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Artigo |
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Hackers, monopólios e instituições panópticas |
Por Sergio Amadeu da Silveira
10/12/2006
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Introdução: Velhos Direitos, Novas Violações e a Ambigüidade das Redes.
A
comunicação mediada por computador e a digitalização intensa de grande
parte dos conteúdos de expressão – textos, sons ou imagens -- ampliaram
as possibilidades das grandes organizações – Estados, companhias
transnacionais e redes criminosas – de observar e rastrear o
comportamento e o cotidiano dos cidadãos. A comprovação empírica dessa
afirmação pode ser encontrada exatamente nos Estados Unidos, um dos
países com grande tradição na defesa da privacidade e, ao mesmo tempo,
a nação com o maior número de computadores e internautas. Em dezembro
de 2005, o jornal The New York Times divulgou que presidente George W.
Bush teria autorizado o NSA (National Secutity Agency) a realizar
milhares de escutas telefônicas e scaneamento de e-mails sem a prévia
autorização judicial.3 O governo alega que a Lei USA Patriot, aprovada
no fim de 2001, permite a espionagem de pessoas sem consulta ao
Judiciário, pois isto seria indispensável para um combate ágil e eficaz
ao terrorismo.
No mês de maio de 2006, o site de buscas Google,
recusou-se a entregar ao Departamento de Justiça norte-americano uma
lista contendo palavras e sites pesquisados por todos usuários durante
uma determinada semana. O governo já vinha utilizando as bibliotecas
para captar informações sobre o que as pessoas consultam.4 A Lei USA
Patriot permite tais ações de rastreamento. É notável que antes mesmo
dos ataques de 11 de setembro, o FBI (polícia federal norte-americana)
já scaneava e-mails que transitavam pelos backbones (redes de alta
velocidade) e seus roteadores instalados nos Estados Unidos. Esta
prática de vigilância ocorria a partir de um sistema chamado Carnivore
que permitia ler todos os e-mails e copiar aqueles que continham
determinadas frases e palavras-chaves. É importante ressaltar que mesmo
denunciado no parlamento por organizações da sociedade civil, tais como
a EFF (Eletronic Frontier Foundation) e EPIC (Eletronic Privacy
Information Center), o Carnivore violou e-mails de cidadãos americanos
e também de estrangeiros. Todas as mensagens “supeitas” que tiveram o
território norte-americano como rota de passagem foram violadas.
Talvez
muito mais do que os Estados, algumas poucas corporações estão buscando
legitimar a alteração no imaginário social sobre o espaço da
privacidade em um mundo inseguro. Empresas que controlam algoritmos
embarcados nos códigos de programação computacional, amplamente
empregados como intermediários da comunicação contemporânea, tais como
sistemas operacionais, estão realizando intrusões em computadores
pessoais sem que nenhuma reação revoltosa seja noticiada. A tecnologia
DRM (Digital Rights Management) usada para tentar impedir o uso não
autorizado, denominado “pirata”, de softwares, games, vídeos, filmes e
músicas, está permitindo que em nome da defesa do copyright seja
destruído o direito a intimidade e a privacidade.
Além disso, o
caráter transnacional da rede de comunicação mediada por computador,
coloca o problema sobre a definição das regras básicas de operação da
rede que são definidas por protocolos de comunicação, padrões e pela
estrutura dos nomes de domínios. Emerge a questão da governança da
Internet que envolve a disputa entre cinco grandes interesses não
necessariamente contrapostos: dos comitês técnicos que definiram até
agora os protocolos da Internet; dos Estados nacionais; das corporações
de Tecnologia de Informação; da sociedade civil mundial e das várias
comunidades hacker; e o interesse do Estado norte-americano. Uma série
de decisões aparentemente técnicas que afetarão a privacidade e o
anonimato dos internautas estão sendo debatidas e poderão ser adotadas
sem que os cidadãos do planeta, que utilizam a Internet, tenham a
mínima possibilidade de debatê-las ou mesmo de recusá-las. Se for
definido que o protocolo de comunicação básico entre as milhares de
redes deverá ter como o padrão o fim do anonimato na comunicação, isto
afetará completamente a forma como conhecemos a Internet hoje.
