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Editorial
Singularmente primatas
Por Carlos Vogt
10/12/2007

Os comportamentos individuais só podem ser entendidos considerando-se o indivíduo parte de um grupo social que se amplia, da família nuclear, ao grupo de amigos, inimigos, conhecidos, compatriotas, associados, outros humanos em geral. O indivíduo sofre a influência e é fator de transformação do grupo social onde está inserido. As relações sociais são sempre caracterizadas por tensões e equilíbrios, por guerra e paz, numa trajetória permeada por valores morais. São esses fatores, objetos de estudo da sociologia, mas também de outras áreas do conhecimento, e que se aplicam aos seres humanos e suas redes sociais conhecidas, que são também considerados, mais recentemente, por etólogos e, mais especificamente, por primatólogos, para entender muitas das questões de comportamento animal, mas também o próprio comportamento humano na comparação com o dos animais, numa interação interdisciplinar fundamental e que traz enorme contribuição para a ciência.

No decorrer dos séculos, com a evolução da ciência e do conhecimento, viemos adotando e quebrando paradigmas e ajustando os padrões de ética a novos conceitos e descobertas, em todas as áreas, mas, o que mais nos atinge emocionalmente em relação a esses padrões, são os que dizem respeito às relações entre os seres, da nossa própria espécie, mas também de outras. Nossa própria evolução passa por essa questão, com tantos mistérios, beleza, dúvidas e inquietações.

Além da família nuclear, uma outra característica exclusiva dos seres humanos é a linguagem falada e escrita, fundamental para regular as ações, antecipando, explicando, relatando fatos e intenções, e para a qual damos tanta importância que acabamos desprezando o fascinante universo de nossa comunicação não-verbal, sendo que esta, ou talvez porque esta, ao contrário da outra, não é uma exclusividade dos seres humanos, porque a compartilhamos com outras espécies animais em particular com nossos parentes mais próximos, os grandes primatas. Quando observamos chimpanzés, no zoológico, em geral rimos desconcertados frente à enorme semelhança deles conosco, como se fossem, eles, humanos com pelos, ou caricaturas humanas – pelo tamanho da boca e postura – e, nós, macacos pelados.

Quando observamos um indivíduo, que se percebe imitado por seus semelhantes em determinado gesto, percebemos também que há um aumento de freqüência ou intensidade desse gesto, significando que ele gosta muito de ser imitado e que adquire algum poder sobre os outros com isso. Seria esse indivíduo um humano ou um primata? Na verdade, os dois. “Nós somos animais e os animais somos nós”, como escreveu a jornalista Barbara Ehrenreich (autora de Miséria à americana – Ed. Record) em texto reproduzido no Caderno “Mais” da Folha de S. Paulo de 28/10/2007. As conseqüências dessa imitação, que é um aprendizado, é um dos fatores que diferenciam grupos sociais, sejam eles humanos ou de outros animais.

A etologia estuda a evolução do comportamento animal e, tradicionalmente, considera como objeto as características comportamentais herdadas de gerações anteriores, excluindo questões relacionadas com o aprendizado e, principalmente, com a transmissão desse aprendizado, embora reconhecendo que os animais são capazes de aprender.

A novidade que estudiosos da área apresentam é que o comportamento “moral” observado em animais na natureza pode ser produto da cultura e não puro instinto e herança genética como se acreditava até recentemente. Sabe-se, hoje, que animais não humanos são solidários, fazem sexo também por prazer, são capazes de raciocínio lógico e inteligência, conseguem transmitir conhecimentos – a base da cultura – e, portanto, têm uma cultura. São fatos fascinantes, sejam as estratégias de guerra mostradas nos documentários que focam o mundo animal, sejam as ocorrências de quebra de regras em favor da empatia, mesmo que se saiba, o tempo todo, que tanto a preocupação com o sofrimento alheio quanto a união de esforços na realização de determinadas tarefas são muito importantes para a preservação do grupo.

