Milhares de pessoas tomaram as ruas do Brasil recentemente em uma série de atos que surpreenderam não apenas a população, mas a polícia, os políticos e a grande mídia. As manifestações começaram sob iniciativa do Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo, e r apidamente a premissa do aumento de vinte centavos na tarifa de ônibus ganhou causas múltiplas, formando um coro de reivindicações que alardeou a insatisfação com o poder público. Vozes dissonantes tomaram as ruas de diferentes cidades e regiões, em uma polifonia que ecoou Brasil afora.
Parodiando a afirmação de Mao Tsé-Tung de que uma fagulha pode incendiar uma pradaria, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik explica, na apresentação do livro Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo Editorial, 2013), que "a 'fagulha' das manifestações de junho não surgiu do nada: foram anos de constituição de uma nova geração de movimentos urbanos – o MPL, a resistência urbana, os movimentos sem-teto, os movimentos estudantis – que entre 'catracaços', ocupações e manifestações foram se articulando em redes mais amplas”.
Para o professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP, ainda não é possível explicar o que levou os protestos de 2013 a se alastrarem por diversas cidades tão rapidamente. Estabelecendo conexões entre os atos deste ano e o movimento Maio de 68, na França, Ribeiro afirma que o grande descontentamento com a qualidade dos serviços públicos foi o responsável, em um primeiro momento, pela eclosão das manifestações, que ganhou simpatia da população após a violenta repressão policial.
Ainda de acordo com Ribeiro, o Brasil vivencia um período notável. “Somos um país de pouca mobilização política e pouca cultura política. O momento foi muito forte do ponto de vista da mobilização, mas a cultura política não avançou. Você pode tomar posse da rua, isso tem uma utilidade imediata e é bom, mas ainda é pouco. Falta as pessoas dizerem sobre o que estão protestando. Há quem, por exemplo, culpe a prefeitura pelos problemas do metrô de São Paulo, que é estadual. Isso acaba limitando bastante os projetos”, afirma o pesquisador, que aponta como um dos possíveis resultados a médio prazo a inclusão da qualidade dos serviços públicos na agenda política. “A presidenta, os governadores e os prefeitos terão que prestar mais atenção a isso. Será uma mudança a médio prazo”, indica o professor.
O argumento é semelhante ao apresentado pelo professor da PUC-SP e coordenador da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, no texto "Em São Paulo, o Facebook e o Twitter foram às ruas", também publicado no livro Cidades rebeldes. "Há um déficit de democracia participativa que precisa ser resolvido. Só votar e esperar quatro anos não adianta mais. Uma reforma política que se concentre em ferramentas de participação popular pode ser a saída", afirmou.
A pluralização dos atos
Em artigo publicado no mesmo livro o MPL de São Paulo enfatiza que as mobilizações sempre foram abrangentes. “As lutas por transporte no Brasil formam um todo muito maior do que o MPL. Contudo, a tomada direta e descentralizada das ruas, a radicalidade das ações e a centralidade dos aumentos tarifários dá a tônica dessas lutas... Em São Paulo, as manifestações que explodiram de norte a sul, leste a oeste, superaram qualquer possibilidade de controle, ao mesmo tempo que transformaram a cidade como um todo em um caldeirão de experiências sociais autônomas”.
A premissa ampliou-se (“não é só por 20 centavos”) e abraçou reivindicações múltiplas que refletiam uma insatisfação generalizada com serviços e gastos públicos em todo o país. Nesse sentido, é possível mencionar o exemplo de Fortaleza, onde os atos não tiveram relação com o serviço de transporte público.
Cerca de oitenta mil pessoas, segundo a Polícia Rodoviária Federal, tomaram as ruas da capital cearense em 19 de junho para participar do protesto “+ Pão - Circo – Copa para Quem?”, organizado por meio do Facebook. Os manifestantes se reuniram no entorno da Arena Castelão para contestar os gastos com as competições desportivas, tendo em vista que Fortaleza será uma das sedes da Copa do Mundo de 2014.
Ainda no Ceará, há quase dois meses manifestantes ocupam o Parque do Cocó em uma tentativa de impedir a construção de viadutos pela prefeitura, que implicaria na derrubada de árvores de uma das poucas áreas verdes da cidade. Concomitantemente, no Rio de Janeiro, outros tantos protestos prosseguem ocupando prédios públicos. Clamores distintos em cidades diversas refletem a vontade da população de ser ouvida.