Estes
exemplos reforçam a necessidade de observarmos mais atentamente a
relação entre comunicação, tecnologia e mudança social. Também indicam
que a comunicação mediada por computador, por seu caráter
transnacional, afeta cidadania e exige a reconfiguração dos direitos
para uma vida coletiva no ciberespaço. Sem dúvida, a rede mundial de
computadores tem servido às forças democratizantes para compartilhar
não somente mensagens e bens simbólicos, mas também conhecimentos
tecnológicos que estão gerando as possibilidades distributivas de
riqueza e poder extremamente promissoras. Exatamente nesse contexto,
que um conjunto de mega-corporações atuam para manter e ampliar em uma
sociedade informacional os poderes que detinham no capitalismo
industrial. Para tanto, precisam conter a hiper-comunicação pública e
torná-la comunicação privadamente controlada, substituindo a idéia de
uma cultura livre pela cultura da submissão ou do licenciamento.
Algumas Considerações Sobre a Noção de Cidadania.
John
Perry Barlow, um dos fundadores da Eletronic Frontier Foundation,
escreveu a A declaration of the Independence of Cyberspace, em
fevereiro de 1996, como reação ao Ato de Decência nas Comunicações, uma
lei que visava o controle de conteúdos na Internet, proposta pela
administração do presidente norte-americano Bill Clinton. Barlow foi
enfático: “Governments of the Industrial World, you weary giants of
flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On
behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone.” Apesar
do seu apelo, dez anos depois é preciso constatar que ele não foi
atendido, nem pelos Estados nacionais, nem pelas mega corporações. Isto
porque o ciberespaço não existe descolado do mundo material. A Internet
depende da infra-estrutura lógica e física que está sobre o comando de
pessoas e empresas que habitam os territórios controlados pelos velhos
gigantes estatais, os Leviatãs.
Sem dúvida alguma, a Internet
representa uma mudança de paradigma das comunicações e é vista por uma
série de teóricos como a maior expressão da chamada revolução das
tecnologias da informação (CASTELLS). A supremacia da comunicação
baseada na difusão, a partir de um ponto, está sendo substituída pela
comunicação em rede. A Internet assegura a possibilidade de qualquer
cidadão disputar a atenção da rede para seus sites, blogs ou mensagens.
A net é um meio técnico com características intrínsecas que permitem a
democratização da criação de conteúdos. Considerando ainda que a
Internet é uma rede transnacional baseada no fluxo de dados, que
transitam sobre um mesmo conjunto de protocolos e regras de codificação
e decodificação de códigos, fica evidente que os Estados nacionais não
teriam o controle total do fluxo de conteúdos, como ocorre no caso da
TV e do rádio. O fluxo da Internet pode originar-se fora do território
nacional. A lei nacional tem enorme dificuldade de ser executada se um
provedor de conteúdo que hospeda um site de pedofilia encontrar-se
hospedado em um país distante.
Todavia, existem possibilidades
de controle de conteúdos e de aplicações que são realizadas por meio da
própria tecnologia. É preciso relativizar a idéia de que os Estados não
possuem formas de bloquear e até mesmo controlar determinados fluxos da
Internet. O governo autoritário da China filtra conteúdos e impede o
acesso a determinados sites porque controla os dois backbones por onde
transitam todos os dados que entram e saem do país. Desconhecer estas
possibilidades de controle significa abandonar a jornada da humanidade
na luta pela legitimação do direito à livre comunicação como um dos
direitos fundamentais do homem e do cidadão. É olhar somente para as
promessas democratizantes da comunicação mediada por computador e
esquecer de sua face panóptica. É desconsiderar a gravidade do fato do
Google organizar buscas censuradas para poder ter acesso ao mercado
chinês, prática já realizada pelo Yahoo e MSN.
Donna Haraway, em
sua brilhante reflexão feminista, qualificou o momento em que vivemos
como a “transição das velhas e confortáveis dominações hierárquicas
para as novas e assutadoras redes (...) de 'informática de dominação'”.
