Depois
dos caminhos percorridos pelos viajantes, a preservação
e divulgação dos acervos sobre as viagens de
estrangeiros pelo Brasil é o caminho – muitas vezes ainda
inédito – a percorrer para conhecer o trabalho desses homens
que atravessaram o Brasil e outros países da América
Latina, em busca do conhecimento das terras e dos povos do novo
mundo. Segundo Ana Maria Belluzzo, professora de história da
arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em artigo
publicado na Revista da USP, em 1996, o legado iconográfico e
a literatura de viagem dos cronistas europeus trazem a possibilidade
de novas aproximações com a história do Brasil.
No entanto, isto só é possível a partir do
acesso ao material produzido por eles.
O
Brasil possui um acervo rico sobre viajantes ainda com infinitas
possibilidades de pesquisa. Uma das primeiras iniciativas de
divulgação desses acervos ocorre com a publicação
no Brasil dos diários viajantes, a partir da década de
1940. Para Valéria Alves Esteves Lima, historiadora da
Unicamp, que estuda a obra do pintor Jean-Baptiste Debret, a
iniciativa de traduzir e publicar livros de viajantes, entre outras
obras consideradas “clássicas” sobre o país, é
resultado de um movimento promovido pelo Estado Novo para estimular a
cultura e afirmar a brasilidade. Um dos expoentes desse movimento é
José de Barros Martins, editor e proprietário da
Livraria Martins, que traduziu e publicou a coleção
Biblioteca Histórica Brasileira, com livros escritos por
viajantes estrangeiros, tais como Debret, Rugendas, Kidder,
Saint-Hilaire, Luccock, Ribeyrolles.
Reprodução de obra de Jean-Baptiste Debret
Mas
muitas vezes é necessário ir além dos livros e
consultar registros mais antigos, originais, edições
fac-símile, anotações, diários, pinturas,
aquarelas, cartas, enfim, materiais diversos que podem dizer mais
sobre o projeto dos viajantes em terras estrangeiras. As obras sobre
viajantes são classificadas como obra rara, tanto pela idade,
como pela importância histórica e seu conteúdo.
Para evitar a constante manipulação do original, o
trabalho de preservação feito pelas bibliotecas e
arquivos inclui a microfilmagem, a duplicação
fac-similar e, mais recentemente, a digitalização, que
tem a vantagem de facilitar também a divulgação
do acervo via internet.
Acervos
só adquirem sentido quando são acessados para pesquisas. Para o historiador
Danúzio Gil Bernardino da Silva, organizador da coleção
Diários de Lansgsdorff, a preservação não
tem valor se não houver divulgação do acervo.
“Não adianta deixar a informação oculta nas
coleções de obras raras”, alerta. Para ele, a
dificuldade de acesso por parte dos pesquisadores gera subutilização
dos acervos. “O ideal é que a consulta seja aberta para
todos, não apenas nas universidades, mas que inclua alunos e
professores do ensino médio”, defende.
O
mais recente esforço de preservação e divulgação
de acervo de viajantes é o projeto Flora Brasiliensis On-line, do Centro de Referência em Informação
Ambiental (Cria), da Unicamp, financiado pela Fapesp, Natura e
Fundação Vitae. O projeto torna acessível e
público um acervo que antes só podia ser consultado em
bibliotecas especializadas, e confirma a impossibilidade de entender
determinadas questões de botânica, ecologia, geografia,
biologia e da história do Brasil sem recorrer aos acervos dos
diversos viajantes que percorreram o país nos séculos
XVIII e XIX. Da mesma forma, a construção de imagens do
Brasil e da América passa pelos relatos dos artistas,
cronistas e cientistas estrangeiros que atravessaram o continente
desde o século XVI.
Acervos
digitalizados
A
Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, fez uma
parceria com o Instituto Embratel 21, com base na Lei Municipal de
Incentivo à Cultura, que resultou na digitalização
de 25.500 documentos e obras raras, apenas na primeira fase. O
projeto, que contemplou também a restauração e o
tratamento das obras, priorizou três importantes coleções
históricas e raras da cidade de São Paulo, uma delas a
coleção “Os viajantes”, composta por mil
gravuras e cem livros dos séculos XVI a XIX. Foram
digitalizados 45 álbuns de viajantes que estiveram no Brasil.
O conjunto de imagens complementa os livros sobre o Brasil, também
digitalizados na íntegra. Responsável pela seleção
das obras que seriam digitalizadas, Rizio Bruno Sant’Ana, explica
que o acervo sobre viajantes foi escolhido “pela importância
histórica e porque são obras muito procuradas pelos
usuários”. No site da Biblioteca, mil imagens estão
disponíveis para consulta.
Na
mesma linha, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, que
possui cerca de sete mil obras raras em sua biblioteca, também
buscou a digitalização para ampliar o acesso ao acervo.
