10/04/2016
Em sua experiência como professor, o que mudou na formação do jornalista e quais as necessidades hoje?
Eu me formei em jornalismo em 1982, então lá se vão 30 e poucos anos. Percebo que houve uma transformação muito grande no ensino do jornalismo fora do Brasil. Isso começou talvez nos anos 1990, com a percepção de centros importantes de formação de jornalistas sobre o impacto que as novas tecnologias representariam.
Nos Estados Unidos, destacaria a Universidade de Columbia, em Nova York, e algumas experiências em Berkleley; na Espanha, a Universidade Navarra. São instituições que não são de ensino de jornalismo, mas que começaram a aglutinar experiências que apontavam caminhos para a formação.
Na América Latina, uma delas é a construída por Gabriel Garcia Marques, que se consagra como Fundación Nuevo Periodismo, na Colômbia. Também não era uma escola, mas passa a promover seminários, cursos e troca de ensinamentos entre jornalistas de vários países.
Hoje, em Columbia, por exemplo, que me parece o ponto mais avançado, existem instituições como Tow Center, dedicado ao emprego de tecnologias no jornalismo, e o centro Helen Brown, uma aproximação entre a universidade Stanford e Columbia, também ligando jornalismo e tecnologia. Existem vários outros exemplos, que mudaram o cenário do ensino do jornalismo. O Brasil ficou relativamente atrasado em relação a essas experiências.
Atrasado em que sentido?
Dou alguns referenciais para que fique claro esse raciocínio. Sou professor de jornalismo há vários anos, e me sinto à vontade para reconhecer que existem defasagens que não são desprezíveis nas escolas brasileiras. Nosso debate sobre a imprensa ainda é excessivamente ideologizado. Categorias como grande imprensa e grande mídia são precárias para o estudo do jornalismo e para a formação de profissionais, são generalizações que não ajudam muito. A formação acaba sendo prejudicada por excessivo emprego de termos muito ideologizados.
Outra característica de defasagem é que se fala de jornalismo radiofônico e jornalismo impresso em algumas instituições como se fossem diferentes de jornalismo digital. Na verdade, em qualquer redação hoje, mesmo no interior do Brasil, a experiência do jornalismo digital acompanha o jornalismo impresso e o jornalismo impresso já não pode mais ser pensado como modalidade em relação às novas possibilidades de difusão.
Outras marcas distintivas de defasagem, por exemplo, são as escolas brasileiras que ainda pensam a assessoria de imprensa como uma especialização do jornalismo. Isso é um paradoxo, uma espécie de monstrengo conceitual. Em nenhum outro centro de formação existe esse tipo de confusão. A assessoria de imprensa é uma atividade; a reportagem, o jornalismo, o jornalismo de opinião, são outros campos. Em muitas escolas, mesmo nas diretrizes curriculares do MEC, a assessoria de imprensa aparece como uma especialização do jornalismo, ao lado do jornalismo econômico, fotográfico, e coisas do tipo. Isso prende o ensino do jornalismo no passado e impede uma visão clara a ser desenvolvida pelos alunos.
Não significa, no entanto, que não existam experiências positivas na formação do jornalismo. Todos esses problemas são superáveis, mas o ensino mudou muito e a universidade brasileira está se atrasando em perceber as direções dessas mudanças.
Entre as empresas de jornalismo, há novos modelos de negócios surgindo, que tentam obter outras formas de financiamento além da publicidade. Seria uma forma de se sustentar pela credibilidade como você já escreveu a respeito no livro Sobre ética e imprensa (Companhia das Letras, 2000)?
Fala-se muito que modelos de negócios da imprensa estão indo a pique. Numa primeira leitura, essa formulação é incontestável, o modo de sustentação das empresas jornalísticas está numa crise muito grande e isso alcança também organizações públicas não estatais ou estatais de vários países democráticos. Cada vez mais jornais não conseguem, no mundo todo, financiar suas versões impressas, o dinheiro da publicidade vai minguando, não volta na mesma proporção nas versões digitais dessas publicações. É um cenário muito desafiador e há uma crise no modelo de negócios.
