porém, o que nos interessa
ressaltar é que em todos os casos se trata do mesmo tipo de informação que compõe
a vida terrestre, embora organizada de diversas formas e em diferentes doses.
Por isso, assim como é possível comparar desse modo qualquer par de seres
vivos, também se abre a possibilidade de efetuar combinações trocando alguns
fragmentos de sua informação genética, que sempre será compatível por definição.
Devido
a essa equivalência universal, segundo essas novas narrações cosmológicas que
se apóiam em verdades com evidente aval científico, a matéria que compõe as moléculas
vitais das diversas espécies poderia ser combinada e recombinada numa série infinita
de misturas possíveis. E essa multíplice mixagem permitiria uma reprogramação
total da vida: de qualquer forma de vida, inclusive de algumas ainda inexistentes
e até mesmo impensáveis, ou daquelas outras que se extinguiram há milhões de anos.
Não
se trata apenas, portanto, de uma ruptura antropológica ou concernente à espécie
humana em particular, mas de uma genuína reformulação biológica que engloba todas
as espécies animais e vegetais, inclusive as que hoje seriam consideradas quiméricas.
Além disso, essa transformação vem acompanhada por um conjunto de convulsões
ocorridas em todos os âmbitos, com sérios impactos no nível epistemológico.
Trata-se de uma mutação capaz de informatizar
ou digitalizar a natureza, convertendo
a vida em informação manipulável.
O
que implica tamanha redefinição? Suas consequências são incalculáveis. Antes do
desencadeamento dessa transformação histórica que terminou gerando a atual encruzilhada
ao abrir o horizonte evolutivo de uma maneira inaudita, as possibilidades
combinatórias entre as diversas espécies de seres vivos eram muito limitadas. Elas
ocorriam naturalmente, por obra do acaso, ou então podiam ser provocadas
artificialmente pelas humildes façanhas tecnocientíficas daqueles tempos
remotos, mas todas essas misturas tinham um requisito básico para acontecer: os
organismos vivos envolvidos nessas transações deviam ser "compatíveis"
sexualmente. E nem todos o eram, como é lógico, mas apenas aqueles cujas carcaças
corporais fossem capazes de intercambiar mecanicamente o material genético de
ambos os organismos.
Isso
porque os átomos que integram a matéria orgânica assim compreendida – de modo toscamente
analógico – são bem menos dóceis que os bits que compõem a informação. Por
isso, as partículas carnais dos seres vivos da era industrial eram menos flexíveis
que os fluxos de dados de hoje em dia. Aquela substância se considerava mais dura
e rígida que esta nova forma de decompor quimicamente a matéria orgânica, ao ponto
de torná-la quase imaterial de tão etérea, volátil e ubíqua.
Por
isso asseveramos que se trata de dois tipos de materialidades distintas. O que
está em jogo é uma redefinição da própria matéria vital, que acompanha a transformação
do instrumental técnico usado para modelar a vida, passando do regime mecânico
e analógico para o informático e digital. Por um lado, então, temos aquela matéria
que compunha a planta torta e endireitada mecanicamente; e, por outro lado, a matéria
viva que conforma as sementes programadas biotecnologicamente. Dois tipos
distintos de máquinas vitais, cada uma delas compatível com o contexto histórico que as acolhe e as insufla.
Assim,
antes – quando dispúnhamos tão somente dos velhos métodos mecânicos e analógicos,
e quando os corpos eram pensados e tratados daquele outro modo – um burro e uma
égua podiam dar origem a uma mula, por exemplo, ou uma laranja e um limão poderiam
gerar um novo tipo de fruto cítrico. Mas jamais teria sido possível combinar, dessa
forma tão rusticamente analógica, o material genético da soja com o do salmão
ou o da andorinha, por exemplo, e nem a substância física de um coelho com a de
uma medusa ou um vaga-lume; ou, então, os ingredientes de um ser humano com os de
um porco e uma margarida.
Compreendidos
em chave mecânica e analógica, todos esses corpos eram incompatíveis entre si. E, de acordo com os saberes e as ambições
técnicas daquela época, não se tratava de operar trocas de informação inspiradas
nos modelos digitais, como acontece agora. No entanto, isso é o que tem
ocorrido durante milênios, já que os novos métodos biotecnológicos de inspiração
informática são muito recentes: surgiram há poucas décadas, com suas fabulosas propostas
de recombinar moléculas, desenhar organismos transgênicos e efetuar as mais audazes
clonagens.
Apesar
de sua curta trajetória, talvez essas inquietantes novidades estejam abrindo um
novo capítulo na história da humanidade, assim como na relação entre a tecnologia
e a matéria viva. Um novo passo, também, nas definições de máquina e de corpo,
e na capacidade da primeira para metaforizar o segundo. Por isso são tão eloquentes
as imagens daquelas duas plantas emblemáticas que foram evocadas no início
deste artigo – uma cujos desvios se procura endireitar com instrumentos mecânicos
e outra geneticamente programada para que seja de uma determinada forma –,
porque na distância entre ambas as ilustrações se aglutina a história dessa densa
relação. Tais figuras põem em evidencia os complexos laços que amarram os
sonhos tecnocientíficos com os corpos orgânicos.
Isso
nos leva à conclusão destas reflexões: se essas duas imagens sintetizam o itinerário
que a relação entre técnica e vida tem transitado até o dia de hoje, o abismo
que separa ambos os exemplos pode ser comparável à fenda que afasta dois regimes
epistemológicos distintos, assim como dois universos antropológicos e biológicos
claramente diferenciáveis. Num deles vigoram os antiquados métodos mecânicos e analógicos que foram utilizados de modo exclusivo
ao longo de milênios, enquanto o outro é o reino dos novos procedimentos que se
estão assentando atualmente. Ou seja: métodos bioinformáticos que, cada vez mais,
recorrem à lógica digital para
consumar suas ousadas metas.
Aquela
antiga matéria orgânica – a que conformava a planta torta e, de alguma maneira,
tinha uma certa compatibilidade com as ferramentas mecânicas e analógicas dos
já envelhecidos tempos modernos – não era apenas rígida, opaca e resistente à penetração
técnica, mas também era misteriosa. Guardava em suas entranhas carnais o enigma
de seu funcionamento. O segredo da vida não só lhe pertencia por inteiro, mas ainda
acreditava-se que esse mistério incognoscível emudeceria em seu cerne por toda
a eternidade.
Agora,
porém, a nova matéria orgânica – aquela que compõe a semente reprogramada para
que seja de determinada forma – não só é bem mais flexível que a sua antecessora.
Além disso, ela é governada por um código cujos enigmas estão sendo decifrados.
E o grande sonho desses projetos tecnocientíficos de novo cunho é que essa espécie
de software biológico universal – esse
sistema operacional que comanda todas as formas de vida – logo será
transparente e, portanto, irá nos oferecer acesso total aos antigos mistérios
da vida.
Como
será conseguida essa proeza? Fazendo com que a matéria viva se torne totalmente
compatível com nossos artefatos eletrônicos. Assim, estima-se que ela será inteiramente
maleável, programável e reprogramável. Então, corpos e máquinas se fusionarão
integralmente, culminando o trajeto que os levou do mais modesto ideal de
mecanização – que buscava corrigir desvios
para normalizá-los – ao muito mais ambicioso projeto digitalizador da vida, que
pretende tudo reprogramar rumo a uma otimização potencialmente infinita.
Paula
Sibilia é professora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense, autora dos livros O homem
pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (2002), O show do eu: a intimidade como espetáculo (2008) e Redes ou paredes: A escola em
tempos de dispersão (2012), todos
publicados também em espanhol.
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