O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla inglês) foi criado em 1988, pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), após a realização da Conferência Mundial, The Changing Atmosfere: Implications for Global Security, em Toronto, no Canadá. Composto por cientistas de todo o mundo, provenientes das mais diversas áreas do saber, o IPCC é responsável por apresentar fundamentações técnicas e científicas para as negociações acerca das mudanças climáticas.
De acordo com as áreas de conhecimento, o IPCC foi dividido em três grupos com funções distintas e complementares. O Grupo de Trabalho I, que movimentou a mídia no início de fevereiro ao apresentar em Paris novos resultados à comunidade internacional, volta-se para o estudo dos aspectos científicos do sistema climático e das mudanças climáticas. O Grupo II, que deverá divulgar resultados no dia 6 de abril (Bruxelas), avalia a vulnerabilidade da humanidade e dos sistemas naturais à essas mudanças, suas conseqüências e as opções para a adaptação necessária. Já o Grupo III, que tornará públicas suas considerações em 4 de maio (Bangkok), analisa as possibilidades de limitação das emissões de gases de efeito estufa, de mitigação da mudança climática e as conseqüências dessas medidas do ponto de vista sócio-econômico.
Segundo Roberto Schaeffer, engenheiro brasileiro membro do Grupo III do IPCC, o que é divulgado na imprensa são os sumários para tomadores de decisão, já que o relatórios ou suas partes são muito volumosas. Esses sumários são aprovados em plenária, da qual participam os pesquisadores e representantes de vários governos. O relatório como um todo deverá ser divulgado no dia 16 de novembro, em Valença, mas na opinião de Suzana Kahn Ribeiro, também engenheira e membro do Grupo III, terá menor impacto do que os sumários divulgados pela mídia até maio.
Do primeiro relatório publicado em 1990, até o mais recente sumário divulgado em fevereiro deste ano, o tom de urgência acentua-se, assim como a responsabilização do homem pelas mudanças climáticas. Enquanto o “Primeiro Relatório de Avaliação” afirmava a mudança climática como uma ameaça à humanidade e sugeria a adoção de um tratado internacional, o “Segundo Relatório de Avaliação” (1995) indicava uma influência nítida do homem sobre o clima através das emissões de gases de efeito estufa. Já o “Terceiro Relatório de Avaliação” (2001) apresentava evidências mais categóricas de que a principal causa do aquecimento global nos últimos 50 anos são as atividades humanas.
Baseado, entre outros fenômenos, na observação do aumento das temperaturas do ar e dos oceanos, no derretimento das geleiras e no aumento do nível do mar, o Grupo I já adiantou em seu sumário que o aquecimento global é algo “inequívoco”, e não apenas “provável” como se afirmou antes. Indica ainda que, desde o relatório anterior (2001), cresceram as influências antrópicas (causadas por atividade humana) sobre o clima.
O texto do Grupo I também projetou um aumento de temperatura de 0,2ºC por década, mesmo que as concentrações de gases de efeito estufa fossem mantidas constantes nos níveis que se encontravam no ano 2000. Já o aumento de emissões, conduziria a elevação da temperatura entre duas faixas 1,8ºC a 4ºC ou 1,1ºC a 6,4ºC, até o ano 2100, dependendo do cenário socioeconômico avaliado. As diferentes faixas de valores correspondem a simulação de cenários diversos, sendo que a projeção mais consensual é a do aumento de 3ºC, até o final do século. Para este mesmo período, o relatório estima um aumento do nível do mar entre 18 cm e 59 cm. O sumário do Grupo I conclui também uma grande probabilidade de ocorrências de eventos climáticos extremos, como temperaturas muito altas, chuvas abundantes, ou o aumento da intensidade dos ciclones tropicais, dentre outros.
