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Artigo
Mania de limpeza e o mercado de perfumes & domissanitários
Por Lauro E. S. Barata
10/09/2007
A remoção da sujeira custa aos brasileiros R$ 20 bilhões por ano e, mesmo assim, o Brasil parece ainda se sentir sujo. Lavar, limpar, desodorizar, polir, lustrar, são verbos dos produtos de limpeza doméstica, domissanitários, e que tiveram um mercado que cresceu quase 10% aqui no ano que passou e produziu 10 bilhões de quilos de produtos. Quase metade deste mercado foi em detergentes em pó, sabões em pedra e amaciantes. As lavanderias não pararam, dia e noite, “lavando sempre mais branco” e usando para “remover sujeiras extremas”, limpando o Brasil de Norte a Sul. Neste esforço iníquo, cada brasileiro gastou 62,5 kg de produtos de limpeza. Um recorde. Dez milhões de toneladas de produtos químicos, que dariam para passar o Brasil a limpo, e talvez a ferros, lavando das escadarias do Pelourinho à rampa do Congresso...

Com tanta sujeira aparente, o consumidor se sentindo cheio das sujidades foi ao banho gastando US$ 1,43 bilhão em sabonetes, talcos e outros produtos perfumados. Aplicou 47,9 milhões de quilos em desodorante e outros 24,7 milhões de quilos de fragrâncias, fazendo o mercado de desodorantes crescer 34% em valor e explodir nas vendas porta-a-porta, que aumentaram quase 75% no ano passado, segundo dados da ABIHPEC (Associação Brasileira de Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos).

O Óleo de Peroba passou por Brasília prometendo lustrar e renovar artefatos de madeira e o Poliflor pelos Jardins proporcionando brilho enquanto removia sujeira do Bahamas. Alvejantes e sequestrantes foram vistos com desenvoltura na Rocinha e Copacabana, substâncias do sabão em pó usadas indistintamente tanto pela comunidade como pelas patroas. O cheirinho de limpeza permitiu um crescimento nas vendas de 9% no mercado de domissanitários com os produtos brasileiros de limpeza, atravessando as fronteiras com exportações de US$ 163 milhões e importação de outros US$ 267 milhões, gerando um déficit considerável, que a ninguém importou.

Água sanitária (7%), desinfetante (5%), concentrados de limpeza (5%) e detergentes líquidos (6%) são os itens mais importantes do mercado dos domissanitários para o Brasil que não pára de esfregar, desinfetar, polir, encerar, lavar e escovar, tirando manchas, eliminando fungos e bactérias, “matando muriçocas, carapanãs, baratas e pernilongos mais eficientemente”. Objetivo de milhões de brasileiras todos os dias, gastamos com isso 14% da nossa cesta de consumo. Tudo com um cheirinho, hummmm, de limpeza... e com clientes rompendo os pacotes e frascos no supermercado para sentir de perto a fragrância perfumada que “viu” pela TV. O cheirinho lima-limão, sempre associado à limpeza é que é importante, não a composição química; afinal, fórmula de produto de limpeza, quem conhece? Desodorizar banheiros e cozinhas custa caro, mas nos fazem felizes e nos deixam como o segundo consumidor de produtos de limpeza do planeta, logo atrás dos Estados Unidos! Do lado das empresas, considerando apenas as formais, o Brasil registra 1.600, a bem produzir sprays, removedores, pinhos-sol e outros produtos limpantes. Embora apenas dez sejam consideradas grandes, as empresas na sua maioria (66%) é de pequenas e micros. Empregam seiscentos mil a misturar, destilar, formular, embalar, produzir, controlar a qualidade, despachar e vender produtos, quase sempre derivados do petróleo e do alquilbenzenosulfonato de sódio, cloretos de alquiltrimetilamonio, tensoativos aniônicos e catiônicos e outros indecifráveis e esdrúxulos nomes sem os quais nossa mania de limpeza não seria a mesma.

A limpeza, dizia o poeta, é fundamental (ou era “a beleza”?), e o dito nunca foi mais verdade do que no Brasil, país que cultua o corpo como nenhum outro, e onde o mercado de cosméticos avança celeremente nos colocando em poucos anos como o 3o do mundo, atrás apenas do Japão e Estados Unidos. Este mercado planetário de cosméticos foi de US$ 270 bilhões em 2006. O crescimento no país tem sido rápido e durável, e há sete anos não pára de crescer. Passamos a França, a Alemanha e a Itália, que até há uns cinco anos estavam a nossa frente. Assim, quando alguém disser: “não há país nenhum do mundo com crescimento igual nestes últimos cinco anos”, acredite, ele deve estar se referindo ao mercado de cosméticos, que no ano passado cresceu 26% enquanto o mundo crescia menos de 5% e com a poderosa China crescendo só 11% e a França, país dos cosméticos, um magro 1%.

