Muito já se falou sobre o Sumário
Executivo do quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças
Climáticas (IPCC, sigla em inglês), divulgado no início de fevereiro.
As previsões em torno das mudanças climáticas que o planeta deverá
sofrer foram taxadas de “exageradas” a “muito conservadoras”. Se, para
alguns, o alarme deveria ter sido menor, para outros, as estimativas
foram subestimadas. Cautela ou exagero, o Summary for Policymakers é
resultado da necessidade dos países entrarem num consenso a respeito do
AR4, sigla pela qual é conhecido o quarto relatório do IPCC.
Na semana que antecedeu a divulgação
do sumário, governos e cientistas debateram intensamente a redação
final do Summary for Policymakers discutido, palavra por palavra, por
representantes governamentais. “Se existe algum tipo de censura é
somente nesse sumário executivo, já que durante a elaboração dos
relatórios científicos não há qualquer tipo de interferência política”,
lembra Roberto Schaeffer, professor do Programa de Planejamento
Energético da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos
autores-líderes da terceira parte do relatório do IPCC .
Nesse sentido, o sumário voltado para
tomadores de decisão (Summary for Policymakers) pode mesmo ser
“conservador”. Por se tratar de um resumo do relatório que contém, ao
todo, por volta de 1600 páginas (e que deverá ser divulgado, na
íntegra, somente em setembro), o documento de 21 páginas foi
rigorosamente discutido pelos diplomatas na Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), preocupados com
a possibilidade de que determinadas avaliações nele presentes pudessem
aumentar a pressão sobre seus respectivos países.
Por isso é que, não só por ser o
segundo maior emissor dos gases causadores do efeito estufa, (podendo
superar as emissões dos Estados Unidos em 2009) mas também pelo modo
como tentou obstruir uma série de pontos do relatório do IPCC, a China
foi taxada como “o novo Estados Unidos” no que diz respeito ao
aquecimento global. Esse foi o comentário corrente nos bastidores do Painel durante as reuniões que antecederam a divulgação do quarto relatório.
Uma das frases do AR4 que estiveram sob disputa foi justamente a afirmação de que as atividades humanas, muito possivelmente (very likely), são as responsáveis pelo aquecimento global. China e Arábia Saudita solicitaram a substituição de very likely (que indica 90% de probabilidade) por likely (66%), o que seria a mesma avaliação do relatório do IPCC de 2001. A solicitação foi vetada pelos cientistas.
Segundo David Biello, um do editores da revista Scientific American
que acompanhou as negociações finais em Paris em torno do AR4, nas
reuniões que precederam a divulgação do sumário, o comentário corrente
era o de que a postura da delegação norte-americana foi “construtiva” e
“cooperativa”. Tratar-se-ia de uma mudança de postura dos Estados
Unidos sobre o aquecimento global? Embora o país se recuse a assinar o
Protocolo de Quioto, medidas pontuais de combate ao efeito estufa vêm
sendo adotadas, inclusive o investimento em pesquisas relacionadas a
energias alternativas ao petróleo (como os biocombustíveis) e
possibilidades de parcerias com países em desenvolvimento, como o
Brasil.
Com uma economia em franco
crescimento e baseada na queima do carvão, a China tem se mostrado
pouco disposta a arcar com custos ambientais. Logo após a divulgação do
relatório do IPCC, o porta-voz do Ministério Exterior da China fez
questão de marcar uma diferença entre o seu país e os do Ocidente,
responsabilizando os últimos pelo aquecimento global, já que estariam
poluindo o ar desde a Revolução Industrial.
O debate, portanto, foi intenso para
que as conclusões científicas não fossem “deturpadas” em nome de certos
interesses políticos. Mas se não houve propriamente “deturpação”, as
margens de algumas previsões presentes no relatório ganharam contornos
mais otimistas por conta da pressão de alguns países. O Brasil
pressionou na hora de se definir estimativas a respeito da emissão de
gases provocados pelo desmatamento na Amazônia. Embora ainda exista
grande incerteza em relação ao papel que o desmatamento da floresta
desempenha na emissão de CO2 – porque, nesse caso, ainda não se sabe
exatamente como medi-la –, o governo brasileiro, bateu o pé para que
constasse a previsão de 15 a 20% das emissões globais, uma margem menor
do que aquela que constará no relatório, que é de 15 a 35% de emissão
de CO2.
Como funciona o IPCC
O Painel Intergovernamental de
Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), órgão das Nações Unidas,
reúne os principais cientistas na área de mudanças climáticas. Criado
em 1988, ele produziu, desde então (e contando-se o mais recente),
quatro relatórios (1990, 1995, 2001 e 2007). Os cientistas que integram
o painel avaliam os resultados de milhares de pesquisas realizadas
pelas principais universidades do mundo todo. As certezas anunciadas
pelo relatório, portanto, advêm de pesquisas já publicadas e discutidas
pela comunidade científica.
