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Reportagem
Ciência e política no IPCC
Por Carol Cantarino
10/03/2007

Muito já se falou sobre o Sumário Executivo do quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), divulgado no início de fevereiro. As previsões em torno das mudanças climáticas que o planeta deverá sofrer foram taxadas de “exageradas” a “muito conservadoras”. Se, para alguns, o alarme deveria ter sido menor, para outros, as estimativas foram subestimadas. Cautela ou exagero, o Summary for Policymakers é resultado da necessidade dos países entrarem num consenso a respeito do AR4, sigla pela qual é conhecido o quarto relatório do IPCC.

Na semana que antecedeu a divulgação do sumário, governos e cientistas debateram intensamente a redação final do Summary for Policymakers discutido, palavra por palavra, por representantes governamentais. “Se existe algum tipo de censura é somente nesse sumário executivo, já que durante a elaboração dos relatórios científicos não há qualquer tipo de interferência política”, lembra Roberto Schaeffer, professor do Programa de Planejamento Energético da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos autores-líderes da terceira parte do relatório do IPCC .

Nesse sentido, o sumário voltado para tomadores de decisão (Summary for Policymakers) pode mesmo ser “conservador”. Por se tratar de um resumo do relatório que contém, ao todo, por volta de 1600 páginas (e que deverá ser divulgado, na íntegra, somente em setembro), o documento de 21 páginas foi rigorosamente discutido pelos diplomatas na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), preocupados com a possibilidade de que determinadas avaliações nele presentes pudessem aumentar a pressão sobre seus respectivos países.

Por isso é que, não só por ser o segundo maior emissor dos gases causadores do efeito estufa, (podendo superar as emissões dos Estados Unidos em 2009) mas também pelo modo como tentou obstruir uma série de pontos do relatório do IPCC, a China foi taxada como “o novo Estados Unidos” no que diz respeito ao aquecimento global. Esse foi o comentário corrente nos bastidores do Painel durante as reuniões que antecederam a divulgação do quarto relatório.

Uma das frases do AR4 que estiveram sob disputa foi justamente a afirmação de que as atividades humanas, muito possivelmente (very likely), são as responsáveis pelo aquecimento global. China e Arábia Saudita solicitaram a substituição de very likely (que indica 90% de probabilidade) por likely (66%), o que seria a mesma avaliação do relatório do IPCC de 2001. A solicitação foi vetada pelos cientistas.

Segundo David Biello, um do editores da revista Scientific American que acompanhou as negociações finais em Paris em torno do AR4, nas reuniões que precederam a divulgação do sumário, o comentário corrente era o de que a postura da delegação norte-americana foi “construtiva” e “cooperativa”. Tratar-se-ia de uma mudança de postura dos Estados Unidos sobre o aquecimento global? Embora o país se recuse a assinar o Protocolo de Quioto, medidas pontuais de combate ao efeito estufa vêm sendo adotadas, inclusive o investimento em pesquisas relacionadas a energias alternativas ao petróleo (como os biocombustíveis) e possibilidades de parcerias com países em desenvolvimento, como o Brasil.

Com uma economia em franco crescimento e baseada na queima do carvão, a China tem se mostrado pouco disposta a arcar com custos ambientais. Logo após a divulgação do relatório do IPCC, o porta-voz do Ministério Exterior da China fez questão de marcar uma diferença entre o seu país e os do Ocidente, responsabilizando os últimos pelo aquecimento global, já que estariam poluindo o ar desde a Revolução Industrial.

O debate, portanto, foi intenso para que as conclusões científicas não fossem “deturpadas” em nome de certos interesses políticos. Mas se não houve propriamente “deturpação”, as margens de algumas previsões presentes no relatório ganharam contornos mais otimistas por conta da pressão de alguns países. O Brasil pressionou na hora de se definir estimativas a respeito da emissão de gases provocados pelo desmatamento na Amazônia. Embora ainda exista grande incerteza em relação ao papel que o desmatamento da floresta desempenha na emissão de CO2 – porque, nesse caso, ainda não se sabe exatamente como medi-la –, o governo brasileiro, bateu o pé para que constasse a previsão de 15 a 20% das emissões globais, uma margem menor do que aquela que constará no relatório, que é de 15 a 35% de emissão de CO2.

Como funciona o IPCC

O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), órgão das Nações Unidas, reúne os principais cientistas na área de mudanças climáticas. Criado em 1988, ele produziu, desde então (e contando-se o mais recente), quatro relatórios (1990, 1995, 2001 e 2007). Os cientistas que integram o painel avaliam os resultados de milhares de pesquisas realizadas pelas principais universidades do mundo todo. As certezas anunciadas pelo relatório, portanto, advêm de pesquisas já publicadas e discutidas pela comunidade científica.