(HARAWAY, p.65) As redes possuem uma linguagem comum entre as máquinas
e estas são intermediários indispensáveis para as linguagens naturais
humanas, em um ambiente de comunicação via máquinas de processar dados.
O jurista Lawrence Lessig já havia alertado, no final dos anos 1990,
que no ciberespaço o código tem o mesmo papel de uma legislação.
(LESSIG). Exatamente pelos intermediários tecnológicos que Estados
autoritários e neo-autoritários (falo dos Estados Unidos), bem como
gigantescas empresas imperiais do capitalismo informacional tentam
controlar os cidadãos.
Weissberg denunciou a contradição
existente entre o desejo de uma comunicação cada vez mais transparente
e desintermediada, a partir do dinamismo e do potencial interativo da
Internet, e a realidade de sua operação. Por isso, afirmou que “o
objetivo de supressão dos intermediários se transforma, conforme seu
próprio movimento, em criação de uma nova camada de mecanismos
mediadores que automatizam a mediação.”(p.123) Mas como fica a noção de
cidadão em um mundo cada vez mais transnacionalizado e com a
comunicação mediada por padrões e códigos (softwares) que são
apresentados por instâncias definidas como técnicas e distantes dos
mecanismos de controle democrático?
Aqui é necessário enfrentar
pelo menos duas questões: primeiro, a da evolução da cidadania;
segundo, a questão do papel da comunicação e da tecnologia para a
mudança ou permanência das relações sociais.
Segundo vários
autores, podemos definir “cidadania” como o direito a ter direitos. T.
H. Marshall observando a evolução do conceito na Inglaterra, defendeu
existir direitos de primeira e segunda geração. Para Marshall, primeiro
teriam surgido os direitos civis e depois os políticos (séculos XVIII e
XIX). Uma segunda geração de direitos surgiram no século XX e
conformariam os chamados direitos sociais. Apesar de acusada de
etnocêntrica e linear, a proposição de Marshall passou a ser referência
para a observação da mutabilidade histórica da cidadania. Nesse
sentido, alguns teóricos observaram o surgimento na segunda metade do
século XX dos direitos de terceira geração, ou seja, direitos de
grupos, de minorias e etnias, direitos difusos que ganham força em todo
o mundo. Questões como o direito ao meio ambiente, o feminismo e a
defesa do consumidor, são incorporados em várias legislações e
discursos políticos. (LISZT)
A comunicação transnacional mediada
por computador coloca a necessidade de reivindicar novos direitos? Como
reivindicar novos direitos em um ambiente transnacional? Mas não seria
um exagero exigir deliberação democrática e debate público sobre as
funcionalidades de sistemas, códigos e protocolos considerados técnicos
pelas indústrias de TI e pelo senso comum?
Vamos verificar um
caso concreto que interferirá no cotidiano de todas as pessoas do
planeta que utilizam e cada vez mais dependem da rede mundial de
computadores. O protocolo de comunicação da Internet chamado IP
(Internet Protocol) permite o endereçamento de dados entre todas as
redes que a compõem. A versão deste protocolo que permitiu a expansão
veloz da rede por todo o planeta é denominada de IPv4 e está sendo
substituída por uma nova versão, o IPv6. Entre os vários motivos de
criar uma nova versão estão as razões de segurança. O IPv6 permite que
os cabeçalhos dos pacotes de dados sejam assinados digitalmente por
chaves criptográficas. Estas chaves servem para identificar o autor das
mensagens. Pois bem, se for definido que o padrão de comunicação entre
redes será a identificação criptográfica de todos os pacotes, então a
Internet terá suprimido o anonimato na comunicação. Suponha que boa
parte ou a maioria dos cidadãos dos vaŕios países do mundo sejam contra
o fim do anonimato na Internet. Como influenciarão esta decisão? A quem
recorrer? Qual será o fórum de decisão? Ou continuaremos a acreditar
que estas decisões são meramente técnicas?
Guarinello
coloca-nos um ponto extremamente relevante: “Há, certamente, na
história, comunidades sem cidadania, mas só há cidadania efetiva no
seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes
maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva
e para a construção de projetos para o futuro.”(p.46) O problema é que
a Internet por ser transnacional não se enquadra facilmente no terreno
onde a cidadania tem conseguido avanços, ou seja, nos espaços nacionais.