Por outro lado, a constatação de que os pilares da moralidade humana, a solidariedade e o altruísmo, também se manifestam largamente nos animais, traz uma nova visão da construção dessa moralidade, não mais determinada pela cultura, para controlar nossos instintos animais, mas sim inerentes à nossa constituição animal. São descobertas que causarão, senão uma revolução, pelo menos muita marola nos divãs dos psicanalistas e, quiçá, de outras áreas da ciência.

Sensação do momento como obra modelo de popularização da ciência, ou divulgação científica, o livro Eu primata: porque somos como somos, publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras, foi destacado como “livro notável” pelo New York Times, em 2005. Frans de Waal, o autor, é holandês, biólogo, trabalhando atualmente nos Estados Unidos, e é um dos mais importantes primatólogos do mundo e seu principal objeto de estudo são as estratégias de resolução de conflitos e inteligência social em primatas. O livro descreve detalhadamente as grandes diferenças entre chimpanzés e bonobos e traça paralelos entre o comportamento social desses primatas e de humanos, destacando alguns indivíduos, de uma espécie e de outra, em histórias por vezes hilariantes, e outras terrivelmente violentas. Marcando a diferença, diz que: “chimpanzés resolvem questões de sexo usando poder e bonobos resolvem questões de poder usando sexo”, e que humanos fazem uma coisa e outra. Propõe, fundamentalmente, que nossa moralidade não é fruto de nossa cultura, que a aprimora ou modifica, mas sim da empatia em relação ao outro. Com a bagagem de anos de observação e estudo, afirma que os primatas têm uma cultura, ou seja, que os comportamentos observados não são apenas instintivos e sim decorrentes de aprendizado. Dentre as observações destacam-se as estratégias de reconciliação e também as de ataque, sempre com histórias que emocionam.

Por outro lado, e paradoxalmente, pela empatia mais evidente nos bonobos, e a reciprocidade presente no comportamento dos chimpanzés, podemos perceber que “nossa moralidade é resultado do mesmo processo seletivo que determina nosso lado competitivo e agressivo”, que a hierarquia é fator fundamental de construção da democracia e que nossa moral tem gosto de sangue. O autor reforça, ainda, que Darwin tinha a convicção de que a ética nasceu dos instintos sociais e o quanto o criador da Teoria da Evolução seria contra o darwinismo social, sabendo que nem sempre são os mais fracos e ineptos que perdem ou desaparecem mesmo no mundo dos animais ditos irracionais.

Mas, para os pessimistas, uma má notícia: Frans de Waal consegue provar que nossa vocação para a guerra é, na verdade, muito menor que nossa vocação para a paz, que somos campeões em construir a paz, apesar da constatação de que “na guerra os humanos ultrapassam a violência dos chimpanzés e na paz as relações intergrupais são bastante mais ricas do que entre os bonobos”. Descreve cenas de reconciliação depois de brigas entre chimpanzés, perguntando-se se, de fato, o perdão e a bondade são características humanas ou tendências naturais entre animais cooperativos e com memória. Por outro lado, em vários momentos somos lembrados de quão terrível e abjeto pode ser um animal, humano ou não, quando violento e cruel, em situações que o autor, mesmo com esforço e disciplina científica, não consegue ser imparcial. São descrições de cenas de violência extrema, inclusive infanticídio, que nos remetem às atrocidades humanas, infelizmente e inclusive da atualidade.

Mais do que um primatólogo dedicado, Frans de Waal mostra-se um excelente divulgador científico – são raros os livros com essa densidade e grau de informação – com linguagem tão agradável e leve. Traz, na medida exata, informações e comentários surpreendentes, reconfortantes, irônicos, sem jamais ultrapassar os limites da delicadeza, mesmo quando trata de temas mais difíceis. Como todo bom “primata”, dá suas estocadas nos adversários de suas idéias, sem, contudo, nomeá-los, mantendo o estilo elegante. Fica mesmo parecido com uma mistura de chimpanzé e bonobo, tendo herdado de cada um suas melhores características. O livro é, também, uma arma importante na luta para frear o desmatamento absurdo que continua a ocorrer nos poucos santuários ecológicos do planeta.