Por modelo de negócios a gente deve entender a fórmula pela qual se arrecada o faturamento e se financia a atividade profissional de publicidade e de mediação do debate público com artigos de opinião, editoriais, e assim por diante. Isso está em crise.
Ao mesmo tempo, existe um grande crescimento no consumo dos conteúdos jornalísticos. Talvez seja possível afirmar que nunca se leu tanta reportagem como agora, porque além das veiculações conhecidas, as reportagens e os artigos de opinião abastecem grandemente as redes sociais. O jornalismo é algo mais presente na vida das democracias contemporâneas, mas ao mesmo tempo não sabe como se sustentar. Esse é um cenário presente que deve ser problematizado.
Se é verdade que existe uma crise no modelo de negócio, também é verdade que surgem possibilidades que antes eram inviáveis. Uma delas é essa nova modalidade de organização jornalística sem fins de lucro que reúne jornalistas de grande talento e experiência, muitos deles de postos de comando de grandes publicações jornalísticas principalmente nos Estados Unidos. Essas iniciativas estão inventando formas de se financiar sendo uma delas as doações ou endowments de algum tipo. Algumas como a Pro Publica começam a considerar até o acréscimo de publicidade, dentro desse modelo, mas como uma forma de diversificar receita.
Uma diversidade de receita é fundamental, mas o lastro do valor do jornalismo é a velha credibilidade, sem nenhuma grande inovação. Trata-se de saber que aquilo que é veiculado é digno da confiança dos públicos, e daí vem um dos pilares do valor, outros vêm da qualidade efetiva do que é feito, da independência editorial, mas uma coisa contribui para a outra: a qualidade requer independência, a independência retunda em credibilidade, a credibilidade abastece a autoridade com a qual você fala, essa autoridade amplia a sua chance de levar perguntas ao centro do poder porque essas perguntas são respeitadas. Uma coisa resulta na outra.
O que eu procuro destacar é que nós não podemos simplesmente esperar que a publicidade, por um gesto de generosidade, vá seguir sustentando o jornalismo. Isso vai mudar. Mas precisamos saber, ao mesmo tempo, que a atividade jornalística, além de sustentada pela atividade econômica, sempre foi subsidiada também por algum tipo de incentivo público.
No Brasil, por exemplo, existe uma espécie de renúncia fiscal para o papel de imprensa, um tipo de benefício de financiamento público indireto, entre outras formas. Isso corresponde ao entendimento de que a imprensa de qualidade, independente, atende a um direito do cidadão. Deveríamos explorar mais essa possibilidade. Não estou falando da imprensa financiada pelo poder público, porque pode abrir campo para que ele queira controlar a imprensa, e isso é inaceitável. Mas algum tipo de benefício precisa existir e sempre existiu. É para isso que eu chamo a atenção, e essas experiências novas como A Pública no Brasil, por exemplo, são muito bem-vindas e podem representar um alento e renovar o ambiente do jornalismo.
Além da questão da formação, dos novos tipos de empresa, há outras tendências que você nota, pelo menos o jornalismo brasileiro?
Acho que não, mas talvez valha a pena reforçar o seguinte: a imprensa é uma atividade de gente profissional. Não podemos chamar de imprensa aquilo que voluntariamente alguns, com boa formação ou sem formação nenhuma na área de jornalismo, fazem nas horas vagas.
Isso é importante na esfera pública, ajuda a opinião pública, dá vitalidade ao debate, mas não é jornalismo. Jornalismo é uma atividade desenvolvida por pessoas pagas para fazer isso, com alto padrão profissional. Essa profissionalização assegura especialização, diferenciação, distanciamento em relação aos centros de interesse organizados na sociedade civil e permanência de cultura profissional.
