O século XX presenciou uma extraordinária revolução científica e tecnológica induzida, principalmente, pelo extraordinário avanço da capacidade de observação e pela invenção de computadores capazes de armazenar e operar volumes de dados inimagináveis e com velocidade espantosa. Tanto no domínio do microcosmo como do macrocosmo, a capacidade de observação deu um salto extraordinário, podendo-se hoje, num dos extremos, observar com microscópios de força objetos em escala molecular e, no outro extremo, recorrendo ao campo ultra profundo do telescópio Hubble, gravar as imagens das galáxias mais antigas. Por outro lado, a capacidade computacional de executar operações aritméticas, até a metade do século XX, era muito limitada. Antes da década de 1940, só se dispunha de máquinas de calcular elétricas, sem praticamente nenhuma capacidade de armazenar dados e sem capacidade de programação. Hoje os supercomputadores são capazes de realizar 1015 operações aritméticas por segundo. O encontro de observação com computação proporcionou um campo fértil para o desenvolvimento das ciências da natureza e da matemática aplicada. Foi essa combinação entre observação e computação que promoveu a convergência de conhecimentos que fez surgir os novos temas de investigação.
Embora a investigação multi-inter-transdisciplinar – ou qualquer que seja a caracterização que se lhe queira dar – tenha emergido com destaque há cerca de 15 anos, a sua história é um pouco mais antiga. Foi na metade ou no último quarto do século passado que a convergência disciplinar começou a despontar como o caminho mais adequado e, em alguns casos, indispensável para fazer avançar o conhecimento. Schrödinger, no início da década de 1940, escreveu o livro What is life, que ficou famoso. Um físico embrenhando-se na seara alheia, com as devidas desculpas aos seus pares, foi um dos pioneiros declarados do rompimento das barreiras departamentais. Atualmente, com raras exceções, não se trata mais de assunto de ponta sem que se lhe acentue a característica interdisciplinar. A modelagem computacional, que é um dos carros chefes da área batizada como “sistemas complexos”, não se faz sem o emaranhamento de várias áreas do conhecimento. Física, química, biologia, matemática, computação, para citar algumas das áreas clássicas, convergem para interpretar, prever ou controlar vários fenômenos naturais. Por outro lado, a expansão da “www” vem promovendo a formação de redes sociais e acesso a uma inesgotável quantidade de dados, além da extraordinária diversificação de fontes de informação. Tudo isso, associado à crescente facilidade de cálculo proporcionada pelo aperfeiçoamento de supercomputadores e técnicas matemáticas e computacionais de modelagem, fez a área de ciências sociais ingressar na nova era da convergência disciplinar. De fato, as ferramentas que permitem previsões, interpretações, análise de contextos político-sociais-econômicos promoveram a interação entre disciplinas que seguiam trajetórias pouco permeáveis. Mais ainda, hoje são comuns os temas que exigem a cooperação entre as áreas das humanidades, das ciências sociais, das ciências da natureza, das engenharias, da computação e da matemática. Talvez os exemplos mais característicos dessa abrangência quase que universal sejam os temas de mudanças climáticas e mudanças globais.
Assim, podemos dizer que presenciamos nas últimas décadas uma grande revolução na organização da investigação científica, com várias disciplinas convergindo para formarem um novo corpo de conhecimento sem metodologias bem estabelecidas e, pela própria natureza dos temas, sem a existência de especialistas no assunto. Pois bem, se a pesquisa tomou novos rumos pela necessidade imperativa de responder às perguntas da nova ciência, convocando pessoas com formações básicas diferenciadas, as universidades permaneceram e permanecem, em sua grande maioria, imóveis, engessadas no seu pedestal majestático que se transformará, para as que não se moverem, em implacável cadafalso. A educação superior estagnou enquanto que conhecimento científico e tecnológico avançaram e continuam avançando rapidamente. Há um descompasso visível entre pesquisa e educação superior.
Quais as causas que vêm permitindo que as trajetórias de pesquisa e de educação venham divergindo tanto? O problema é complexo, mas nada pior do que ficar paralisados diante da esfinge à espera de sermos devorados. Assim, sem entrar em pormenores e considerações sobre casos específicos, venho apresentar alguns fatos que permeiam praticamente todo o nosso sistema universitário e que podem explicar, pelo menos em parte, as dificuldades que impedem o rompimento do imobilismo que aflige o nosso sistema universitário.
