10/02/2012
O nível de alfabetização dos
brasileiros visto em detalhes: é o que propõe o Indicador Nacional de
Alfabetismo Funcional (Inaf). A cada dois anos, o índice faz questionários
detalhados e elabora um indicador aprofundado da educação do país. Como
resultado de uma parceria da ONG Ação Educativa com o Instituto Paulo
Montenegro, vinculado ao Ibope, o Inaf é feito em paralelo ao Censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesta entrevista à ComCiência, a coordenadora da Ação
Educativa, Vera Masagão Ribeiro, fala sobre os índices, a diferença entre Inaf
e IBGE, valorização
dos profissionais de educação, inclusão digital e políticas
públicas educacionais para jovens e adultos. Para Vera, os índices do IBGE
captam melhoras principalmente na alfabetização infantil, mas ainda faltam
projetos dedicados ao incremento das habilidades de leitura e escrita das
gerações mais velhas.
ComCiência: Como o Indicador
Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf) está estruturado?
Vera Masagão: O Inaf é um projeto que a Ação
Educativa elaborou com o Instituto Paulo Montenegro, um órgão social do Ibope. Por isso, esse índice que criamos aproveita
toda a estrutura de pesquisa do Ibope, ou seja, isso inclui as pessoas que
realizam as amostras, até as equipes das diversas regiões do país. Fazemos,
desde 2001, uma pesquisa sobre níveis de alfabetismo da população, a partir de entrevistas domiciliares, com esse grupo formado pelos
profissionais do Ibope, e montamos uma amostra representativa da população de 15 a 64 anos. É aplicada uma
prova com questões do dia a dia, que avalia leitura, escrita e matemática. A
elaboração desta prova é feita a partir de notícias de jornal, anúncios etc.
Depois, é realizado um novo questionário sobre a pessoa, para sabermos: o que
faz, onde estudou, se consegue ler ou não, e o que tem hábito de ler. É algo
bem detalhado. Com essas informações, conseguimos uma medida das práticas, por
exemplo, se estuda, quais são suas expectativa, etc. Esse levantamento vem
sendo realizado desde 2001, o último foi em 2009 e nós estamos indo novamente a
campo agora para mais um levantamento. Entre 2001 e 2005, a pesquisa era feita
anualmente, e hoje ocorre a cada dois.
De uma edição para outra da
pesquisa, poucas mudanças são feitas, exatamente com intuito de construir um
indicador que tenha comparabilidade de um ano para o outro. Inicialmente,
trabalhávamos com uma prova só, aplicada todos os anos, depois incluímos
algumas sofisticações do ponto de vista metodológico, ou seja, são aplicadas
provas diferentes, mas na mesma escala, de forma que seja possível avaliar se
determinada situação melhorou, piorou, ou permaneceu igual.
ComCiência: Como se diferencia o índice de analfabetismo calculado
pelo IBGE do índice do Inaf?
Vera Masagão: O IBGE trabalha com autodeclaração, portanto, pergunta
? às pessoas se são alfabetizadas, se sabem ler e escrever um bilhete simples.
No Inaf, fazemos essas mesmas perguntas que o IBGE, mas também aplicamos uma
prova. Evidentemente, há diferenças entre os resultados. Por exemplo, existem
pessoas que são avaliadas por essa prova como analfabetas, mas que se autodeclaram
alfabetizadas. O contrário também ocorre, principalmente, pessoas que têm um
domínio rudimentar da leitura e da escrita, mas que se dizem analfabetas
segundo o critério do IBGE. Por isso, exploramos muito além do que a pergunta do
IBGE, pois investimos num detalhamento da pergunta. Em princípio, o que diferencia
o Inaf é a medição mesmo, através de um teste, enquanto que o IBGE é só
autodeclaração. E, além do analfabetismo, o IBGE às vezes divulga também
analfabetismo funcional.
ComCiência: O Inaf diferencia alfabetismo funcional do
analfabetismo funcional?
