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Constituindo uma cidade do saber
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Resenhas
Constituindo uma cidade do saber
Da arquitetura das edificações à arquitetura do pensamento, a USP é revelada neste livro através da história da cidade, do país e de sua própria história
Por Andreia Hisi
10/02/2011

O resgate da trajetória da constituição da Universidade de São Paulo (USP) e de seu patrimônio edificado, bem como sua ambígua relação com a cidade de São Paulo é revelado de forma quase inventarial através dos artigos, mapas, plantas e fotografias – tão documentais quanto emotivas – de pesquisadores, arquitetos, engenheiros e demais autores, que compõem o livro Cidades universitárias: patrimônio urbanístico e arquitetônico da USP, organizado pelo Centro de Preservação Cultural (CPC) da universidade.

O livro apresenta a história da USP desde a sua primeira “célula embrionária”, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, cuja implementação representou muito além da secularização do ensino em um Brasil recém independente, que buscava autonomia e a construção de uma identidade nacional através do desenvolvimento de setores básicos como educação e legislação, como menciona Ana Luiza Martins, em seu artigo “A ‘São Francisco' na dinâmica da história e na memória da cidade”: “Esse marco físico implantado no coração da cidade ultrapassou sua referência de lugar de ensino para sinalizar o espaço da luta cívica, abrigo de diversidades ideológicas e coro de contrários, único território da cidade a receber, por isso mesmo, prerrogativas legais de ‘território livre' – desde 1930 – infenso à ação repressora de qualquer teor. Na calçada fronteira, a construção da Tribuna Livre – desde 1960/61 –, igualmente tombada, confirma a função de palanque aberto ao povo, promotório das causas sociais” (p. 21).

Assim, frescor da natureza estudantil promovendo efervescência cultural e política, a USP apresentou ao país o conceito de “núcleo do saber”. E, dessa maneira, a cidade delineou parte de sua geografia, pela construção física das unidades de ensino, ao mesmo tempo em que as ideias moldaram o panorama de seu crescimento. A presença desses núcleos perante a cidade aproximava a realidade suburbana à imagem de desenvolvimento europeu e seus célebres bairros intelectuais, como o famoso Quartier Latin em Paris e o Bloomsbury em Londres.

Do mesmo modo, o percurso da história da cidade de São Paulo está, em muitos momentos, entrelaçado à história de constituição da USP. Essa emblemática justaposição explica-se pela importância da formação e afirmação política que as primeiras unidades da USP, espalhadas pela cidade, delineavam perante significativos eventos de transição da sociedade brasileira, como o processo de formação da república e a resistência à ditadura, entre tantos outros acontecimentos não menos importantes para a memória do país.

Assim como os artigos, as imagens do livro convidam à reflexão. O ensaio fotográfico apresentando diversos setores do patrimônio arquitetônico da USP, realizado por Ângela Garcia, focaliza o visível, o invisível e o indizível; o paradoxo entre clicar, revelar (a fotografia) e revelar (aos olhos do espectador). A história não tem estética; a memória, sim. Nas imagens, os acontecimentos liberam-se das coerções das palavras. Contudo, é importante lembrar que as fotografias são construídas tanto pelo exercício de escolha quanto pela motivação intrínseca de registrar. A memória é um ponto central: as impressões do passado marcam o livro a partir da memória como identidade, através do conflito entre o pensamento e a realidade factual; e entre os eventos e sua diferente temporalidade. A evolução histórica é reconstruída através do contínuo questionamento e confronto sobre as relações humanas e a necessidade de desenvolvimento, e as relações entre o passado e o presente.

Nesse sentido, a questão interessante a respeito da estruturação da USP é que seu patrimônio foi incorporado através da articulação e de necessidades de várias épocas e comunidades, de maneira que as disseminações ou remoções desses bens urbanísticos e arquitetônicos representam o resultado de forças de determinados contextos sociais. Assim, nessa análise, o olhar, quer seja pela pluralidade quer seja pelo distanciamento temporal, incorpora o prazer do encontro e do reencontro à investigação da história particular de cada uma de suas unidades.