Entretanto,
Liszt Vieira aponta que “recentes concepções mais democráticas
pretendem dissociar completamente a cidadania da nacionalidade. (...)
Por esta concepção, seria possível pertencer a uma comunidade política
e ter participação independente da questão de nacionalidade.”(p.32)
Mark Poster avança e questiona: “podem os novos meios de comunicação
promover a construção de novas formas políticas não amarradas a poderes
territoriais e históricos? Quais são as características dos novos meios
de comunicação que promovem novas relações políticas e novos sujeitos
políticos?”(p.328)
Talvez uma boa linha de investigação tenha
sido lançada por Benedict Anderson quando afirmou que a nação é uma
comunidade imaginada. Os meios de comunicação foram fundamentais para a
constituição da idéia moderna de nação. A partir dessa perspectiva,
Gustavo Lins Ribeiro defende que do mesmo modo que “Benedict Anderson
mostrou, retrospectivamente, a importância do capitalismo literário
para a criação de uma comunidade imaginada que evoluiria para tornar-se
uma nação. Sugiro que o capitalismo eletrônico-informático é o ambiente
necessário para o desenvolvimento de uma transnação.” (p.469)
A
emergência de uma “comunidade transnacionalmente imaginada”, nos
dizeres de Ribeiro, exige o aparecimento de lealdades superiores a dos
Estados Nacionais, forjadas a partir do ciberespaço. Nesse contexto,
Mark Poster vê a possibilidade de surgimento de uma espécie de cidadão
planetário: “o net-cidadão pode ser a figura formativa num novo tipo de
relação política, que partilha a lealdade à nação com a lealdade à
Internet e aos espaços políticos planetários que ela inaugura.”(p.329)
Comunicação, Tecnologia e o Mito da Neutralidade.
O
problema da cidadania, em um cenário de globalização e
transnacionalidade, coloca-nos diante da necessidade de enfrentarmos a
discussão do papel das comunicações e das tecnologias da informação nos
processos de mudança e permanência das relações sociais. Dominique
Wolton escreveu:
“Se uma tecnologia da comunicação desempenha o
papel essencial, é porque simboliza ou catalisa, uma ruptura radical da
ordem cultural ocorrendo simultaneamente na sociedade. Não foi a
imprensa que, por si, transformou a Europa, mas sim a ligação entre
esta e o profundo movimento que subverteu o poder da Igreja Católica.”
(WOLTON, 2003, p.32)
Para Wolton, as tecnologias de informação e
os meios de comunicação não criam revoluções, ao contrário, são
utilizados pelos processos revolucionários ou mudancistas. Sem dúvida,
não foi a revolução industrial que criou o capitalismo, mas sem dúvida
alguma, o domínio da tecnologia da máquina assegurou a primazia sobre o
processo de apropriação da riqueza produzida e, este domínio econômico,
gerou mais poder sobre a sociedade. Os capitalistas não poderiam impor
suas relações de produção se não incorporassem a forma mais produtiva e
avançada de geração de bens materiais.
Wolton vê nas promessas
em torno das tecnologias da informação as mesmas ilusões que geraram
prognósticos otimistas para os impactos da TV, do Rádio, do satélite,
do cabo, no convívio humano. O teórico francês não percebeu que a TV e
todas as formas do paradigma de difusão não têm nenhuma relação com as
tecnologias da informação. Estas são mais do que formas de comunicação
intensa e múltipla, são também tecnologias da inteligência (LÉVY) que
ampliam as possibilidades de transformar informações em conhecimento.
São tecnologias que reivindicam um comportamento interativo e se
baseiam na proliferação da cópia. Permitem fundir sons a imagens e
estas a textos, sendo multidirecionais e capazes de armazenar bilhões
de dígitos na mesma máquina receptora e transmissora de mensagens.
Ao
afirmar que “a técnica não é suficiente para mudar a comunicação na
sociedade”, Wolton pode estar desconsiderando dois importantes
elementos: um histórico e outro teórico. Primeiro, a tecnologia da
informação nasceu no âmbito do cálculo e do processamento de dados.