Soluções tecnológicas enevoam reversão de atitudes
Apesar das afirmações do Grupo I terem papel fundamental no relatório como um todo, é o sumário do Grupo III que deve causar mais debate e polêmica no panorama internacional. Justamente por vir depois e fortalecido pelo “mea culpa” feito em Paris, e por tratar das possibilidades de limitação de emissões de gases de efeito estufa e da mitigação da mudança climática, que o relatório do Grupo III é cercado de tanta expectativa. Afinal, é na plenária para a discussão desse relatório que serão debatidas formas de limitar emissões de gases, e esse não é um assunto nada consensual entre governos, indústrias, e grandes empresas, o que dirá quando o tema gera mais especulação que resultados, como créditos de carbono, por exemplo.
Além do “empurra culpa” que já começa a aparecer na imprensa, há algo menos familiar e mais caro às entrelinhas dos jornais, tais como as que remetem às esperanças no engenho humano e que começa a chamar a atenção. São estudos e pesquisas feitos mundo afora que apostam em alta tecnologia para resolver o problema das mudanças climáticas, sem que se altere o panorama seja das emissões, do “progresso” industrial, de produção, ou “desenvolvimento” como querem alguns. Em outras palavras, ao invés de investir em redução do consumo de combustíveis fósseis ou eliminar práticas que contribuam para o aquecimento global, a aposta é na reestruturação do meio ambiente a partir de ferramentas técnicas que alterem os sistemas naturais da Terra. O embate aqui é acima de tudo para que o Grupo III coloque em suas linhas, ou deixe margem em suas entrelinhas, para o estímulo, ou ao menos a consideração positiva, a essas iniciativas high-tech.
Em fevereiro deste ano, o Grupo ETC (Action Group on Erosion, Technology and Concetration), uma organização não governamental que procura ampliar o debate acerca de novas tecnologias, lançou um comunicado alertando para essa questão. O grupo cita a geoengenharia como a nova ferramenta, que, de forma geral, envolve pesquisas (e experimentos já realizados) que pretendem manipular o meio ambiente para neutralizar efeitos indesejáveis das mudanças climáticas.
Uma matéria publicada em janeiro pelo jornal britânico The Guardian, relata que o governo dos Estados Unidos quer que cientistas desenvolvam tecnologias para bloquear a luz solar como última saída para a questão climática, sejam elas as que colocam em órbita espelhos para refletir a luz solar, ou que poluem a estratosfera com partículas de enxofre com intuito de simular uma erupção vulcânica e resfriar a Terra. De acordo com o The Guardian, em conjunto com o governo britânico, os EUA têm um lobby para pressionar os debates da plenária do Grupo III para distanciarem-se de conclusões que dariam suporte para um novo tratado mundial baseado em reduções de emissões. Ainda segundo o jornal, os EUA esperam que sejam enfatizados os benefícios de acordos voluntários e incluídas críticas ao Protocolo de Kyoto. Além disso, pressionam para que projetos de geoengenharia constem no sumário dos tomadores de decisão.
Segundo o ETC, as pesquisas nessa área não são recentes e nem ficcionais, como poderiam preferir alguns. Em 1940, o meteorologista Bernardo Vonnegut descobriu que fumaça de iodeto de prata poderia fazer com que nuvens precipitassem. Na opinião do ETC, esse foi o estopim para os esforços governamentais de manipular o clima. Em seu relatório, o grupo traça um histórico de pesquisas e articulações privadas e governamentais sobre essas manipulações sinalizando interesses estratégicos, políticos, científicos e militares em torno do tema. Dentre as geoengenharias o Grupo ETC cita as tecnologias para jogar partículas de enxofre na estratosfera (parte da atmosfera terrestre entre a troposfera e a ionosfera), colocar em órbita bilhões de finíssimos refletores, espalhar limalha de ferro em determinadas partes do oceano para aumentar a proliferação de fitoplânctons (para absorver gás carbônico), seqüestrar ou capturar gás carbônico (CO2) e armazená-lo em reservatórios de óleo e gás, aqüíferos salinos profundos, minas de carvão ou poços de petróleo já explorados, possibilitando a extração de mais petróleo.