O mercado brasileiro de cosméticos é também vigoroso, saímos da 8ª posição em 1999 para a 3ª no ano passado, num crescimento sustentável de 11,7% nos últimos 5 anos. E quem sustenta isso são as quase 1.500 empresas, na sua maioria de pequeno e médio porte. As 15 primeiras faturam 73% do total do mercado. Com três brasileiras entre as dez primeiras, a Natura está na 2ª posição, tendo passado a norte-americana Avon e estando com suas unhas e esmaltes ameaçando a européia Unilever. Um terço do mercado equivale a produtos para o banho (10%), desodorantes (9%) e fragrâncias (13%), assim, não espanta que em Belém (PA), quando se chega para almoçar na casa de um amigo, ele te receba à porta com um abraço, uma toalha cheirando à patchouly, um sabonete e o convite: “o banheiro está livre, vá se banhar”. Atrás da frase, sem qualquer insinuação, um hábito indígena adotado pelos portugueses em terras longínquas. Não é de se estranhar que uma das fábricas de sabonetes mais antigas do Brasil, a Phebo, fique em Belém. Pelas chaminés gera uma “poluição” cheirosa de pau-rosa, óleo aromático usado para a sua confecção, mas hoje substituído pelo linalol sintético.

De sabonetes, talcos e outros produtos perfumados produzimos, em 2006, 300 milhões de quilos gerando R$ 1,43 bilhão ao nível da indústria, indicando que a venda ao nível do consumidor pode ter alcançado R$ 3 bilhões. Com essa mania de tomar banho, o país é individualmente, o maior consumidor de sabonetes no mundo, gastando, cada um de nós, 18 sabonetes por ano (ou 1,58 kg per capita). Não conhecemos os números individuais do gasto dos paraenses, mas se considerarmos os três banhos que tomam ao dia, o consumo por lá deve ser maior que no restante do Brasil. Mesmo nas penteadeiras de palafitas na Amazônia não faltam batons. Meia-dúzia foram contados em uma vista técnica de um consultor de uma grande empresa, o mesmo número, em média, quando fiz uma “estatística” junto às minhas alunas no laboratório pedindo que informassem quantos batons tinham naquele momento em suas respectivas bolsas... Alunas e milhões de outras mulheres que se fazem belas todos os dias consumiram R$ 40 bilhões de toda sorte de produto de beleza no ano passado. No item fragrâncias e perfumes, 14% do mercado, só perdemos para os Estados Unidos, com o Brasil na 2ª posição e faturamento de US$ 3 bilhões e incrível crescimento de 33%. Muito mais do que o desejado crescimento “chinês”, este setor da economia coloca o Brasil em 1º lugar em crescimento, seguido pela Rússia (15%) e China (12%). E a França, sinônimo de perfumaria, está lá no 4º lugar com apenas 7% do mercado mundial. No Brasil, o setor de perfumaria porta-a-porta contribui para o crescimento na venda direta de 21,6%.

A mania de limpeza parece acentuada em Belém. Paraense lava as mãos a toda hora, como o meu tio, defuma a casa e a roupinha do neném. Bota vetiver nos armários e gavetas, usa sachês nas estantes de livros e dá banho no cachorro com andiroba perfumada com priprioca (Cyperus artticulathus). Sachês, defumações e banhos de cheiro são ainda produtos rústicos, feitos artesanalmente com casca, folhas, galhos, cipós e folhas de plantas aromáticas, e sugerem um mercado potencial que, por muito tempo desprezado, só agora foi encontrado pela Natura. Chamma da Amazônia, Amazon-Ervas e Amazongreen, assim mesmo tudo em inglês, são empresas locais que desconfiadas dos nomes indígenas, só agora começam a despertar para essa fatia exclusiva do mercado. Os perfumes do Ver-o-Peso, os Banhos de Cheiro, com priprioca e outras ervas da Da Dona Cheirosa, felizmente começam a ser pesquisados por perfumistas e chegaram até a gerar polêmica recentemente quando o Ministério Público do Pará organizou os feirantes contra uma grande empresa brasileira, que usou o conhecimento tradicional para um de seus mais badalados perfumes lançado em Paris.

Uma aromaterapia cabocla é praticada na Amazônia desde tempos muito antigos. Para espantar os carapanãs da malária, mosquitos que como os suíços, chegam às seis da tarde em ponto, os ribeirinhos fazem defumações com a semente de andiroba (Carapa guianensis), um inseticida natural. Mas para afastar os maus espíritos a fórmula é diferente, a casa é defumada com breu (Protium spp.), cascas de pau-rosa e sementes de cumarú, que além de afastar os maus, aproxima os bons e ainda orienta os espíritos indecisos, que, dizem, são os piores. Já os banhos são usados durante todo o ano e, mais especialmente, no período das festas juninas. Nesta ocasião, a feira do Ver-o-Peso em Belém se estende por alguns quarteirões a mais, com cinqüenta barracas, onde se pode adquirir um set de ervas aromáticas imbatíveis para produzir os Banhos de Cheiro e Banhos Atrativos, que remetem às boas coisas desejadas, um bom emprego, uma boa moça ou um bom ano.