Vera Masagão: Para o IBGE, analfabetismo funcional é quem tem menos
de três anos de escolaridade, portanto, eles fazem uma aproximação. No Inaf,
apesar de abordarmos alfabetismo funcional, concordamos que existe o analfabeto, que não sabe ler nem escrever. A isso
somamos a ideia do alfabetismo rudimentar, o básico e o pleno. Não usamos o
analfabetismo funcional, porque para nós esse alfabetismo rudimentar é algo
utilizado pelas pessoas, ou seja, é melhor do que nada. Também não é o que consideramos
ideal, que seria o pleno. Uma pessoa que faz até a oitava série, ou o nono ano do
ensino fundamental, deveria atingir o nível pleno, mas notamos que só 25% da
população o atinge.
ComCiência: O Inaf tem alcançado os objetivos a que se propõe?
Vera Masagão: Procuramos levantar o debate sobre alfabetização, e,
nesse sentido, acredito que sim. Mas, realmente, ainda temos um longo caminho a
percorrer, porque o Inaf mostra que não é só uma questão de escola. Isso é
importante, é o principal fator, mas precisamos melhorar a qualidade do ensino
na escola regular e também oferecer escola a jovens e adultos, incluir outras
oportunidades de inserção cultural, que passem pela leitura, escrita, inserção
digital etc. Dessa forma, é possível ajudar a população adulta, já inserida no
mercado de trabalho, a superar ao menos em parte esse déficit.
ComCiência: O Inaf tem influído na geração de políticas públicas?
Vera Masagão: É a nossa meta, mas geramos principalmente o debate
público, que deve pautar essa discussão. Há quatro anos atrás, o Inaf
apresentou uma proposta pra um edital público do Ministério da Educação, para
realizar uma medição das habilidades dos alunos da rede pública de ensino. Foi
aprovado, mas infelizmente, nessas confusões do governo, o dinheiro ainda não
saiu, estamos aguardando, para fazer de fato essas avaliações. Seria talvez o
impacto mais direto de influência em políticas públicas, mas infelizmente isso
não foi viabilizado. O Inaf também já foi usado pra avaliar o Brasil Alfabetizado, e em algumas outras situações mais pontuais.
ComCiência: Entre 2000 e 2010 o IBGE aponta que a taxa de
analfabetismo de jovens com 15 anos ou mais caiu de 13% para 9,6%. O censo
afirma ainda que o analfabetismo caiu em todos os outros grupos pesquisados. A
educação brasileira está melhorando?
Vera Masagão: O índice de analfabetismo mostra uma herança
histórica, pois existem gerações adultas e de idosos impactando esse índice. Eu
acho que esses índices do Censo mostram uma diminuição lenta do analfabetismo,
mas também que o Brasil continua sem conseguir uma inflexão nessa queda. A meta
mais ampla continua mesmo acuada, e permanecemos atrás daqueles países que nos
são concorrentes e semelhantes na América Latina. Nesse analfabetismo medido,
nós temos o produto tanto da não escolarização dos mais velhos como da
escolarização precária das gerações mais velhas, que ficam pouco tempo na
escola e não conseguem nem sequer se considerar alfabetizados.
ComCiência: Quais são as causas que podem ser apontadas para essa
queda, mesmo que lenta?
Vera Masagão: Certamente há um avanço da escolarização. Mesmo
considerando todos os problemas, avançamos principalmente nas populações mais
jovens. De fato é um progresso, com toda a deficiência, é melhor do que não ter
escola. Acho que isso é resultado de um esforço que vem sendo feito há décadas,
de melhoria e de expansão da educação.
ComCiência: Ainda segundo o IBGE, o Brasil possui mais de 81
milhões de pessoas (com mais de 10 anos) sem instrução ou com ensino fundamental
incompleto. O que pode ser feito para captar novamente essa massa para a
escola?