Refiro-me aqui à paralisação da universidade como um sistema orgânico e, portanto, integrado e interdependente. Como a interdisciplinaridade é hoje uma realidade nos projetos de pesquisa mais avançados, as nossas boas universidades a praticam, mas de forma isolada nos departamentos ou grupos mais ativos. Infelizmente, essa nova perspectiva de avanço científico e tecnológico não tem servido para integrar a universidade. Pelo contrário, tem contribuído para a desintegração. Entretanto, é nesses departamentos, os mais avançados cientificamente, onde reside a esperança de recomposição da universidade, pois é ali que se desenvolve a nova ciência e a nova tecnologia. É preciso que eles sejam motivados para juntar esforços no sentido de reformar a universidade como instituição de educação superior. Creio que três conceitos são essenciais para reunir os departamentos mais produtivos das universidades num esforço de promover maior adequação da educação superior aos tempos modernos:
A universidade não é o lugar onde se ensina mas onde se aprende
O primeiro elemento do trinômio clássico ensino-pesquisa-extensão induz a um erro que, turbinado pela nossa prática de educação desde os bancos do ensino fundamental, faz dos estudantes simples receptores de conhecimento. Os professores supostamente, e com muito orgulho, sentem-se capazes de entupir a cabeça dos (assim considerados) apagados alunos com uma enorme quantidade de matérias, frequentemente repletas de pormenores que eles (os professores) frequentemente não dominam. Então, a primeira ação é insistir na prioridade máxima de aprender como pedra fundamental do sistema educacional. Eliminar a palavra ensino na universidade, onde deve prevalecer um contínuo convite a aprender. Para isso, entre outras coisas, eliminar as separações reais ou virtuais entre graduação, pós-graduação, professores, pesquisadores e técnicos. Há que se formar a comunidade universitária com o foco no aprender, descobrir (a aventura de abrir novas trilhas), inventar (não inovar, mas inventar) e criticar (o exercício da lógica). Não é uma tarefa fácil, nada é fácil, mas perfeitamente possível, principalmente, porque não existem nem estatutos, nem regimentos que regulamentem essas ações. Importante notar que a real integração da educação na nova ciência e na nova tecnologia, a completude da interdisciplinaridade, não se faz sem a participação maciça de estudantes.
Não se coloca vinho novo em vasos velhos
Se isso for feito os vasos se rompem. A estrutura curricular hoje em vigor não serve mais. Há mais de 50 anos, as linhas temáticas mestras permanecem as mesmas. Não adiantam reformas curriculares com atualização de ementas. É necessário que os fios condutores da formação universitária sejam revistos. Para focalizar um setor em que transito com mais facilidade, pergunto até quando teremos um currículo básico para a área tecnológica com os fios condutores: Física I, II, III. IV; Química I, II, III, IV; Cálculo I, II, II, IV como eu tive – já se passaram mais de cinquenta anos. Fala-se e pratica-se, de fato, a interdisciplinaridade nas investigações mais avançadas. Mas os estudantes, na sua primeira experiência universitária, deparam-se com eixos iguais aos que estiveram presentes na formação de seus avós. Não se trata de eliminar a boa ciência, a excelente base construída ao longo de séculos, mas de rearranjá-la em eixos integrados que traduzam os novos caminhos do progresso do conhecimento. Por que não Energia I, II, III, IV; Estrutura da Matéria I, II, III, IV; Processos de Transformação I, II, III, IV; Comunicação e Informação I, II, III, IV; Representação e Simulação I, II III, IV? Aproveitando essa reorganização que não tem solução única, podia-se simultaneamente reduzir a carga horária e a quantidade de créditos para a formação acadêmica. A hipótese de estudantes apagados, que prevalece no subconsciente coletivo dos nossos docentes em todos os níveis, impõe uma quantidade de matéria e de horas de aula presencial absurda, como se os estudantes fossem incapazes de aprender. Uma consequência clara é que quando os jovens engenheiros enfrentam problemas complexos cuja solução não se encontra em livros, a solução mais frequente é a de “chamar um consultor estrangeiro”. Aliás, essa é a solução usada por empresas brasileiras de consultoria, considerando-se também a priori incapazes de enfrentar desafios. Tudo isso, ouso ariscar, consequência de uma educação apagada.
