Tudo que um atleta precisa é de preparo físico e técnico, boa alimentação, disciplina e muita determinação, certo? Errado. Se o preparo psicoafetivo estiver aquém do condicionamento físico e técnico há o risco de um grande talento sucumbir à forte pressão do mundo dos esportes ou, ainda, da exigência de seu próprio mundo interior, e é aí que entra o psicólogo do esporte.
Atualmente é comum o enfrentamento de equipes bem preparadas, nas quais cada ponto é disputado no detalhe. Assim, frente ao equilíbrio técnico de atletas e de equipes de alto rendimento, o diferencial nos momentos de decisão pode estar no equilíbrio emocional. Equilíbrio para conviver com a dor e com a superação, com os companheiros de equipe e com os rivais, com a vitória e com a derrota, com a consagração e com o esquecimento. Para a recém bicampeã brasileira de vôlei de praia, Agatha Rippel, 30 anos, o preparo psicológico iniciado há um ano fez a diferença na conquista do último título. “As equipes estão muito parelhas, todas em seu limite de treinamento, então esse preparo faz toda a diferença”, diz.
A psicologia do esporte tem como objetivo compreender e lidar com os fatores cognitivos, motivacionais e emocionais envolvidos na prática do exercício físico, e está cada vez mais presente no esporte profissional e amador. Motivação, personalidade, violência, liderança, dinâmica de grupo, cognição e emoção são alguns dos temas que permeiam a pesquisa dessa ciência. A jogadora lamenta o que considera uma falta de visão da maioria dos atletas brasileiros: “É uma pena que alguns não busquem esse auxílio, ou por serem leigos ou por não achar importante. Isso precisa melhorar muito no Brasil. Eu vejo uma grande diferença no meu time”, conta.
A “caçula” das especialidades em psicologia no país nasceu nos anos 1950. O pioneiro foi João Carvalhaes (1917-1976), que atuou no São Paulo Futebol Clube em 1954 e em 1958 integrou a comissão técnica da Seleção Brasileira de Futebol, campeã mundial na Suécia. Naquele ano a psicologia ganhou notoriedade e foi considerada uma das razões para que a seleção trouxesse a taça dourada para casa. Houve também quem criticasse sua presença por acreditar que Carvalhaes fosse interferir na escalação do time, deixando no banco os atletas que “tremeriam” num momento de decisão.
Ainda hoje a psicologia do esporte é, por vezes, mal interpretada, mesmo no meio esportivo. “Há muita desinformação. É o técnico quem decide se o atleta participa ou não de uma competição”, afirma Kátia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP, presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp) e autora de diversos livros na área. Ela explica que, assim como o treinador físico tem a obrigação de informar ao técnico qual é o estado físico do atleta, é um dos papéis do psicólogo reportar o estado mental dos membros do time, o que não significa, de forma alguma, repassar confidências do atleta, atitude antiética.
João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte, professor do centro de Consultoria, Estudo e Pesquisa da Psicologia do Esporte (Ceppe) e doutorando do Laboratório de Psicossociologia do Esporte da USP, já atuou com jogadores de futebol, paraquedistas, ginastas, tenistas, árbitros de futebol e hoje trabalha com o piloto Felipe Massa. Ele explica que todos os atletas, em menor ou maior escala, precisam lidar com pressão, decisão rápida, controle de agressividade, fluxo cognitivo e concentração.
Sobre a aplicação no futebol brasileiro, apesar da importância extrema, Cozac aponta que a psicologia ainda está aquém de seu potencial. E com um agravante, pois ao receber a Copa do Mundo, a pressão, a cobrança e o assédio sobre a equipe serão enormes. “Estamos muito atrasados em termos de preparação mental em relação ao resto do mundo. Times como Milan, Ajax e Real Madrid e as seleções da Espanha e Itália, por exemplo, têm psicólogos nas equipes, além de departamentos inteiros de psicologia para cada categoria. A psicóloga Regina Brandão trabalha há anos com o técnico Felipão, mas o enfoque é na elaboração de perfis psicológicos que possam vir a beneficiar suas escolhas, e não na orientação individual, na promoção do preparo psicológico do atleta. É uma pena, pois o que está sendo feito é pouco perto do que as outras equipes estão recebendo”, afirma.
Momentos críticos
Além de ajudar o esportista a enfrentar desde os desafios diários até as grandes competições, o psicólogo do esporte também é fundamental em momentos delicados e críticos como mudanças de categoria, profissionalização, retorno financeiro, fama, assédio, acidentes ou lesões, recuperação e aposentadoria. E, principalmente, no início da carreira.
Quem tem experiência com categorias infanto-juvenis é a psicóloga clínica e do esporte e doutora em psicologia pela USP Samia Hallage, que trabalhou durante mais de dez anos com as premiadas categorias de base Seleção Brasileira de Vôlei Feminino de Quadra. Segundo Hallage, além dos desafios de qualquer atleta, as meninas das categorias infanto-juvenil e juvenil estão vivendo uma fase que, por si só, já é de muitas transformações, a adolescência. Ela diz que sempre foi muito bem recebida por esportistas, equipe técnica e dirigentes. “O atleta percebe o quanto a psicologia é importante”, completa.