Vera Masagão: Eu acredito que os dados mostram que ainda não
tivemos nenhuma política voltada à população adulta efetiva. Isso quer dizer
que os nossos índices ainda conseguem captar lentamente os progressos feitos
com as crianças, mas essa população jovem, defasada, principalmente os adultos,
já inseridos no mercado de trabalho, não estão incluídos em um programa que realmente
tenha feito a diferença de fato. Uma mobilização social mais ampla de
escolarização e elevação dos índices de habilidade da população adulta é
fundamental. O mercado de trabalho está, cada vez mais, exigindo trabalhadores
mais capacitados, existe um reclame, mas não existe nenhuma política – nem por parte da classe empresarial, nem por
parte do governo – que de fato mostre que está fazendo a diferença nesse outro
nível. Eu acho que o Brasil Alfabetizado, que foi um programa que surgiu com
essa pretensão, teve uma série de equipes, e acabou não tendo maiores impactos
nesse índice.
ComCiência: Seria o caso então de mais políticas públicas voltadas
para a educação de jovens e adultos?
Vera Masagão: Sem dúvida. E não apenas mais políticas voltadas para
a educação de jovens e adultos, mas também de inserção digital, engajando
sistemas de ensino mais do que esses programas de alfabetização que duram somente
seis meses, coisa que não cria nas redes de ensino esse compromisso de longo
prazo. Deve haver, de fato, uma agência de alfabetização e de educação para os
adultos em defasagem.
ComCiência: Já que você citou a inclusão digital, a Ação Educativa
age de forma a contribuir também para isso?
Vera Masagão: A Ação Educativa trabalha em especial com os jovens, mas
não temos um foco específico na inclusão digital. Todos os nossos projetos com eles
passam por melhorar a capacidade de comunicação e de informação, o que geralmente
inclui um trabalho de mídia, ou seja, aprender a se comunicar. Ou seja, isso
inclui o uso do computador. Fazemos, portanto, um trabalho mais amplo de
orientação profissional, pois cada vez mais notamos essa demanda deles, que
percebem a deficiência no que se refere à comunicação, às ferramentas de
comunicação, oral e escrita.
A internet em si não faz a
mágica, mas apresenta um potencial enorme, porque democratiza a produção da
informação, o acesso à informação. Então, com uma boa orientação, se pode fazer
um uso bem adequado disso, bem amplo. De forma geral, há um avanço importante com
o uso da internet, principalmente entre os jovens. Por outro lado, ainda fica
aquém, um pouco limitado, o uso que focaliza apenas redes sociais, mas enfim, há
um potencial instalado, de produzir conteúdo, disseminá-lo, e de acessar
informação. É uma coisa que está posta à disposição da escola, mas
evidentemente só isso, esse potencial, não se realiza se não houver um trabalho
educativo mesmo.
ComCiência: Existem alguns projetos do governo com a intenção de
incluir computadores nas escolas. Você acha que eles são eficazes?
Vera Masagão: Eu acho sim, mas não isolado. São necessárias outras
coisas na escola, um projeto pedagógico, um currículo, professores que de fato
tenham um vínculo com a escola, com metas a atingir, etc. Lógico que o
equipamento faz parte de um projeto pedagógico, é uma ferramenta básica, eu
diria que hoje é tão importante quanto ter acesso a livros. Antes era só
através de livros que se podia ter acesso à informação e hoje existe essa outra
possibilidade de acessar materiais com informação. Hoje, uma forma
relativamente barata de oferecer acesso à informação para as pessoas é via
internet. Às vezes é mais barato do que montar uma biblioteca rica o suficiente
pra realmente cobrir os interesses, todas as áreas curriculares, os interesses
pessoais de cada pessoa. A gente precisa de programas curriculares, projetos,
metas, lógico, com a ferramenta oferecida, mas engajada nessa meta maior de
aprendizagem. Se o programa for só colocar o computador na escola sem saber para
quê, sem o compromisso de que isso será usado de forma a atingir aprendizagem, diminuímos
muito a nossa chance ou a nossa velocidade de avanço. É lógico que se um
instrumento cai na mão de alguém bem intencionado, acaba fazendo um bom
trabalho, mas ficamos sujeito à sorte se não houver uma política com esse
direcionamento.