Não há futuro para a imprensa sem profissionalização. A sociedade precisa sustentar, em termos profissionais, aqueles que se dedicam à imprensa. É preciso saber se as novas iniciativas preservam e melhoram a condição profissional, pois vamos depender disso para o futuro da imprensa.
Esses novos modelos de negócio, ao abrirem espaço para publicações não tradicionais, ampliariam a diversidade de veículos enquanto isso não é possível por meio da regulação da mídia?
O tema da regulação da mídia é crucial e tem sido reiteradamente mal interpretado e objeto de uma instauração proposital de confusão. Muitos que temem esse assunto fazem uma campanha desinformativa. Não há democracia sem regulação de mercados, e o mercado dos meios de comunicação não é uma exceção. Nas democracias, o mercado não é uma selva, em nenhum setor cada um faz o que bem entende e o mais forte ou o mais rápido vence e ponto final. O Brasil vem insistindo em se manter com uma regulação insuficiente, omissa em muitos casos, e isso tem sido muito ruim para a saúde do setor e, de uma forma expandida, para a saúde dos debates democráticos.
Como isso acontece?
O ponto mais delicado da ausência de regulação, ou da regulação insuficiente, no Brasil, aparece na radiodifusão, mas está em outros campos também. Não existem parâmetros legais, claros, sobre o número que define o que é monopólio e oligopólio.
Um exemplo: uma igreja pode dirigir uma emissora ou uma rede de emissoras, seja uma Igreja Católica ou Universal do Reino de Deus? Se a Constituição define a radiodifusão como serviço público, e este deve observar os princípios estabelecidos na Constituição, isso é compatível com a gestão de emissoras ou de redes por igrejas? Como fica a relação entre igrejas, partidos e emissoras ou redes de televisão e de rádio? Igrejas gozam de benefícios fiscais; emissoras comerciais, não. É aceitável que um serviço público privilegie uma rede de emissoras, uma religião em detrimento de outras? Qual é a lei que regula isso, além da Constituição? Não está claramente normatizado.
São alguns exemplos, há muitos mais que demonstram com dramaticidade a necessidade que o Brasil tem de um bom marco legal, no meu entendimento. E veja só: o marco legal se refere a relações e atividades de mercado, e não relações e atividades de conteúdo.
A regulação democrática não estabelece censura, pelo contrário, ela combate a censura. Existem setores no Brasil ligados ao governo federal que falam da regulação e, na verdade, têm intenção de censurar a imprensa, e se aproveitam para colocar de contrabando nesse debate um apetite de vingança ou de controle dos conteúdos jornalísticos. Isso é incompatível com o espírito da regulação na sociedade democrática. A regulação diz respeito à mercado, à detenção de monopólios e oligopólios, à promiscuidade entre Congresso Nacional e emissoras, entre igrejas partidos e emissoras. Não interfere no conteúdo. Ao contrário, protege o conteúdo, a liberdade, o direito do cidadão à informação.
É só porque não existe regulação que algumas igrejas conseguiram sequestrar emissoras e redes de emissoras para fazer campanha contra outras religiões de maneira desigual, desproporcional. Isso viola a liberdade, o direito à informação e só acontece por escassez de regulação. Essa é a questão que precisa ser enfrentada e que o Brasil demora a enfrentar.
A regulação entraria numa proteção contra instrumentos jurídicos que muitas vezes são usados para censurar a imprensa?
Não, a regulação não toca no conteúdo. Ela assegura plena liberdade de elaboração e de difusão. Ela impede desequilíbrios, a sabotagem da pluralidade de vozes, a deslealdade na concorrência, mas não tem a ver com censura. No Reino Unido, por exemplo, há medidas que cerceiam a publicação de determinadas histórias. Não são iguais ao que se passou aqui no Brasil, mas são parecidas, porque proíbem por antecipação a publicação de determinadas histórias sobre pessoas que acionaram o poder judiciário e conseguiram um injunction com relação a esse assunto. Lá, Alan Rusbridger, que era o editor do Guardian, apelidou de super-injunctions, porque proíbem a publicação da história e, ao mesmo tempo, que seja noticiado que aquele jornal foi vítima de uma proibição. E lá existe regulação, muito boa por sinal, mas esse tipo de proibição acontece.