Em relação ao AR4, o que conferiu mais segurança aos especialistas para afirmarem algumas certezas a respeito das mudanças climáticas foram as centenas de dados disponibilizados por uma tecnologia que ainda não era acessível em 2001. Muitos dados e gráficos presentes no relatório deste ano provêm de observações feitas por satélites e medidas de temperatura relativas aos últimos 250 anos. Ao estudar a composição química de bolhas de ar dos blocos de gelo da Antártida e do Ártico, pesquisadores descobrem as temperaturas de milhões de anos atrás.

As previsões cabem à tecnologia dos modelos climáticos – softwares que simulam o clima do planeta e que estão mais precisos, ou seja, permitem diminuir as margens de dúvida das previsões. No caso da elevação dos oceanos, por exemplo: se o relatório de 2001 previa uma margem de 0,9 a 88 cm, o AR4 estabeleceu a estimativa de 18 cm a 59 cm. Quem cria esses modelos climáticos para prever as conseqüências do aquecimento global são os pesquisadores da chamada Ciência do Sistema Terrestre (Earth System Science), uma nova área de conhecimento que reúne especialistas em física da atmosfera, dos oceanos e do movimento dos ventos.

A estrutura do IPCC é organizada da seguinte forma: um grupo técnico responsável pela coordenação do Painel define a composição de três grupos de cientistas. O Grupo I trata das bases científicas das mudanças climáticas; o Grupo II avalia o impacto das mudanças climáticas sobre o planeta e suas conseqüências para a população; e o Grupo III analisa as possibilidades de mitigação das mudanças climáticas, através da redução das emissões de gases-estufa.

Os cientistas são, então, convocados a partir da sua produção científica e nacionalidade, já que por se tratar de um órgão das Nações Unidas, existe uma preocupação com a representatividade dos países-membros. Ao longo de quatro anos, os cientistas se reunem para fazer um balanço sobre a produção científica em torno do tema escolhido. Para o quarto relatório, por exemplo, cerca de 2500 cientistas provenientes de 130 países tiveram suas publicações científicas consultadas.

Depois de definidos os principais assuntos a serem abordados, tem início a redação de um primeiro esboço do relatório, que circulará entre os pesquisadores. Numa espécie de peer review, os cientistas se comprometem em manter o esboço sob sigilo e fazem suas críticas e sugestões, elaborando pareceres escritos. Esses pareceres são organizados pelos pesquisadores mais diretamente responsáveis pela autoria do relatório. Os esboços do quarto relatório circularam entre 800 pesquisadores e 450 cientistas assinaram a versão final.

Só depois de pronta a primeira versão é que o relatório é enviado para os representantes governamentais, cujas críticas e recomendações são discutidas e respondidas pelos cientistas. Várias versões do relatório são, assim, elaboradas. Todo esse processo – que se encontra disponível no site do IPCC – confere credibilidade às suas certezas científicas. Mas, num contexto em que ciência e política se imbricam, existem tentativas de se “contestá-las”. Segundo o jornal britânico The Guardian, o American Enterprise Institute, ligado à ExxonMobil (empresa petrolífera norte-americana que obteve, em 2006, 39,5 bilhões de dólares, o maior lucro já registrado na história do capitalismo), enviou cartas para cientistas do Reino Unido e Estados Unidos, entre outros países, oferecendo 10 mil dólares àqueles que aceitassem contestar os modelos climáticos utilizados pelos cientistas do IPCC.

O que está por vir

Algumas alterações climáticas já são inevitáveis. É o que atestará a segunda parte do relatório cujo esboço “vazou” para a imprensa no último dia 2 de março, através do jornal Der Spiegel. Restaria, assim, a possibilidade de mitigá-las, e a terceira parte do relatório (que deverá ser divulgada em maio) explorará justamente as possibilidades socioeconômicas de se fazer isso, prometendo novos embates políticos.

As conseqüências econômicas do aquecimento global já haviam sido aventadas pelo chamado Relatório Stern, encomendado e divulgado (em outubro de 2006) pelo governo britânico. A economia acabou trazendo, assim, uma nova perspectiva política para o problema: seria mais lucrativo mudar do que não fazer nada.

Além do Relatório Stern, eventos climáticos como o furacão Katrina em Nova Orleans, verão com temperaturas muito elevadas na Europa, estiagem na Amazônia, dentre uma série de outras alterações climáticas, trouxeram uma série de impactos sociais e políticos, o que estaria provocando mudanças na opinião pública sobre o aquecimento global. “A exposição a eventos climáticos extremos – que podem ou não estar relacionados ao aquecimento global – mudou a percepção das pessoas sobre as mudanças climáticas”, afirma Schaeffer. Será que, dessa vez, o tema veio para ficar?