ComCiência: Ainda sobre escolas, como você acha que os indicadores
de educação podem interferir na gestão?
Vera Masagão: Acreditamos que indicadores, como o do Inep, o Ideb, a
Prova Brasil, e essas informações sobre o sistema em geral só têm sentido para
uma comunidade engajada em perceber melhorias da sua escola, interessada em
saber qual é a relação da sua escola com o conjunto de escolas brasileiras, da
educação no mundo. Mas a Ação Educativa tem um projeto que trabalha com
metodologias simples de avaliação institucional, ou seja, a própria comunidade
escolar, os pais, alunos, professores e outras lideranças locais, devem, em
nossa opinião, estar envolvidas e monitorar, acompanhar os progressos da escola.
Em resumo, apostamos em um projeto de indicadores de qualidade da educação, que
é uma metodologia de avaliação participativa da instituição. Não é que a gente
contrapõe isso aos outros índices. Mas entendemos que deve existir a voz dos
alunos, dos pais, dos professores, ao lado dos grandes indicadores – que
eventualmente servem para os gestores, avaliações institucionais. Esse grupo
também deve ser ouvido e, ao mesmo tempo, essas avaliações institucionais devem
ser, de alguma forma, confrontadas com avaliações externas, com indicadores
mais macro.
ComCiência: É possível apontar algum exemplo que tenha dado certo?
Vera Masagão: É, nós temos toda uma linha de trabalho, de uso das
avaliações institucionais, envolvendo a comunidade escolar para fazer com que
isso dialogue com os indicadores gerais da educação. Nós temos trabalhos em
alguns municípios, os quais acompanhamos, mas são experiências ainda pontuais,
eu não sei te dizer de resultados esquematizados, divulgados ou publicados.
ComCiência: Há algum ponto que você ache relevante no cenário da
educação no último decênio que você gostaria de destacar?
Vera Masagão: Estamos agora com o grande desafio de valorização dos
profissionais de educação, de tornar a carreira mais educativa, e somar isso a
uma clareza de onde queremos chegar, uma maior exigência profissional, com a
contrapartida de uma maior valorização profissional também, melhores salários,
melhores condições de trabalho, vínculo maior com a escola, apoio,
principalmente, às escolas que estão nas situações de maior risco nos bairros
mais pobres, nas situações mais frágeis, mas tudo isso ancorado num projeto
claro do que é preciso ensinar. É necessário garantir que todas as crianças
aprendam em cada nível de ensino. E que condições básicas a gente vai dar, qual
é o custo disso, porque é lógico que educação de qualidade tem um custo, e a
gente sabe que hoje o Fundeb, apesar de ter democratizado um pouco o acesso a
recursos, ele mesmo reconhece que o valor que é repassado pras escolas não
corresponde ao que seria necessário pra ter o mínimo de educação de qualidade.
Ainda estamos sub-financiados.
A Ação Educativa tem trabalhado
bastante nessa área de participação, quer dizer, de envolvimento da sociedade,
da comunidade diretamente atendida pela unidade escolar e pela opinião pública
como um todo, de um engajamento maior naquilo que é educacional; temos
trabalhado inclusive com acesso à justiça como uma forma de garantir direito à
educação, com o tema da diversidade cultural, a
questão racial.
Focalizamos enfim, todos os elementos que podem excluir ou gerar desigualdade e
que devem ser combatidos. Agora, a gente sabe que a questão do financiamento é
importante, e a questão do professor, também. Políticas que valorizem o
professorado, que como contrapartida então você possa de fato exigir uma
dedicação, um compromisso maior com uma turma de alunos, que seja possível o
professor assumir e se responsabilizar por ela.
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