Rede, pulverização e agregação
O professor do programa de pós-graduação em comunicação da Universidade Metodista, Walter Teixeira Lima Júnior, destaca o papel da internet como fator que contribuiu para a rápida disseminação das manifestações: "Sou da geração que fez parte das Diretas Já, fui para a rua quando não existiam redes como a internet e o Brasil foi mobilizado pela propaganda boca a boca e por telefone. Na época, as pessoas estabeleciam a própria rede e o movimento foi ganhando força. A velocidade da informação não era semelhante aos dias atuais. Hoje você tem a internet, que é considerada por alguns estudiosos como um sistema complexo, que elege coisas: acontece algum fato catalisador e todo mundo vai olhar. Rapidamente, as manifestações de junho tomaram uma proporção enorme, diferente das Diretas Já. A internet alastrou a informação de forma exponencial", expõe o pesquisador.
Quando indagado se a internet teria colaborado para a pulverização do movimento em causas múltiplas ainda não muito bem compreendidas, Teixeira respondeu que as pessoas foram para as ruas em movimentos fragmentados que refletiam a insatisfação latente com o poder público. "Há quem pense que para ir às ruas é necessário ler todos os filósofos alemães, vestir determinado tipo de roupa etc. O povo vai para a rua por ser um espaço público de confronto. A rede catalisou o sentimento de insatisfação. A rua reflete a sociedade que está na rede", disse.
A motivação dos manifestantes
O que teria levado tantos jovens às ruas, surpreendendo a população, os grandes conglomerados midiáticos e o governo? Buscando responder a essa questão no âmbito de Fortaleza, o Coletivo Nigéria acompanhou as manifestações e o processo resultou no documentário Com Vandalismo, com registros de depoimentos e cenas dos protestos. A ideia dos realizadores foi estar na linha de frente para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos.
Um dos participantes do ato "+ Pão - Circo – Copa para Quem?” no Ceará foi o geógrafo e professor Samuel Miranda. Ele explica que sempre gostou de estar envolvido nos movimentos sociais e que viu uma oportunidade de lutar coletivamente por bandeiras comuns a muitos. "Senti orgulho de ver os atos em todo o Brasil e quis fazer a minha parte. Vivemos em uma época de muito individualismo. Eu não queria apenas ver as coisas acontecerem, quis fazer parte delas", relata Miranda, ressaltando, também, a solidariedade da população com os manifestantes: "Vi um espírito de solidariedade que nunca havia presenciado. Antes de sair, no supermercado, a caixa disse algo que muito me marcou. Que esperava que o país mudasse, que ela queria ir, mas estava no trabalho e não podia. No caminho até o estádio, muitos nos carros e ônibus animavam os que iam a pé e, na travessia pelo Lagamar, um bairro da cidade considerado violento, uma viatura da polícia nos acompanhou a maior parte do tempo em uma espécie de escolta. À medida que mais gente ia se juntando, mas o espírito de solidariedade crescia", lembra.
Assim como Miranda, a estudante de doutorado em comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Mônica Mourão relata que a proximidade com os movimentos sociais contribuiu para sua presença em atos na capital e em Niterói. Segundo ela, que integra o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, a sensação de empoderamento e a possibilidade de fazer algo de forma efetiva fez com que muitos de seus amigos sem relação com os movimentos sociais participassem das manifestações. "Ao perceber as arbitrariedades que ocorrem no serviço público brasileiro, você pensa ‘não posso deixar de ir'", afirma Mourão, lembrando que resultados imediatos já podem ser percebidos, como a redução do preço da passagem e, no caso específico do Rio, a revogação da remoção de equipamentos do Museu do Índio. "Agora as pessoas querem mais e é muito difícil dizer o que é esse mais. Existe uma insatisfação geral com as formas de governo não-participativas, sem diálogo, coisas que estão previstas na Constituição", finaliza a estudante.
Motivado pela necessidade de ação em São Paulo, epicentro das manifestações, Renato Salgado, aluno do doutorado em teoria e história literária da Unicamp, participou de três atos, dois deles na capital e um em Campinas. Para ele, a possibilidade de ocupação efetiva do espaço urbano chamou atenção. "As bandeiras não eram as mesmas, mas não se tratava de uma disputa, era um debate. Isso é algo importante: trazer a política para a rua e pensá-la como espaço de se fazer política. O ato de rua não é mais um ato isolado que eclode em um momento limite, virou um espaço de ação política mais próxima do possível. A ação na rua era vista como vandalismo, como violência ao patrimônio. Agora, as pessoas estão mais abertas a isso", afirma Salgado.
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