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Reportagem
A física do “vazio”
Por Fabio Reynol
Roberto Belisário
10/09/2008

No princípio era a matéria. Até que foi concebida a idéia de vazio, de que em algum lugar no espaço haveria o “nada”. A partir daí, uma celeuma foi aberta e travada ao longo da história da ciência entre os que defendiam a existência do vácuo e os que acreditavam que haveria sempre alguma coisa permeando tudo. Guardadas as peculiaridades de cada época, podemos dizer que, ao longo dos séculos, vacuístas (adeptos da idéia do vácuo) e plenistas (defensores da matéria onipresente) se revezaram nos fóruns acadêmicos trocando farpas e apresentando argumentos em prol de suas idéias. Não podemos dizer que seus trabalhos deram em nada. Chegamos ao século XXI com a convicção quase unânime da comunidade científica de que a existência do nada absoluto é mais do que improvável, pois até o que chamamos de “vácuo” possui partículas e energia. Mas, para chegar até aqui, muito bate-boca aconteceu, muitas experiências foram realizadas e repetidas e, entre os protagonistas da discussão, estavam personagens tão notáveis e distantes entre si como Aristóteles e Einstein.

A “bola” do vácuo foi levantada por filósofos gregos pré-socráticos chamados “atomistas”, a partir do século V a.C. Foram eles que conceberam a idéia de que as coisas eram feitas de minúsculas partículas que não poderiam ser divididas - por isso, as chamaram de “indivisíveis” que, em grego, se diz “átomo”. Parece estranho que os idealizadores dos tijolinhos da matéria também tenham sido os primeiros defensores do vazio de que temos notícia. “Mas, para eles, tão importante quanto a idéia de matéria era a idéia do vácuo”, conta Osvaldo Pessoa Júnior, filósofo e historiador da ciência da Universidade de São Paulo (USP). Na verdade, os atomistas valiam-se do vácuo para explicar o movimento dos corpos. O raciocínio era simples: se um corpo vai de um lugar a outro, é necessário que ele se direcione para um espaço vazio, uma vez que dois corpos não se interpenetram. E o vácuo atomista ia além da física: “a ele estava ligada a idéia de não-ser e de onde não poderia surgir nada. Analogamente, a matéria tinha, para eles, a noção de ser”, detalha Pessoa. O vazio seria uma espécie de palco, onde a matéria, formada por átomos, atuaria. O maior nome entre os filósofos atomistas era Demócrito, cujas idéias enfrentariam opositores de peso na própria Grécia Antiga, anos depois de sua morte.

Entre os adversários do vácuo na Grécia, já depois dos pré-socráticos, estavam Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), para os quais o universo estava totalmente preenchido de matéria. A questão do movimento para eles era resolvida com a idéia da troca de lugares: um corpo se movia no espaço porque um outro saía trocando de posição com ele. Para Aristóteles, a resistência do meio era algo importante. “Um de seus argumentos era que, se um corpo em movimento não encontrasse resistência alguma do meio, sua velocidade seria infinita”, expõe Pessoa. Por isso, seria impossível que existissem lugares totalmente vazios, onde não houvesse um meio material. Aristóteles também dizia que, se não fosse a resistência do ar, objetos de massas diferentes cairiam à mesma velocidade, o que não era observado – mas essa idéia que seria verificada e aperfeiçoada pelas experiências de Galileu Galilei (1564-1642), no século XVI, e comprovada com glamour em agosto de 1971, quando o astronauta norte-americano David Scott deixou cair na Lua um martelo e uma pena mostrando que, sem o ar, ambos atingem simultaneamente o solo. Após Aristóteles, o vácuo seria reabilitado ainda na antiguidade por Heron de Alexandria (século I d.C.) que, embora não acreditasse na existência de um vazio contínuo, concebeu um mundo onde o vácuo estaria distribuído em minúsculas porções no interior de todas as coisas.

Quem tem medo do vazio?

Aristóteles foi o filósofo mais influente na Idade Média européia. Através dos estudos dos seus escritos, a questão do vazio foi retomada nesse período, quando surgiu a célebre expressão “a natureza tem horror ao vácuo”, para dizer que qualquer porção de matéria retirada é logo ocupada por outra - fenômeno observado em alguns experimentos hidráulicos, por exemplo. Já no período da Renascença, os estudiosos do tema eram tão numerosos que não seria possível descrever suas experiências e contribuições em uma única reportagem. Mas alguns episódios marcantes valem ser destacados daquele período, como o caso do sifão de Giovanni Baliani (1582-1666). Esse italiano tentava levar água de um reservatório a um vale mais elevado através de um sifão. O processo tradicional de encher o tubo com água, fechar suas extremidades e abri-las unindo os reservatórios desnivelados não estava dando certo. Baliani levou o problema a Galileu Galilei, que atribuiu à altura entre os reservatórios (cerca de 20 metros) a causa do fracasso da manobra. Para Galileu, o vácuo teria uma força limitada, comprovadamente eficaz até 12 metros de altura. Baliani, por sua vez, enxergou nessa experiência uma maneira eficiente de se produzir vácuo.