“Temos uma infinidade de relatos de viajantes, que muitas vezes são
exemplares únicos no Brasil. Para mim, a divulgação
desses livros tornou-se uma necessidade”, relata Márcia
Moisés Ribeiro, coordenadora do projeto Brasil Ciência,
financiado pela Fapesp, o qual constitui-se numa base de dados
relacionada à prática e ao saber científico no
período do século XVI ao XIX. Através desse
instrumento de pesquisa, o usuário tem acesso não só
a informações relativas a todos os documentos contidos
na base, como também ao conteúdo integral de diversos
manuscritos e livros impressos existentes no arquivo e na biblioteca do IEB, os quais também estão disponíveis para
impressão. Embora o processo de digitalização do
material ainda esteja em andamento, a base de dados já está
on-line, com cerca de 400 títulos de obras raras, entre
impressos e manuscritos. Segundo a coordenadora, a digitalização
começou pelos livros mais procurados e pelas obras
inexistentes em outras bibliotecas e arquivos de São Paulo.
Outro
acervo indispensável para pesquisadores da obra dos viajantes
está na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Apesar de
espalhado em áreas especializadas da biblioteca, o volume de
material supera possíveis dificuldades com a localização
das obras. A bibliografia reúne cerca de 600 títulos,
compilada pela Divisão de Informação Documental
e publicada na última edição dos Anais da
Biblioteca Nacional (2006). A bibliografia não foi exaustiva,
mas tentou reunir a maior parte do acervo sobre viajantes da maior
biblioteca do Brasil. “As principais fontes para a compilação
foram os catálogos da BN e a obra de Paulo Berger, que
relacionou bibliografia sobre viajantes e autores estrangeiros no Rio
de Janeiro”, explica Eliane Perez, coordenadora de pesquisa da
biblioteca. Assim como em São Paulo, muitas dessas obras já
estão digitalizadas como parte de projetos mais amplos de
digitalização de raridades da Biblioteca Nacional.
Grande
variedade de material
Descrever
o cotidiano do povo brasileiro pela ótica da cidade, era, por
exemplo, o projeto de Jean-Baptiste Debret, pintor francês que
chegou ao Brasil com a Missão Artística Francesa de
1816 e que aqui permaneceu por quase 15 anos. Ele reúne parte
das suas impressões sobre o Brasil na obra Viagem pitoresca
e histórica ao Brasil, com três volumes. Para
explicar como Debret organizou a publicação,
Valéria Lima, percorreu coleções raras em São
Paulo e Rio de Janeiro, estados com a maior parte do acervo sobre
viajantes no Brasil, e em Paris, França. Ela salienta a
importância de comparar o material encontrado em diferentes
acervos. “Além da questão da tradução,
muitas edições omitem partes dos originais. No caso de
Debret há um capítulo chamado Notas Históricas
que não aparece em nenhuma tradução”, comenta.
Para ela, só uma visão ampla do acervo pode responder a
determinadas questões colocadas pelo pesquisador. Um conjunto
fundamental da obra do artista, que não foi publicado, está
no Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro. São
490 aquarelas e 61 desenhos originais que o empresário
Raymundo Ottoni de Castro Maya comprou dos familiares do pintor em
1939 e 1940. O acervo está digitalizado e pode ser consultado
apenas no próprio museu. As aquarelas originais não
estão disponíveis para consulta.
Reprodução de obra de Rugendas, cuja coleção
está dispersa entre Brasil e Europa
Enquanto
a obra de Debret sobre o Brasil está concentrada em
instituições no Brasil, os originais de outro
importante artista-viajante do século XIX, Johann Moritz
Rugendas, está dispersa em várias coleções
no Brasil e na Europa. Segundo Pablo Diener, professor da
Universidade de Munique, Alemanha, que fez um trabalho de compilação
e catalogação da obra de Rugendas, o acervo do pintor
soma aproximadamente seis mil peças entre pinturas a óleo,
aquarelas e desenhos. A maior parte dos trabalhos encontra-se em duas
coleções alemãs, em Munique e em Augsburgo. O
restante está disperso em numerosas coleções
públicas e particulares da Alemanha e no continente americano.
No Brasil há um conjunto de 437 folhas na Coleção
de Arte Gráfica do Museu de Munique. São desenhos da
flora e fauna, motivos etnográficos e cenas de tema histórico,
como a coroação de Dom Pedro I. Existem ainda 79
ilustrações originais na Academia Russa de Ciências,
em São Petesburgo, Rússia, que o pintor entregou para o
barão Langsdorff, ao deixar a expedição
russa.
Talvez
por ser o último dos grandes viajantes, Lansgsdorff demorou
mais tempo para ser descoberto pelos pesquisadores. A equipe da
expedição tinha, além do próprio médico,
um botânico, um astrônomo e cartógrafo, zoólogo
e dois pintores. Dessa variedade de profissionais resultaram da
viagem volumosas coleções científicas que
ficaram durante anos no Museu Botânico de Leningrado, na
Rússia. A coleção de documentos sobre a
expedição foi trazida para o Brasil em 1990, pelo
pesquisador russo Boris Komissarov, através de uma ação
conjunta da Fiocruz, Funasa, Fundação Nacional de Saúde
e da AIEL, Associação Internacional Estudos Langsdorff,
em forma de microfilme. Além da Fiocruz e da AIEL, o acervo
também pode ser consultado no Centro de Memória da Unicamp
e na Universidade de Brasília. Em 1997, foram publicados os
diários de Lansgsdorff. Danúzio Bernardino da Silva,
que organizou a coleção, explica que o objetivo da
publicação foi dar um sentido para o acervo, monumental
em termos de informação.