Somente depois que o computador tornou-se uma ferramenta de
comunicação. De um projeto militar no cenário da Guerra Fria, o
paradigma da computação em rede surgiu e foi reconfigurado inúmeras
vezes por cientistas, hackers e pensadores da contracultura
californiana (CASTELLS). Assim surgiu a Internet real, tal como a
conhecemos hoje. É inegável que sua expansão está mudando a face das
comunicações no planeta. E a comunicação em rede é completamente
distinta do broadcasting.
Segundo, talvez a insistência de
Wolton em afirmar que a tecnologia não muda a sociedade guarde a
concepção de que as tecnologias são socialmente neutras. Técnicas
quando inventadas sempre guardam decisões de quem as criou. Muitas
delas podem ser reconfiguradas, outras têm o uso ambíguo, como a
Internet, mas nunca são criadas sem objetivos, de modo neutro. É
exatamente esta a questão que aqui discuto. Decisões sobre a
arquitetura das redes e seus protocolos estão sendo tomadas por
engenheiros, mas têm grande impacto social e podem limitar ou ampliar a
liberdade da comunicação entre as pessoas. São decisões de grande
impacto público, portanto, adquirem relevância política, mesmo que
tenham sido tomadas por comitês técnicos.
Considerar que
determinadas tecnologias guardam potenciais revolucionários, não
significa também assumir a proposta de McLuhan. Mattelart criticou a
supremacia que McLuhan dava ao meio. Sem dúvida, o meio condiciona, mas
dificilmente poderá determinar os conteúdos. São visíveis os exageros
de McLuhan quando advogou que “o grande abalo que rompeu o corpo da
comunicação e a desmembrou teve lugar na Idade Média. Se a Igreja
perdeu posição nessa época, se ela aí perdeu sua unidade mística, foi
por causa da tecnologia.”(MATTELART, p.103) Por outro lado, é
necessário reconhecer que a invenção de Gutenberg viabilizava a
proposta de doutrinadores da Reforma que queriam romper com os
intermediários entre o homem e Deus, entre a portador da fé e os
escritos sagrados. A impressão de tipos móveis “baniu o estilo de vida
comum em favor de uma comunidade massiva onde cada indivíduo pode se
tornar um leitor e onde a leitura se torna uma experiência privada.”
(idem, p.103)
Em outro texto mais recente, Wolton parece
reconhecer a magnitude e a complexidade da comunicação em rede e aponta
um problema que indica a necessidade da deliberação pública sobre os
caminhos da comunicação mediada por computador, principalmente, a
Internet: “É no que o tema da sociedade da informação é perverso: ele
homogeneiza tudo e faz desaparecer o homem por de trás dos fluxos de
informação. Numa economia do signo, tudo é possível. Cabe então ao
homem inventar seus próprios limites.”(WOLTON, 2004, p.155)
Conclusão: Concentração de Poder e Cultura Hacker
Carlos
Afonso, um dos pioneiros da Internet no Brasil, ao comentar o debate
sobre a governança da Internet na Cúpula Mundial da Sociedade da
Informação, ocorrida em duas fases, Genebra, em 2003, e Túnis, em 2005,
afirmou:
“Os equívocos de alguns participantes do debate global
vão desde acreditar que o tráfego de conteúdo passa pelo sistema de
servidores-raiz até pensar que as funções de governança da Internet
como um todo deveriam estar sob a alçada da UIT (União Internacional
das Telecomunicações). A ICANN também costuma ser apresentada como uma
organização global, o que é verdade apenas numa pequena parte e, em
termos legais, não o é de forma alguma. A ICANN está sujeita às leis
federais dos Estados Unidos e às leis do estado da Califórnia, e o seu
poder de governança da Internet está limitado por vários contratos e
por um Memorando de Entendimento (ou MoU, na sigla em inglês)
envolvendo o governo dos EUA, a ICANN e a principal operadora do
sistema global de nomes de domínio, uma empresa privada chamada
Verisign.” (AFONSO, p.11)
O que mais chama a atenção na crítica
de Carlos Afonso não é a ignorância de alguns participantes, mas o
grande poder do governo norte-americano sobre um dos órgãos técnicos
que definem regras da comunicação em rede. Por outro lado, este poder
não está apenas no contexto da governança da Internet, pois uma
sociedade em rede ou informacional exige um conjunto de intermediários
e de decisões técnicas de enorme impacto sócio-planetário.