Foi de um discípulo de Galileu uma das mais famosas e intrigantes experiências a respeito do vácuo. Evangelista Torricelli (1608-1647), em 1644, encheu um longo tubo de vidro com mercúrio, fechou sua abertura e o emborcou dentro de uma bacia, também com mercúrio. A coluna do líquido dentro do tubo desceu até certo ponto e parou. No topo do tubo, portanto, ficou uma área aparentemente sem nada. O que havia lá? Eis a pergunta que intrigou os observadores. O próprio Torricelli não se arriscou a dizer que a resposta era o vácuo. Mas supôs que o efeito era devido à pressão do ar sobre o mercúrio da cuba, que “empurrava” o mercúrio no tubo até um certo ponto – que é a explicação atual. Ele também notou que a altura da coluna de mercúrio variava de um dia para outro: era como se “o peso” do ar variasse. Estava esboçada a noção de pressão atmosférica e o princípio de funcionamento do barômetro. A experiência de Torricelli ficou tão famosa que foi repetida por inúmeros outros curiosos por toda a Europa. Em 1646, na cidade de Rouen na França, Pierre Petit refez um experimento similar para o conterrâneo Etiénne. O evento serviu de inspiração para o filho de Etiénne, o jovem Blaise Pascal (1623-1662).

Pascal então desenvolveu uma série de experimentos sobre o vácuo e os registrou em vários escritos. Graças ao seu trabalho, o barômetro foi aperfeiçoado e o conceito de pressão atmosférica foi lapidado. Encontrou oposição em seu contemporâneo René Descartes (1596-1650), o mais ferrenho opositor ao vácuo do século XVII. Defensor do éter, uma “matéria sutil” que tudo permeia, Descartes duvidava que era vácuo o que havia no tubo acima do mercúrio, contrapondo-se a Pascal, que admitiu isso em seu estudo “Novas experiências sobre o vácuo”, de 1647. Num capítulo pitoresco da história, Descartes afirmou ter dado a Pascal a idéia de testar o barômetro no alto de uma montanha. A experiência foi feita pelo cunhado de Pascal, o que comprovou a redução da pressão atmosférica com o aumento da altitude. Pascal afirmava que a experiência fora uma iniciativa própria, negando a alegação de Descartes. O debate foi desnecessário, pois ambos entraram para a história por suas contribuições à ciência independentemente de quem teria mandado o barômetro subir à montanha.

Ascenção e queda do éter: o “nada” leva tudo

A idéia do éter, defendida por Descartes, havia sido concebida na antiguidade para explicar fenômenos remotos e Aristóteles já o mencionava. “Ele vem da idéia de que não há ação à distância, ou seja, uma coisa não pode agir onde ela não está”, explica Roberto de Andrade Martins, físico especialista em história da ciência, da Unicamp. São Tomás de Aquino (1227-1274) levou o conceito aristotélico de éter para a teologia, ao dizer que, como Deus age em todos os lugares, Ele está presente em todos os lugares - ou seja, “para São Tomás de Aquino, nem Deus poderia agir à distância”, brinca Martins.

O éter seria reincorporado à ciência moderna com a descoberta de que a luz é uma onda eletromagnética, em 1889, por Heinrich Hertz. Ora, a luz das estrelas atravessava o espaço vazio até a Terra. Mas o próprio conceito de onda, uma vibração, supõe a existência de um meio a ser vibrado – ou, nas palavras do físico escocês James Clerk Maxwell: “quem seria o sujeito do verbo ‘ondular'?” Conclusão: sai o vácuo e volta o éter para solucionar a questão. Porém, ainda no fim do século XIX, uma forte corrente de filósofos da ciência pregava a rejeição sumária de todo elemento inobservável das teorias científicas. Por sua notória fama, o éter foi um de seus alvos prediletos. A desqualificação dessa idéia espalhou-se e o termo ganhou uma pecha pejorativa para muitos cientistas. Um deles foi Albert Einstein, que chegou a propor a eliminação do éter na física. A teoria da relatividade especial, de 1905, da qual ele foi um dos principais autores, tornou o éter ainda mais fantasmagórico, pois mostrou que era impossível identificar o referencial no qual ele estaria em repouso. Foi o golpe final. O éter foi novamente desbancado do mundo científico, apesar das ondas, e o vácuo voltava a ser reabilitado.