A forte “tradição do pensamento” alcançada por São Paulo ilustra que desenvolvimento político, social, e econômico resulta em algum grau de desenvolvimento acadêmico. Mas, da mesma forma que essa herança se formou, também ocorreu um distanciamento em relação ao cidadão comum, como relata Nina Raniere, no artigo “A cidade e a cidade universitária: autonomia, localismo e universalismo: “O cidadão distanciou-se da coisa pública. Interfere muito pouco nos negócios públicos e não exerce mais a liberdade por meio das instituições comunais. Ademais, o crescimento populacional e a sua concentração nas áreas urbanas põem em xeque o próprio sentido do peculiar interesse que, em cidades como São Paulo, passa de local a metropolitano” (p. 97).

Os investimentos e gastos relacionados com a educação não trilharam o mesmo caminho. Não foi possível estabelecer na cidade a formação de um sistema de apropriação, criação, difusão e, principalmente, de acesso ao conhecimento. Além disso, a ideia de unificar todas as unidades de ensino, que historicamente encontravam-se espalhadas por São Paulo, em um único lugar, juntamente com a repressão aos estudantes, que caracterizou a atuação do regime militar, de alguma forma promoveu um emudecimento intelectual. “A tentativa de desmantelamento da instituição passa pela repressão aos movimentos estudantis, pelo afastamento dos professores, exílio e depois aposentadoria compulsória, pela reforma de 1968, pelo afastamento físico das várias unidades, antes no centro da cidade, para o campus da Cidade Universitária, ainda inacabada, onde a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi instalada, provisoriamente, no prédio da História e depois no que se convencionou a chamar de “barracões”, construídos às pressas para abrigar os sem-teto da rua Maria Antonia. O cerceamento aos movimentos internos da USP foi total, assim como ao seu corpo discente e docente”, descreve Celia Belem, no artigo “Uma reflexão sobre a USP e a comunidade que a cerca” (p. 119).

Há um consenso entre os especialistas que assinam os artigos em relação às perdas e responsabilidades quanto à desconexão entre a comunidade e a universidade. A crítica concerne ao ritmo de organização e produção capitalista, difundida para todo plano de ação: a corrida pelo consumo se manifesta pela objetização de todos os elemento dos espaço de interação; as informações, as pessoas, os relacionamentos são reduzidos a índices de produtividade. O principal dilema é que o extremo da ideologia mecanicista implica em empobrecer as experiências, cujo efeito deletério é a superficialização dos elementos compartilhados, inclusive o conhecimento.

O consenso entre os autores se estende à importância de retomar o diálogo entre os desígnios de origem com as perspectivas atuais: investir continuamente na formação e aperfeiçoamento para fomentar uma tradição metodológica e graus aprofundados de conhecimento em seus campos e domínios de atuação, nas bases da produção científica, artística, da linguagem e, principalmente, da comunica ção em si. No entanto, quanto ao diálogo com a sociedade, as opiniões se dividem entre perspectivas otimistas, a partir de metáforas da cidade do conhecimento, como no artigo “Cidade universitária e cidades do conhecimento” de Gilson Schwartz (leia artigo dele nesta edição), ou realistas, baseadas nas trajetórias históricas percorridas pela USP, como no artigo “Universidade, cidade, cidadania” de Franklin Leopoldo e Silva. De uma forma ou de outra, trata-se uma obra fundamental para quem se interessa pela relação entre a universidade e a cidade que a abriga.

Cidades Universitárias: Patrimônio Urbanístico e Arquitetônico da USP
Organização: Patrimonio Cultural Comissão (CPC)
Coleção Cadernos CPC
Editora da USP (Edusp) e Imprensa Oficial, 2005
360 páginas