O atleta da Seleção Brasileira de Handebol Arthur Patrianova, 20 anos, começou a jogar profissionalmente aos 16 anos, quando saiu de Itajaí (SC) para defender o time paulista Pinheiros. Lá, o armador teve os primeiros acompanhamentos para enfrentar as mudanças em sua carreira, afinal, sair da seleção de base para defender a seleção principal e se tornar o destaque do último mundial, em 2013, não é algo trivial. Ele confessa que ainda não se acostumou com sua nova vida. "As coisas aconteceram rápido. É estranho, eu olho para trás, quando via os jogadores da seleção pela TV. Agora eu jogo com eles e tenho as mesmas responsabilidades. Percebo que sou muito novo e tenho muito o que aprender", diz.
Ano passado embarcou para a Espanha para integrar o time Nathurhouse La Rioja. Feliz com sua posição atual, ele comenta que a liga espanhola é bem mais competitiva que a brasileira, o que significa treinamentos físicos mais intensos, muito mais jogos, menos tempo para descanso e maiores chances de se lesionar. Patrianova sente falta do preparo psicológico que tinha no Brasil, com acompanhamento individual, pois na Espanha é feito coletivamente. "Acho que em times o acompanhamento individual funciona melhor, enquanto na seleção, em que o sentimento de unidade precisa ser maior, a preparação em grupo funciona bem", compara. Patrianova acredita que, como a troca de time por parte dos jogadores é constante no país, não há interesse em fazer um trabalho individual de longo prazo.
Dor e superação
Outro aspecto de muita importância na atuação do psicólogo do esporte está ligado à dor, tão intrinsecamente presente na vida de um atleta. Agatha Rippel, por exemplo, começou a jogar vôlei com 12 anos e teve sua primeira lesão séria no joelho aos 15 anos. “Costumava ter problemas no menisco, mas em até três horas ele voltava ao lugar. Até que um dia tive que fazer cirurgia”, diz. A dor a acompanha até hoje, 15 anos depois, mas nunca foi motivo para que desistisse. “Jogo com dor constantemente, mas busco o que eu posso para amenizá-la, com trabalhos específicos e bons profissionais. O atleta vive no limite. Nós estragamos e os médicos arrumam. O atleta é isso”, afirma. Ela conta que o tema é um tabu entre os atletas, que preferem não comentar. “Muitas vezes treinamos junto a outras duplas, mas ninguém comenta. Inclusive alguns treinam escondidos para ninguém saber de sua dor”, completa.
O risco de uma lesão grave aumenta durante as competições e se na quadra a dor é suportada por conta da liberação de endorfina que traz a falsa sensação de que o corpo está bem, lá fora a complicação pode ser maior. “A dor é uma doença e deve ser tratada, porque o excesso trará consequências posteriormente. Mas o médico não pode barrar o atleta e sua vontade de jogar, então alertamos para deixá-los tomar a decisão. Já tive pacientes que me disseram que preferiam comprar um joelho novo a parar de jogar”, conta o diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte, Ricardo Nahas.
O maratonista Adriano Bastos, 36 anos, ao final de 2003, quando se preparava para tentar o bicampeonato na Maratona da Disney, teve uma pubeíte (inflamação no púbis) gravíssima que o deixou seis meses afastado dos treinos. Retomou aos poucos e hoje pode se gabar de ter sido oito vezes o campeão da competição. O fundista acredita que um dos motivos da bem sucedida recuperação foi o tempo de descanso. "Infelizmente a maioria dos esportistas acaba ultrapassando seus limites e não se permite o tempo necessário de recuperação. A rotina da dor, lesões e retorno à prática antes do tempo é comum tanto para atletas que não têm patrocínio e que dependem da premiação quanto para campeões olímpicos”, afirma ele que, hoje, com a experiência que adquiriu ao longo de 24 anos, dispensa o acompanhamento de um psicólogo.
Para os jogadores, dificilmente a dor funciona como barreira, mas sim como estímulo. Kátia Rubio define com precisão a coragem comum a todos os atletas de alto rendimento. “Determinação pela busca de seus objetivos. Não se importam com as dificuldades, e sim com os resultados. O psicólogo do esporte ajuda então o esportista a determinar quais são os seus objetivos de superação, mas também trabalha para que ele se localize dentro do processo. E quando a prevenção não é suficiente e o acidente ou a lesão acontecem, a reabilitação deve ser completa, o físico está vinculado ao emocional, sem hierarquia. O restabelecimento físico pode até anteceder a recuperação emocional, pois há o medo da recidiva, da dor, do afastamento”, diz. E acrescenta que, embora seja o atleta que decida se está pronto para voltar, o psicólogo pode ajudá-lo a elaborar suas dúvidas e encontrar suas próprias respostas.
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