No século XX, o vazio não tem vez

Mas a posição de Einstein não duraria para sempre. Entre 1907 e 1916, ele e, independentemente, o matemático alemão David Hilbert publicaram a teoria da relatividade geral, que substituía a lei da gravitação de Newton, que falha para campos gravitacionais muito fortes ou em regiões muito extensas (galácticas). Nessa teoria, espaço e tempo – tomados conjuntamente como uma só entidade, o espaço-tempo – se curvam ante a presença de matéria; o efeito dessa curvatura é interpretado como uma força gravitacional que desvia a trajetória dos corpos. Além disso, não só a matéria, mas o próprio o espaço-tempo curvo também é fonte de campo gravitacional. Assim, mesmo o “espaço vazio” poderia conter energia gravitacional e agir fisicamente sobre a matéria! Diante disso, Einstein mudou de posição e passou a defender abertamente que sua teoria da relatividade geral só fazia sentido se o espaço não fosse vazio e o éter existisse.

Mais ataques ao vazio absoluto ainda viriam. A partir de 1928, a relatividade especial foi unificada com a teoria quântica, formando a “teoria quântica do campo”. O que emergiu dela foi surpreendente: o vácuo não está vazio, mas cheio de partículas subatômicas que aparecem e desaparecem muito rapidamente, chamadas “partículas virtuais”. Isso acontece porque, pela teoria quântica, há um limite na precisão com que se pode determinar os valores de certos pares de grandezas físicas medidas simultaneamente, incluindo o par “energia e intervalo de tempo” (é o “princípio da incerteza” ou “da indeterminação”). O que impediria até mesmo de se dizer que o vácuo tem energia “precisamente” zero – o que se traduz fisicamente na existência de diminutos resquícios de campos (elétricos, magnéticos, nucleares) e dessas partículas virtuais. Apesar de parecerem fantasmagóricas, elas produzem conseqüências mensuráveis, como uma minúscula força de atração entre placas metálicas paralelas, chamada efeito Casimir, prevista em 1948, pelo holandês Hendrik Casimir (1909-2000), e confirmada em 2001.

Em 1998, apareceu uma terceira ameaça fatal ao vácuo absoluto. Descobriu-se que a expansão do universo está se acelerando. Sabe-se, desde os anos 1920, que os grupos de galáxias que formam o cosmo estão afastando-se uns dos outros. Mas esperava-se que essa expansão cósmica estivesse se desacelerando, por causa da ação da gravidade. A aceleração da expansão indica que há uma força repulsiva agindo, e a fonte dessa força parece ser algo que permeia todo o espaço. Deu-se o nome de “energia escura” a essa fonte desconhecida. E mais: nos anos seguintes, medidas da radiação cósmica de fundo – uma radiação sutil que permeia todo o espaço cósmico e que contém registros do conteúdo médio de matéria e energia do universo conhecido – indicaram que a maior parte desse conteúdo, nada menos que 75%, é de energia escura! Se somarmos isso com a dita matéria escura – que se revela apenas por sua influência gravitacional e é de natureza também desconhecida –, conclui-se que sabemos o que forma apenas 4% do conteúdo do cosmo.

E o “tudo ou nada” continua

Além de tudo isso, sabe-se que, mesmo que não houvesse nenhum desses “éteres” modernos, o espaço interestelar e intergaláctico não é vazio. Há partículas espalhadas por ele, emitidas pelo Sol e pelas estrelas (são os ditos “ventos solares” e “estelares”), por supernovas ou por outros fenômenos astrofísicos. No espaço entre estrelas, a densidade típica de matéria das regiões mais densas é de um milésimo de trilionésimo da pressão atmosférica na Terra. A região entre as galáxias é cem milhões de vezes mais rala: um átomo a cada 10 litros. Como diz o físico Walter Maciel, da USP, no seu livro “Astrofísica do meio interestelar”, da Edusp, “um copo de vácuo” feito pelo ser humano “contém muito mais partículas pelo menos mil vezes que em qualquer situação usual no meio interestelar.” Isso é pequeno, sim, mas não é zero. O “vácuo” interestelar é denso o suficiente para que as ondas de choque causadas pelo encontro do vento solar com os ventos estelares produzam algumas estruturas nesse diáfano “meio interestelar” ao redor do sistema solar – a principal delas é chamada “heliopausa”. Os dados enviados pelas sondas Voyager 1 e 2, lançadas nos anos 1970, indicam que elas estão começando a penetrar nessas estruturas. Deverão nos enviar informações muito preciosas sobre elas nos próximos anos.

Ainda que esses elementos sejam diferentes do éter do século XIX, eles mostram que o espaço sem matéria não pode ser identificado com o “nada”. Mas, sendo assim, como fica o espaço “vazio” na extremidade do tubo de mercúrio de Torricelli? Ora, como diz Martins, “ninguém pode mostrar que existe vácuo”, pois apenas “o que se pode estabelecer pela experiência é que em certo lugar não há certas coisas”. Torricelli viu que não havia ar ou mercúrio no seu tubo; mas não “provou” que lá havia vácuo – seus seguidores, como Pascal, apenas interpretaram assim. Nunca poderemos dizer tudo sobre o nada.