REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Marco de civilidade - Carlos Vogt
Reportagens
Ciência e guerra: era uma vez a internet
Gabrielle Adabo
Princípios de governança na rede: as contribuições do NET Mundial
Janaína Quitério
Trajetória legal do Marco Civil
Simone Caixeta de Andrade
Regulamentar, talvez. Impedir, nunca mais. Será?
Cristiane Delfina
O que os dados podem dizer sobre nós
Juliana Passos
Democracia na era digital: a internet como base dos movimentos sociais contemporâneos
Tatiana Venancio
Artigos
Marco Civil e a proteção da privacidade
Sergio Amadeu da Silveira
Governança da internet no Brasil e no mundo: a disputa em torno do conceito de neutralidade da rede
Vinicius Wagner Oliveira Santos
Os olhares da ficção científica cinematográfica para um futuro que já é aqui e agora
Fátima Gigliotti
O Marco Civil e a responsabilidade por conteúdos gerados por terceiros
Sérgio Branco
Resenha
O homem mais procurado do mundo
Carolina Medeiros
Entrevista
Demi Getschko
Entrevistado por Michele Fernandes Gonçalves
Poema
Mal du jour
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Princípios de governança na rede: as contribuições do NET Mundial
Por Janaína Quitério
10/05/2014

Na abertura da 68ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida no final de setembro passado, em Nova York, a presidente Dilma Rousseff plantou a semente que germinaria sete meses depois: a realização do Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet – o NET Mundial. Isso porque as revelações do ex-consultor Edward Snowden sobre os mecanismos de vigilância global e de monitoramento coletivo envolvendo a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos colocaram em xeque o modelo de governança da internet centrado naquele país e fortaleceu os debates sobre a sua administração e controle não apenas de forma multilateral, mas, sobretudo, multissetorial.

O NET Mundial aconteceu em abril, na cidade de São Paulo, e contou com cerca de mil participantes de 97 países – dos quais, 77 enviaram ao evento delegações com representações ministeriais –, além de transmissão simultânea pela internet com contribuição do público por meio de participação remota, intitulada de hubs, instalados em 30 cidades de 23 países. Na abertura, a presidente confirmou que as espionagens, dais quais o Brasil foi alvo, configuraram-se como um estopim do NET Mundial: “A internet que queremos só é possível num cenário de respeito aos direitos humanos, em particular, à privacidade e à liberdade de expressão. Daí porque no meu discurso na 68ª Assembleia da ONU fiz uma proposta de combate a essas práticas (de espionagem) e propus uma discussão a respeito do estabelecimento de um marco civil global para governança e uso da internet e de medidas que garantissem a efetiva proteção dos dados que por ela trafegam”.

Para Marília Maciel, coordenadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio e integrante do comitê executivo do NET Mundial, o “caso Snowden” proporcionou uma mudança na correlação de forças internacional. “Os Estados Unidos sempre foram vistos como líderes nesse setor, porque, na prática, a internet surgiu lá e muitas instituições estão sediadas em seu território. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos formaram uma liderança, do ponto de vista moral, ao se colocarem como defensores da liberdade de expressão e dos direitos humanos. Mas essa visão construída acabou se arranhando com as denúncias”, analisa a pesquisadora.

Governança em transição
Embora a internet não tenha uma entidade específica que a controle, os Estados Unidos são responsáveis pelos dois principais órgãos técnicos que mantêm a rede em funcionamento: a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), corporação encarregada de gerenciar o sistema mundial de nomes e domínios da internet, com sede na Califórnia, e a Internet Assigned Number Authority (IANA), braço administrativo da primeira, também responsável pela distribuição de endereços de IP (Internet Protocol). Em 14 de março, um mês antes do NET Mundial, a Agência Americana de Telecomunicação e Informação (NTIA) anunciou que não renovará o contrato que vincula a ICANN ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Assim, até 30 de setembro de 2015, a comunidade internacional precisará desenvolver um processo de transição que tire a ICANN e a IANA da supervisão dos Estados Unidos em direção a uma nova estrutura de governança.

Mas o questionamento sobre a unilateralidade americana na governança já vem acontecendo há muitos anos, como enumera o pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Oppermann. “O pedido de democratização da ICANN e da IANA pela comunidade da internet não é novo. Desde a formação da ICANN, em 1998, o seu controle pelos Estados Unidos foi considerado temporário, especialmente por parte de atores estrangeiros. Nos primeiros anos de supervisão da ICANN, havia um contrato chamado ‘Acordo de Projeto Conjunto’, pelo qual a ICANN foi vinculada ao governo americano”.

Oppermann pontua que, em 2008, quando Barack Obama venceu as eleições presidenciais, nasceu a esperança de que um democrata fosse a pessoa certa para libertar a ICANN do controle unilateral dos Estados Unidos. “Em 2009, um novo acordo, chamado ‘Declaração de Compromisso’, deu um pouco mais de liberdade ao órgão, mas sem tirar as mãos de sua administração”, explica. Tal como a pesquisadora da FGV-Rio, Oppermann considera que o anúncio da retirada norte-americana da ICANN foi uma “janela de oportunidade” para tentar restaurar a sua imagem após o escândalo da NSA.

O documento final do NET Mundial propõe que, até setembro de 2015, seja concluída a transição para uma governança global e multissetorial. “O documento formulado nessa conferência não é o primeiro a ser publicado nesse contexto. Mas foi o primeiro que chamou a atenção global”, conclui Oppermann.

