Como é possível falar da beleza das cidades
contemporâneas diante da crise avassaladora que paira sobre elas?
As cidades contemporâneas configuram paisagens
catastróficas, testemunhos da falência de nossos
parâmetros de governabilidade. Multiplicam-se os desastres
ambientais, a pobreza urbana promove a multiplicação das
cidades de plástico e de papelão, construídas por
aqueles que não têm onde morar. Qual é o regime
estético que preside as intricadas configurações
do ambiente urbano no qual vivemos?
Um dos aspectos marcantes da cidade contemporânea é a
concentração espacial e urbana da pobreza, que vem se
agravando desde o final do século XX e início do atual.
Este fenômeno que sempre foi identificado como
característico do Terceiro Mundo, agora constitui também
um aspecto dominante em países do Primeiro Mundo.
O que são essas cidades? São as cidades
construídas pelos moradores de rua re-utilizando, sobretudo, o
plástico, o papelão e demais materiais e produtos
descartados pela sociedade de consumo. A condição do
morador de rua na sociedade capitalista, entendida como aquele que
não tem o seu lugar próprio, que sempre está no
lugar que não lhe pertence, levou-o a ocupar os espaços
públicos, as praças e baixios de viadutos.
As imagens que se seguem demonstram que o mundo urbano apresenta
situações desafiadoras e perversas, por exemplo, as
questões relativas à habitação para os
moradores de rua. Essas imagens que manifestam que o fenômeno do
morador de rua não é um tema marginal, mas apresenta uma
prevalência significativa em muitas cidades e,
impressionantemente, ressaltam as relações entre o
descarte de materiais e produtos e o descarte de seres humanos. Os
números são crescentes e trata-se de importante tema para
a arquitetura contemporânea.
Habitat Informal de moradores de rua em São Paulo, Rio
Tamanduateí
Foto: Douglas Mansur
Habitat Informal de moradores de rua em São Paulo, Praça
da Sé
Foto: Douglas Mansur
Habitat Informal de moradores de rua em Tóquio, Sumida River
Foto: Ken Straiton
Habitat Informal de moradores de rua em Tóquio, Sumida River
Foto: Ken Straiton
Habitat Informal de moradores de rua em Los Angeles, Skid Row
Foto: Mario Barros
Habitat Informal de moradores de rua em Los Angeles. Broadway
Foto: M. C.Loschiavo
Habitat Informal de moradores de rua na Índia, Calcutá
Foto: Ken Straiton
Habitat Informal de moradores de rua na Índia, Nova Delhi
Foto: Tony Pietropiccolo
As imagens apontam para um momento de mudança em nossa
civilização. Certamente a arquitetura não é
considerada como ferramenta única para resolver a
situação, mas aos arquitetos e demais profissionais de
projeto, cabe um papel extraordinário na
manutenção da dignidade dessa população.
Equipamentos adequadamente projetados poderão ser decisivos, por
exemplo, na superação dos resistentes à albergue.
A qualidade e adequação arquitetônica do
edifício explicitarão ao morador de rua que ele
não está adentrando a uma prisão ou
depósito de seres humanos. O que é possível e
desejável para abrigar esse imenso contingente de
excluídos? O que é inaceitável? O que é
adequado? Quais os conhecimentos necessários? Qual o papel dos
arquitetos? Até muito recentemente as únicas
opções para acomodação do morador de rua
eram os rudimentares albergues, em condições
precárias, com vagas insuficientes ou então dormir nas
ruas, nas calçadas, sob viadutos nos intermináveis
acampamentos, alvo de expulsões forçadas, gerando
hostilidades, produzindo a Nimby (Not In My BackYard).
A emergência dessa complexa trama de relações nas
cidades de plástico e de papelão, nas quais a maioria
vive muito longe do mundo da economia formal indica que o mundo urbano
do século em que vivemos aponta para outros paradigmas
estéticos capazes de caracterizá-lo.
Embora, freqüentemente igualamos o conceito de estética ao
conceito de beleza, esta definição é muito
limitada. Os efeitos da estética são eminentemente
perceptivos e não cognitivos. Entretanto, as imagens
apresentadas possuem um poder perturbador, provocam um distúrbio
nos conceitos de fruição do espaço urbano, ao
mesmo tempo essas imagens manifestam o quanto nossas cidades
estão despreparadas para enfrentar os espantosos índices
de pobreza urbana. Como falar da beleza das cidades
contemporâneas diante dos crescentes índices de pobreza
urbana e das cifras sem precedentes da imensa massa de trabalhadores,
que sobrevive da economia informal, sem nenhum tipo de garantia, de
direito reconhecido, e, muito mais grave, imersos num quadro
crítico de abuso contra mulheres e crianças?
Exemplo da síndrome Nimby, Avenida Paulista, São Paulo
Foto: Geoff De Verteuil
Nessas condições, as ruas de nossas cidades se tornaram o
receptáculo de objetos desfuncionalizados e degradados, o lixo
de nossa cultura industrializada e tecnológica, expondo
publicamente as contraditórias relações entre
tecnologia e sociedade. Muitas dessas ruas foram transformadas em um
verdadeiro “museu da exploração”, como tão bem
definiu o pesquisador Mike Davis em seu último livro – Planet of
slums, com crianças de todas as idades expostas publicamente e
trabalhando, em todos os tipos de trabalho, sob os mais primitivos
regimes de exploração.
As imagens nos trazem a constatação de uma paisagem
sinistra e caótica, onde a síndrome de Nimby prevalece e
se amplia, originando todos os tipos de regulamentações,
de zoneamento e, sobretudo, alimentando a intolerância.
Para lutar contra a intolerância, os movimentos sociais vêm
criando uma consciência da rua e da cidade, bem como se
articulando pela sua transformação, pela
criação de um outro espaço. O papel desses
movimentos fica cada vez mais evidente e se reflete no próprio
crescimento dos fóruns sociais. A presença desses
movimentos reitera uma significativa consideração do
filósofo Michel Foucault sobre as ligações entre
espaço, conhecimento, poder e política cultural. Em seu
célebre ensaio “Des espaces autres”, ele ressaltou que essas
ligações devem ser vistas ao mesmo tempo como opressivas
e possibilitadoras, compostas não somente pelos perigos
autoritários, mas também pelas possibilidades para
resistência.
Ao perguntarmos sobre o regime estético que caracteriza as
cidades contemporâneas creio que os aspectos da
fragmentação, do descarte, da bricolage, e da
resistência são elementos significativos. Mas esses
aspectos coexistem lado a lado com outras imagens, que também
integram a nossa experiência sensorial e estética da
cidade: da moda, da arquitetura, do design de produtos, do design de
sistemas, e mesmo do design gráfico dos anúncios
publicitários que vertiginosamente cativam nossas escolhas de
consumidores.
Assim, a cidade contemporânea toca a nobreza de nossos sentidos,
mas também ela manifesta outras formas visuais diferenciadas,
que manifestam os mais cruéis conflitos do nosso mundo urbano.
Seria necessário muitos olhos no corpo e na alma para
descrevermos esse universo. Mais do que isso, necessitamos de uma
arqueologia da visão para caracterizar a estética da
cidade contemporânea. Ainda que não diretamente vinculado
à experiência da cidade contemporânea, Michel
Foucault nos abriu uma perspectiva relevante nesse sentido, quando nos
alertou sobre a diversidade dos vários regimes visuais presentes
no espaço de uma determinada cultura.
M. Cecilia Loschiavo é professora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo.
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