A
concentração de poder comunicacional na sociedade da informação poderá
ser muito maior do que a ocorrida com a mídia de massas na sociedade
industrial. No ano de 2002, mais de 90% dos computadores pessoais do
mundo utilizavam o sistema operacional de uma única empresa
norte-americana, a Microsoft. O sistema operacional é o principal
programa de uma máquina de processar informações. Ele define como a
máquina deve agir, como deve alocar a memória, que tipos de programas
podem ou não podem ser instalados nela, entre outras funções. “Por
dominar a linguagem básica dos computadores, esta empresa também passou
a dominar o mercado de navegadores web (browser), uma vez que passou a
vender o browser junto com seu sistema operacional, desbancando todos
os outros existentes.”(SILVEIRA, p.157)
Mark Poster alerta-nos
que a saída para a democratização da sociedade informacional está na
construção de novas estruturas políticas fora do Estado-nação em
colaboração com as máquinas.”(p. 322) Ou seja, é na formação de um
movimento de opinião pública planetário, transnacional, no ciberespaço
com consequências em todos os territórios, pois para Poster não há como
criar processos decisórios mundiais. Poster acredita que “a nova
'comunidade' não será uma réplica de uma ágora, mas será mediada por
máquinas de informação. Portanto, o exigido é uma doutrina dos direitos
da interface homem/máquina.”(p.322)
Para construirmos a idéia de
novos direitos de caráter planetário, será fundamental observarmos a
cultura hacker que esteve presente desde o nascimento e em toda a
expansão da comunicação baseada nas redes informacionais. A Internet
evoluiu aberta, vencendo tentativas de apropriação privada de seus
elementos principais, exatamente pela forte influência dos hackers em
seus processos vitais. A cultura hacker também está escrevendo uma das
mais contundentes críticas a opacidade dos códigos e ao bloqueio do
fluxo de conhecimento tecnológico na sociedade da informação. Dela
nasceram movimentos como software livre e fenômenos como a maior
enciclopédia do mundo, a wikipedia.
Ao estudar a cultura hacker, o filósofo finlandês Pekka Himanen escreveu:
“A
ética de trabalho dos hackers consiste em combinar paixão com
liberdade, e foi essa a parte da ética dos hackers cuja influência foi
sentida com maior intensidade.” (...) “um terceiro e crucial aspecto da
ética dos hackers é a atitude dos hackers em relação às redes, ou seja,
é a sua ética da rede, que é definida pelos valores da atividade e do
cuidar. Atividade, nesse contexto, envolve a completa liberdade de
expressão em ação, privacidade para proteger a criação de um estilo de
vida individual, e desprezo pela passividade frente à procura pela
paixão individual. Cuidar significa aqui a preocupação com o próximo
como um fim em si mesmo e um desejo de libertar a sociedade virtual da
mentalidade da sobrevivência que tão facilmente resulta de sua lógica.”
(p.126)
Os hackers do movimento de software livre estão
enfrentando as companhias que buscam monopolizar no planeta o controle
dos intermediários da comunicação (softwares, códigos e protocolos da
comunicação em rede). Estas companhias alegam que seus direitos de
propriedade estão acima de todos os demais direitos, inclusive da
liberdade de conhecer, do uso justo de uma obra protegida pelo
copyright, do direito à privacidade, à segurança e ao anonimato. Enfim,
estamos em uma novo terreno. Dele emanam a reivindicação de novos
direitos, direitos de comunicação, de liberdade de expressão e da
possibilidade democrática de tomar decisões em uma sociedade em rede,
virtual ou ciberespacial. O debate mal começou.
Sérgio Amadeu da Silveira é doutor em ciência política e professor de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero.
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Este texto foi apresentado originalmente no congresso da Intercom, em setembro de 2006.
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