Dicionários
de línguas indígenas, diários de viagem,
documentos sobre demografia, economia, mapas, desenhos, comentários
sobre a escravidão, são exemplos do tipo de material
que compõe o conjunto do acervo. “Como todo diário, é
composto por anotações, observações e
fragmentos do cotidiano. É exatamente essa visão
fragmentada que compõe o mosaico de sua época. Os
diários são a chave para conhecer o acervo”, acredita
Danúzio. Na fase final da viagem, Langsdorff contraiu malária,
o que o impediu de terminar os diários. A tarefa foi assumida
por Hércules Florence, pintor francês que entrou na equipe da
expedição no lugar de Rugendas.
Além do acervo
sobre a Expedição Langsdorff, outras obras fazem da
seção de obras raras da biblioteca da Fundação
Osvaldo Cruz (Fiocruz), um importante centro de documentação
científica, com fontes de pesquisa dos séculos XVII ao
XX. Em publicado na revista História, Ciências,
Saúde - Manguinhos, 2002, Maria Elide Bortoletto, pesquisadora
da Fundação, conta que entre os itens do acervo,
destacam-se raridades como o livro História naturalis brasiliae (Amsterdam, 1648), de Piso e Marggraf, naturalistas que
vieram ao Brasil a convite de Maurício de Nassau durante o
período da ocupação holandesa no Nordeste. “O
livro, como sabemos, foi considerado o primeiro escrito sobre
história natural do Brasil e seus textos e ilustrações
serviram de base para outros trabalhos que se seguiram, alguns dos
quais produzindo importantes obras de referência, como a
coleção de Flora Brasiliensis, de von Martius”,
destaca ela. Do século XIX são significativos livros e
atlas de viajantes como Alexander von Humboldt, Maximiliam von Wied,
Auguste de Saint-Hilaire, Johann Baptist von Spix, von Martius, Louis
Agassiz, entre muitos outros. “A Fundação tem ainda
material sobre viajantes descobertos por uma produção
recente nessa temática, sobretudo de historiadores, como as
obras de François Auguste Biard, Hermann Burmeister, Henry
Coster e Jean Théodore Descourtilz, todas ricamente ilustradas
e com textos importantes sobre fauna, flora e costumes dos povos dos
países visitados”, completa.
Bases
de dados podem facilitar pesquisas
Diante
da diversidade de instituições que detêm acervos
sobre viajantes e naturalistas, um caminho para incentivar a consulta
e facilitar o acesso a acervos sobre o mesmo tema é a criação
de bases de dados, cruzando as informações das
bibliotecas e institutos. O Centro de Pesquisas em História
Social da Cultura (Cecult), da Unicamp, iniciou a implantação
de um projeto deste tipo. “A principal motivação para
constituir uma base de dados sobre viajantes foi construir um
instrumento de pesquisa, que reunisse o maior número possível
de referências sobre esse grande cabedal de fontes e, através
de vários cruzamentos de dados possíveis, fornecer um
acesso mais rápido, organizado e amplo a pesquisadores que se
interessem por esse tema”, explica Eneida Maria Mercadante Sela,
pesquisadora do Cecult. Segundo ela, não se tem notícia
de uma base de dados especializada em obras de viagem no Brasil.
O
projeto teve como referência inicial um vasto catálogo
de obras de viajantes e, secundariamente, de cronistas e
memorialistas, brasileiros e estrangeiros, que produziram textos
sobre a África, Portugal e Brasil entre os séculos XVI
e XIX. Em função dos interesses das várias
pesquisas que integram o Cecult, foram selecionadas somente obras de
viajantes que contenham registros sobre as províncias de São
Paulo, Minas Gerais e/ou Rio de Janeiro durante os séculos
XVIII e XIX. Foi elaborada, então, uma ficha para coleta de
dados dessas obras nas bibliotecas da Unicamp, do IEB-USP, Biblioteca
Mário de Andrade (em São Paulo) e Biblioteca Nacional.
Os campos dessa ficha, após várias reuniões e
testes, foram definidos de modo a obter informações
básicas sobre cada autor e livro, privilegiando elementos
editoriais e de conteúdo. Segundo Sela, o trabalho de inclusão
de dados foi concluído, totalizando aproximadamente 400
autores, cada um com várias edições de suas
obras. O material encontra-se em fase de revisão, mas já
disponível para consultas no Cecult. A idéia,
entretanto, é disponibilizar o acesso on-line ao banco
de dados.
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