Em relação ao AR4, o que conferiu
mais segurança aos especialistas para afirmarem algumas certezas a
respeito das mudanças climáticas foram as centenas de dados
disponibilizados por uma tecnologia que ainda não era acessível em
2001. Muitos dados e gráficos presentes no relatório deste ano provêm
de observações feitas por satélites e medidas de temperatura relativas
aos últimos 250 anos. Ao estudar a composição química de bolhas de ar
dos blocos de gelo da Antártida e do Ártico, pesquisadores descobrem as
temperaturas de milhões de anos atrás.
As previsões cabem à tecnologia dos
modelos climáticos – softwares que simulam o clima do planeta e que
estão mais precisos, ou seja, permitem diminuir as margens de dúvida
das previsões. No caso da elevação dos oceanos, por exemplo: se o
relatório de 2001 previa uma margem de 0,9 a 88 cm, o AR4 estabeleceu a
estimativa de 18 cm a 59 cm. Quem cria esses modelos climáticos para
prever as conseqüências do aquecimento global são os pesquisadores da
chamada Ciência do Sistema Terrestre (Earth System Science), uma nova
área de conhecimento que reúne especialistas em física da atmosfera,
dos oceanos e do movimento dos ventos.
A estrutura do IPCC é organizada da
seguinte forma: um grupo técnico responsável pela coordenação do Painel
define a composição de três grupos de cientistas. O Grupo I trata das
bases científicas das mudanças climáticas; o Grupo II avalia o impacto
das mudanças climáticas sobre o planeta e suas conseqüências para a
população; e o Grupo III analisa as possibilidades de mitigação das
mudanças climáticas, através da redução das emissões de gases-estufa.
Os cientistas são, então, convocados
a partir da sua produção científica e nacionalidade, já que por se
tratar de um órgão das Nações Unidas, existe uma preocupação com a
representatividade dos países-membros. Ao longo de quatro anos, os
cientistas se reunem para fazer um balanço sobre a produção científica
em torno do tema escolhido. Para o quarto relatório, por exemplo, cerca
de 2500 cientistas provenientes de 130 países tiveram suas publicações
científicas consultadas.
Depois de definidos os principais
assuntos a serem abordados, tem início a redação de um primeiro esboço
do relatório, que circulará entre os pesquisadores. Numa espécie de peer review,
os cientistas se comprometem em manter o esboço sob sigilo e fazem suas
críticas e sugestões, elaborando pareceres escritos. Esses pareceres
são organizados pelos pesquisadores mais diretamente responsáveis pela
autoria do relatório. Os esboços do quarto relatório circularam entre
800 pesquisadores e 450 cientistas assinaram a versão final.
Só depois de pronta a primeira versão
é que o relatório é enviado para os representantes governamentais,
cujas críticas e recomendações são discutidas e respondidas pelos
cientistas. Várias versões do relatório são, assim, elaboradas. Todo
esse processo – que se encontra disponível no site do IPCC – confere
credibilidade às suas certezas científicas. Mas, num contexto em que
ciência e política se imbricam, existem tentativas de se
“contestá-las”. Segundo o jornal britânico The Guardian, o American
Enterprise Institute, ligado à ExxonMobil (empresa petrolífera
norte-americana que obteve, em 2006, 39,5 bilhões de dólares, o maior
lucro já registrado na história do capitalismo), enviou cartas para
cientistas do Reino Unido e Estados Unidos, entre outros países,
oferecendo 10 mil dólares àqueles que aceitassem contestar os modelos
climáticos utilizados pelos cientistas do IPCC.
O que está por vir
Algumas alterações climáticas já são
inevitáveis. É o que atestará a segunda parte do relatório cujo esboço
“vazou” para a imprensa no último dia 2 de março, através do jornal Der Spiegel.
Restaria, assim, a possibilidade de mitigá-las, e a terceira parte do
relatório (que deverá ser divulgada em maio) explorará justamente as possibilidades socioeconômicas de se fazer isso, prometendo novos embates políticos.
As conseqüências econômicas do aquecimento global já haviam sido aventadas pelo chamado Relatório Stern,
encomendado e divulgado (em outubro de 2006) pelo governo britânico. A
economia acabou trazendo, assim, uma nova perspectiva política para o
problema: seria mais lucrativo mudar do que não fazer nada.
Além do Relatório Stern, eventos
climáticos como o furacão Katrina em Nova Orleans, verão com
temperaturas muito elevadas na Europa, estiagem na Amazônia, dentre uma
série de outras alterações climáticas, trouxeram uma série de impactos
sociais e políticos, o que estaria provocando mudanças na opinião
pública sobre o aquecimento global. “A exposição a eventos climáticos
extremos – que podem ou não estar relacionados ao aquecimento global –
mudou a percepção das pessoas sobre as mudanças climáticas”, afirma
Schaeffer. Será que, dessa vez, o tema veio para ficar?
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