Multissetorialismo: mais que um modelo
“Não é mais um modelo americano ou europeu, mas a transição de um sistema multilateral antigo para a era do multissetorialismo”. A fala do paquistanês Zahid Jamil, representante do setor privado no comitê executivo do NET Mundial, durante a conferência, evidencia que a filosofia de elaborar políticas para a internet necessita da participação de vários segmentos. “O modelo tem esse sucesso e essa aceitação ao redor do mundo porque seus valores e princípios estão sendo levados adiante por líderes e participantes do ‘eixo Sul’, caso da presidente brasileira, Dilma Rousseff”, avalia.

Com isso também concorda Marília Maciel, coordenadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio: “O multilateralismo, por si só, não é suficiente para desenvolver políticas para a internet. É preciso ter a participação de outros atores”. No NET Mundial, o modelo multissetorial orientou a organização da conferência e dos documentos discutidos. De acordo com dados divulgados por Virgílio Almeida, secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) brasileiro, o mapa dos setores participantes na conferência mostrou-se bem representativo: 20% vieram do setor privado, 10% da comunidade técnica, 10% da academia científica, 23% da sociedade civil, 19% de governo e 18% têm outras origens.

O termo multissetorialismo (multistakeholderism, em inglês) surgiu, segundo Maciel, durante a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, patrocinada pela ONU e ocorrida em duas fases, em 2003 (Genebra) e em 2005 (Túnis). “A cúpula foi um fórum de discussão multilateral, somente entre os Estados. Mas, ao longo das discussões, foi-se percebendo que, para qualquer coisa que se vá fazer na internet, é preciso haver participação de diferentes setores, que estão além do âmbito estatal”, relata.

Para perceber a importância do modelo, Oppermann, da USP, chama a atenção para a forma como a internet é composta: “Existe a comunidade técnica, que desenvolve e se encarrega da funcionalidade da rede. Existem usuários criando conteúdo. O setor privado, com interesses comerciais, fornece infraestrutura ou oferece serviços sobre a rede. Já a comunidade acadêmica desenvolve ideias e estruturas, e os governos estão preocupados com a legislação, entre outras situações. Em um processo democrático, você precisa abrir canais para quem está preocupado com um determinado tema ser ouvido. E é isso que a abordagem multissetorial faz”, avalia. Vale ressaltar que o Fórum de Governança da Internet (IGF), que acontece anualmente, é baseado na abordagem multissetorial desde quando foi criado pela ONU, em 2006.

Roteiros mundiais: princípios de consensos
Propondo lançar um documento capaz de ser referência ao debate sobre governança na internet em âmbito mundial, os participantes discutiram, durante os dois dias de conferência, no NET Mundial, um documento-base que já havia sido elaborado por meio de consulta pública online a partir de 188 contribuições, além de 1.300 comentários feitos por diversos setores da sociedade. Assim, o processo de consulta para esse documento seguiu parâmetros semelhantes aos utilizados durante o processo de construção do Marco Civil da internet no Brasil, que foi sancionado de forma simbólica por Dilma Rousseff na abertura do evento, após ter sido aprovado no Senado.

O objetivo do documento, intitulado "Carta Multissetorial de São Paulo", foi delinear, de um lado, princípios que servirão como guia para a continuidade das discussões, seja para a regulação de normas internacionais e de tratados, ou mesmo para nortear o desenvolvimento de políticas públicas nacionais na rede. “Num ambiente global, com diferentes jurisdições, não adianta começar o debate da governança que queremos com um tratado. É melhor estabelecer, primeiro, os princípios gerais, tal qual um guarda-chuva que funcionará como catalisador da regularização normativa de políticas em um próximo passo”, analisa Maciel. Também foi incluído no documento um roteiro definindo os próximos passos na discussão da estrutura de governança da internet.

O documento final sofreu poucas alterações em relação ao original da consulta pública e está calcado em cinco princípios fundamentais: liberdade de expressão e de associação, acessibilidade, liberdade de acesso à informação e direito à privacidade. Em comparação ao documento-base, as alterações mais polêmicas dizem respeito à privacidade e à neutralidade da rede – esta última versa sobre a igualdade de tratamento na rede, independentemente do usuário e do conteúdo, e foi citada no texto apenas no tópico "discussões para o futuro", o que desagradou diversos grupos presentes na conferência, como os da sociedade civil, que se declararam contrários à retirada do item depois da leitura final da carta.

Embora também faça essa ressalva em seu balanço, Maciel ressalta os pontos positivos do NET Mundial: “Até hoje, não tínhamos nenhum texto multissetorial que afirmasse que a governança na internet deva levar em consideração o interesse público. Dizer que os direitos humanos se aplicam tanto offline quanto online foi muito importante”, avalia. Para Oppermann, o NET Mundial foi um acontecimento fundamental na história da internet. “Uma vez que o novo quadro político para a transição da ICANN e da IANA irá durar por um longo tempo, a conferência será sempre considerada um momento de referência. Agora, é preciso fortalecer as discussões em outros fóruns, como o IGF”, sugere o pesquisador da USP.

As deliberações aprovadas durante o NET Mundial continuarão a ser discutidas em outros fóruns. A reunião mais próxima será a do IGF, que será realizado em setembro deste ano, em Istambul, na Turquia. Em 2015, mesmo período em que termina a supervisão dos Estados Unidos sobre a ICANN e a IANA, o fórum da ONU será realizado no Brasil.

Leia a íntegra do documento final do NETMundial: http://netmundial.br/netmundial-multistakeholder-statement/