Primo ricercare e scoprire dopo pubblicare
Na década de 1970, numa conversa sobre a avaliação de docentes na Coppe, um jovem docente do programa de pós-graduação de engenharia civil, impressionado com a valorização da publicação per se, interveio chamando a atenção que estávamos invertendo a ordem das coisas. Publicação é resultado, consequência da pesquisa. Provavelmente temia que a fúria por publicar turvasse o gosto pela descoberta de novas técnicas, novas invenções, prejudicando a missão maior da universidade de fazer avançar o conhecimento ou aplicar-se na “busca da verdade”, como se dizia no passado. Nada mais atual do que aquela observação do jovem colega. Recuperar o gosto pelo desafio de buscar novos caminhos, abandonando a esteira do previsível, do acréscimo de mais uma pedrinha na pirâmide do conhecimento bem estabelecido é uma atitude que ainda nos falta. Não quero exagerar afirmando que todos devem estar continuamente empenhados em desvendar os mistérios da natureza ou revelar os segredos escondidos num teorema. Mas é importante que muitos, em algum tempo, se aventurem a percorrer novos caminhos sem compromissos com a ciência “bem estabelecida”. Falta-nos essa ousadia e temas interdisciplinares são uma abertura para essa aventura. As universidades deveriam captar recursos, seja nas agências de fomento seja no setor privado, para financiar projetos sustentados por ideias novas e conceitos plausíveis, mas com incerteza quanto ao sucesso. Essa ação centralizada na reitoria da universidade pode ser um instrumento poderoso de integração departamental e, quem sabe, de ruptura de certas barreiras que separam os departamentos. Mas, como sempre, essa iniciativa deve ser condicionada a uma intensa participação de jovens estudantes.
São três propostas que acredito estarem dentro das possibilidades das universidades. Não causam grandes atropelos, não estão regulamentadas e incentivam o diálogo entre os vários atores da comunidade. Na UFRJ, o Espaço Alexandria, sob a pró-reitoria de pós-graduação, está tentando realizar parte dessas ações. Estamos ainda no início e nada é fácil. Deparamo-nos com fatos surpreendentes nesses primeiros anos e um deles é quase inacreditável. As pessoas não se conhecem, poucos sabem o que os outros fazem, embora atuem em temas de interesse comum. Vários docentes ávidos pelo uso de computação de alto desempenho não sabiam que a UFRJ tem no seu campus um supercomputador! A promoção do encontro de professores, pesquisadores e estudantes provenientes de vários centros e departamentos é uma tarefa crítica no mundo universitário, ainda que seja para começar – como é triste dizer isso – a construir uma verdadeira universidade. O nome “Alexandria”, entre outras coisas, tem função de oferecer um local para ancorar a nossa tradição. Vivemos uma época de choque cultural, em que as tradições encurtam-se em escalas de tempo da ordem de poucos anos. Quem com mais de 60 anos não viu em museus instrumentos que manuseou quando ainda jovem? Essa contração no tempo não oferece terreno firme para se ancorar tradições. Precisamos lançar nossa âncora para tempos bem mais antigos. Daí “Alexandria”, onde se forjaram os grandes saltos do conhecimento humano em todas as áreas e que se tornaram o berço da nossa cultura ocidental. Foram saltos semelhantes aos que presenciamos hoje, embora em outra escala de tempo.
Pois bem, cada universidade com sua cultura, com sua tradição, com seu modelo, cada uma com seu modo próprio deve buscar urgentemente uma educação compatível com a nova ciência e a nova tecnologia. Troca de ideias, de experiências, intercâmbio de professores, pesquisadores e estudantes, tudo isso nos falta e é preciso que seja implantado. Porém, Deus nos livre de soluções nacionais, homogêneas, universais, que supostamente servem para todos. Perdoem-me os que são mais afeitos às normas e regras exaradas por conselhos nacionais, regionais ou locais, mas estamos na época de surfar e não de nadar. A velocidade com que as coisas evoluem não é compatível com amarras legais, mas exige coragem e bom senso. Ou nos movimentamos ou seremos devorados pela globalização sem fronteiras.
Luiz Bevilacqua é professor emérito do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ) e coordena a implantação do Espaço Alexandria na UFRJ, destinado a estimular a integração interdisciplinar em projetos voltados para fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico.
|