Os banhos são, às vezes, precedidos de uma defumação, de si mesmo e da casa. Nos incensos predomina o breu (Protium spp.), e nas defumações, a casca do pau-rosa. Várias plantas são usadas também em rituais espirituais dos banhos de cheiro, usados para o relacionamento pessoal e psico-social. Nestas composições misturam-se espécies aromáticas como a catinga-de-mulata (Aeollanthus suaveolens) e a chama (Mentha spp.) com priprioca e outras não aromáticas como a espada de São Jorge (Sansevieria zeylanica, Agavaceae) e até mesmo a partes de animais ou insetos amazônicos, como o órgão sexual da fêmea do Boto, um cetáceo da espécie Inia geoffroyensis.

Mas a perfumaria Amazônica vai além dos Banhos de Cheiros. A aromaterapia nativa utiliza plantas nas formas de banhos aromáticos, inalações, embrocações e defumações com incensos. Plantas odoríferas são usadas tanto para perfumes caseiros, sachets e pot-pourries como para alimentos e medicamentos. Fazem parte do cotidiano amazônico, independente do extrato social, religião ou grupo étnico. São usadas por índios, ribeirinhos, ou pela classe média ou rica, na alimentação, na etnomedicina, como praguicidas, na cosmética natural, na perfumaria, na realização de seus rituais e na aromaterapia. Na culinária, a pimenta-de-cheiro (Capsicum spp), a alfavaca (Ocimum gratissimum) e a chicória ou coentrão (Eryngium foetidum L., Umbeliferae) são os condimentos aromáticos. Na etnomedicina o puxuri (Licaria puchuir-major), a casca-preciosa (Aniba canelilla) e o óleo de Copaíba (Copaifera spp), empregados na forma de chás, emplastros, óleos de massagem, infusões, garrafadas e in natura. Como repelentes de insetos o patchouli-do-Pará (de fato Vetiveria zizanoides), a priprioca, o breu e o cumarú (Dipteryx odorata). Na cosmética, incontáveis óleos essenciais dos louros (Lauráceas) como o pau-rosa (Aniba rosaeodora) e a macacaporanga (Aniba fragrans) para a perfumaria. Nos cosméticos, plantas aromáticas frescas ou secas são misturadas com o óleo medicinal da andiroba, castanha-do-Pará (Bertholetia excelsa) ou outros óleos vegetais para produzir óleos de massagem corporal, loções balsâmicas, cremes e sabonetes. Com a gordura de tartaruga se fazem cremes para o rosto, e o sabonete de andiroba cremoso é feito com cinzas das cascas do cacau (Theobroma cacao) e utilizado para o embelezamento e viço da pele.

O Brasil tem abundância em plantas aromáticas, mais de mil, segundo alguns pesquisadores, mas 90% do que produz são óleos de cítricos, laranja e limões. O preço médio dos óleos que exportamos é de US$ 2,50 por quilograma, mas na importação pagamos sete vezes mais. A diferença está na tecnologia adicionada aos produtos importados. Com um Brasil mega-diverso, apenas três matérias primas aromáticas se destacam na Amazônia: o óleo essencial de pau-rosa (US$ 3 milhões exportados em 2006), as sementes de cumarú e o óleo-resina de copaíba, todos produtos extrativistas. Deste modo, a participação de produtos da nossa biodiversidade tão rica no mercado de óleos essenciais é pífia, apenas 0,09% do mercado mundial. Se considerarmos que a indústria de perfumaria e cosméticos tem demanda constante de produtos novos, o país, mas principalmente os estados da Amazônia, poderiam decidir que a floresta poderá suprir esse mercado multimilionário, desde que adicionando tecnologia à ciência, já disponível internamente. Para o desenvolvimento de novos produtos aromáticos da nossa flora três fatores são necessários: conhecimento, tecnologia e inovação. A tradição e o conhecimento do português e do índio, amalgamados séculos atrás, e não aniquilados como querem alguns alarmistas, permitiu que o conhecimento tradicional das ervas e óleos aromáticos chegasse até nós através dos caboclos, que, eventualmente, se tornaram cientistas e repositórios da fusão cromossômica presente nos amazônidas. A tecnologia de extração de óleos essenciais para perfumaria é técnica conhecida desde a Babilônia, embora seja sempre possível inovar, como fez a Unicamp com a técnica da enfleurage usada para produzir a Eau de Parfum da Boticário. Falta ao país utilizar o conhecimento científico transformando-o em tecnologia e produtos, o que se faz apenas quando em parceria com as empresas, que são as produzem a inovação, gerando empregos e renda.

Cada povo tem o mercado que merece, disse um cientista político. Um povo cuja mania de limpeza o faz consumir mais produtos de limpeza doméstica (R$ 20 bilhões) e cosméticos (R$ 40 bilhões) do que medicamentos (R$ 40 bilhões) acredita que tem que ter algo a se beneficiar com isso, e é aí que devemos investir.


Lauro E. S. Barata é químico de produtos naturais, professor do Instituto de Química da Unicamp.