Na minha opinião, isso é um atraso fora do Brasil, mas especialmente aqui, e constitui censura por via judicial. Outros alegam que isso não é uma censura, e sim uma decisão de nível superior que acarreta uma proibição com base no direito. Para as pessoas que dizem isso, a censura é unicamente aquela ação desempenhada por profissionais do Estado encarregados de fazer censura. Então, como não obedece a esse formato, aquilo não seria censura. Digo que é uma censura porque viola o direito à informação do cidadão por meio de uma autoridade, pelo impedimento do exercício de informar de um jornal. A vítima é o cidadão e isso caracteriza censura. É minha opinião, mas é um ponto controverso, há outras interpretações.
Em relação à cobertura da operação lava-jato e do processo de impeachment, qual sua visão sobre os veículos estarem assumindo posições partidárias? Na sua visão, isso ajuda ou atrapalha na função da imprensa?
Tenho visto certas redações assumindo uma postura de campanha aberta pelo impeachment, às vezes mais sutil, às vezes mais declarada. Isso pode ser um problema ou não, porque se o veículo renuncia ao seu compromisso com a objetividade, o apartidarismo e o equilíbrio, e seu público incomoda-se com essa postura, isso vai desacreditar o veículo e, por extensão, a própria imprensa. Por outro lado, a liberdade de opinião é plena, não há imprensa sem opinião. Não há nada de errado com um veículo que queira fazer uma campanha, assumir um partido. Que exerça seu direito de fazer isso deixando claro para o público que é uma opinião com base em tais fundamentos, não há prejuízo algum.
Pode ser um problema quando esse deslocamento não é claro, quando há um disfarce, é algo mitigado, contrabandeado como sendo fato e, na verdade, é uma opinião. A gente deve acompanhar com atenção. No Brasil, após o governo de Fernando Henrique Cardoso, se estabeleceu relativo equilíbrio nos principais meios jornalísticos, há uma preponderância de identidade com as teses do PSDB. No seu hall de valores e de proposições para o Brasil, a imprensa emula mais aquilo que seria um ideário mais típico do PSDB do que do PT.
É importante que a cobertura factual desses principais veículos não se deixe levar por esse tipo de identidade. Ela é oferecida para o cidadão como sendo factual e, portanto, não enviesada. Se a cobertura factual se deixa levar por paixões ideológicas ou partidárias, ela se rebaixa no serviço que deveria prestar à sociedade. Há uma quebra de expectativa que vitima muito mais a própria imprensa do que o governo Dilma Rousseff ou do que a oposição. Existe uma armadilha.
Tenho visto isso com certa tensão, acho que pode estar acontecendo, mas procuro fazer uma análise desapaixonada e tópica. Não podemos fazer generalizações. Veja um jornal como Folha de S.Paulo, por exemplo. Ela tem sido acusada por muita gente de ser petista e, ao mesmo tempo, de ser direitista ou golpista por outras pessoas. É preciso ver os diversos ângulos, para não fazer um julgamento indevido, que traz consequências piores para a qualidade da análise e para o entendimento do que está se passando.
Outro aspecto a se levar em conta é que se fala que a cobertura do governo é muito negativa, mas nesse ponto o principal responsável é ele próprio, porque não consegue há muito tempo gerar fatos positivos. Não consegue nomear um ministro da Justiça, depois não consegue nomear o chefe da Casa Civil, não consegue anunciar um pacote que dure algumas horas. Temos um governo cujo desempenho é, objetivamente, bastante precário. Então como a imprensa pode apresentar um relato positivo das ações? Tudo isso é preciso levar em conta, mas o tema, de fato, é preocupante.
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