Transbordando afeto e compreensão tanto pelos humanos quanto pelos primatas, e mesmo por outros animais, como se lê nas entrelinhas, recheado de histórias fascinantes, muitas engraçadas, outras assustadoras, o livro de Frans de Waal mostra essas características logo de início com a dedicatória à mulher, agradecimentos a amigos e colaboradores. Por outro lado o currículo do autor e a extensa bibliografia garantem informações criteriosas ao leitor não-especialista. De leitura saborosa, tem uma característica presente tanto em nós, humanos, como nos primatas, a curiosidade e o interesse pelo outro, seu sucesso ou fracasso e nos provoca sentimentos de aprovação ou reprovação em relação aos nossos “líderes do bando”

Numa visão otimista de que a vida sempre prevalece no final dos processos de transformação, podemos esperar, e desejar, que os “líderes do nosso bando”, percebam o perigo iminente e assimilem a urgência de mudança de atitude, que o movimento mundial pela preservação se amplie, de modo a modificar radicalmente a ação dos humanos em relação ao meio, acrescentando uma nova noção do papel de indivíduo pertencente a um grupo único, que inclui outras espécies de habitantes do nosso mesmo planeta. É grande a contribuição dos etólogos para essa discussão como se percebe nos trechos, selecionados abaixo, do livro Eu primata:

“As emoções pessoais são cruciais. Combinadas ao entendimento de como nosso comportamento afeta os outros, elas criam princípios morais. Essa é a abordagem de baixo para cima: da emoção ao senso de eqüidade. É o oposto da idéia de que a eqüidade foi uma noção introduzida por homens sábios (fundadores de nações, revolucionários, filósofos) após uma vida de reflexões sobre o certo, o errado e o nosso lugar no universo. As abordagens de cima para baixo, que começam uma explicação pelo produto final, quase sempre são erradas. Perguntam por que somos os únicos a possuir eqüidade, justiça, política, moralidade etc, quando a verdadeira questão é quais são os tijolos da construção. Quais são os elementos básicos necessários para construir eqüidade, justiça, política, moralidade etc? como o fenômeno maior derivou do mais simples? Assim que refletimos sobre essa questão, torna-se óbvio que temos em comum com outras espécies muitos dos blocos construtores. Nada do que fazemos é realmente único”. (pág. 260)

“Assim, a profunda ironia é que a nosso mais nobre conquista, a moralidade, tem laços evolutivos como nosso mais torpe comportamento, a guerra. O senso de comunidade requerido por aquela foi fornecido por esta”. (pág. 262)

“O fato de o bem comum nunca se estender além do grupo se explica porque as regras morais raramente mencionam o lado de fora: as pessoas sentem-se autorizadas a tratar os inimigos de modo inimagináveis para os de sua comunidade. Aplicar a moralidade além dessas fronteiras é o grande desafio de nossa época. Criando direitos humanos universais – mesmo para nosso inimigos, como faz a Convenção de Genebra – ou debatendo a ética para o uso de animais, aplicamos fora do grupo, e mesmo até fora de nossa espécie, um sistema que evolui das razões intragrupo. A expansão do círculo moral é uma empreitada frágil. Nossa maior esperança de sucesso são as emoções morais, pois as emoções são desobedientes. Em princípio a empatia pode vencer qualquer regra sobre como tratar os outros”. (pág. 263)

Assim, os animais, que têm também, como os humanos, preferências sexuais, vivem culturalmente a regulação de seus comportamentos – mesmo que mais os públicos do que os privados. Se isso relativiza o papel da cultura para os humanos, relativiza também a força da natureza para os animais. Ou, como escreve Frans de Waal: “A natureza humana pura é como o Santo Graal: eternamente procurada, mas nunca encontrada”.