Tanto Suzana Kahn Ribeiro, como Roberto Schaeffer discordam da idéia de que o relatório sofra pressões por parte de governos, o que é diferente do que ocorre com o sumário debatido em plenária. “Na realidade mostramos as alternativas existentes. O relatório é uma análise disso e não desenvolvimento ou incentivo a novas tecnologias. Apresentamos o que existe, e a tendência de sua penetração no mercado. Daí a importância deste sumário para que os tomadores de decisão possam avaliar o quanto de investimento e retorno poderão ter com cada alternativa. E o que se vê é que não existe uma alternativa única”, argumenta Ribeiro.
Na opinião dela o Brasil está muito distante de levar em consideração propostas tecnológicas muito custosas, tais como as de geoengenharia. Existem medidas e formas de redução de emissão que são consideradas, na literatura científica existente, e os custos dessas atitudes. As alternativas também têm pesos diferentes de acordo com a realidade socioeconômica de cada país e é por isso que Ribeiro afirma que as muito caras não condizem com a realidade brasileira. Medidas simples, nos países em desenvolvimento, podem contribuir muito para diminuir emissões em sua opinião, tais como inspeção veicular. “Aqui temos carros mais antigos e combustível de menos qualidade, que desregula o carro. Mas isso num país muito moderno, com a frota nova e combustível de boa qualidade, praticamente não traz ganho. Nem tudo é tecnologia”, diz ela, que acredita que alternativas de alta tecnologia só se tornarão comercialmente viáveis daqui a muito anos. Isso não condiz com as necessidades para o atual momento e, portanto, não deverão fazer parte do sumário.
No entanto, Ribeiro e Schaeffer não descartam uma forma de geoengenharia: a captura e seqüestro de carbono, tema que o IPCC não apenas já considerou, como publicou um relatório inteiramente dedicado ao tema. Segundo a engenheira, é de extremo interesse para alguns países e empresas ligadas a petróleo ou carvão, pois é uma opção que permite continuar a usar combustíveis fósseis. “A própria Petrobras já está trabalhando com seqüestro de carbono porque para ela é muito interessante”, afirma.
Seqüestro de carbono é a captura e estocagem de CO2, evitando sua emissão e permanência na atmosfera terrestre. A Petrobras tem considerado em suas pesquisas a possibilidade de armazenamento geológico de gás carbônico em minas de carvão não ativas, aqüíferos salinos ou injeção em poços de petróleo. Neste último caso, a pressão do gás carbônico possibilita a retirada de mais petróleo (residual) de poços já explorados. A empresa já participa de projetos internacionais nesse sentido, como o CCP2 (CO2 Capture Project), que envolve as principais empresas de petróleo e energia do mundo. Apesar disso, as grandes pesquisas nessa área não são brasileiras.
Roberto Schaeffer confirma que, de fato, há uma aposta muito grande na captura e armazenamento geológico de carbono. No entanto, para ele não estamos muito distantes de descobrir que não podemos partilhar da idéia de continuar emitindo gás carbônico. “Precisamos repensar seriamente o consumo direto, por exemplo, usar menos o carro e mais os transportes públicos, menos o aquecimento no inverno e menos ar condicionado no verão; e também o indireto, aquele embutido nos bens que consumo”, argumenta ele.
Schaeffer declara ainda que as grandes interessadas no negócio do seqüestro de carbono são as empresas de petróleo e as ligadas à mineração de carvão que não querem mexer no seu core business. De fato, o que se mede, segundo Schaeffer, é a relação custo-benefício entre mais tecnologia e deixar de emitir. “Apostar nessas tecnologias é mais caro do que não fazer absolutamente nada. Mas na medida em que essas empresas começam a sentir que haverá algum tipo de pressão, seja do governo ou da opinião pública, que direcione as pessoas para não usarem mais combustíveis fósseis, elas começam a se interessar a dar uma vida mais longa ao seu produto. Assim, elas começaram a usar o dinheiro para fazer com seu produto não seja tão sujo assim”, revela o engenheiro.
Ele explica que em algumas pesquisas demonstra-se que o vazamento desses depósitos de CO2 é pequeno, 0,1% ao ano, mas existem também estudos indicando que esse vazamento provoca a acidificação ou contaminação de lençóis freáticos. Schaeffer reconhece, por outro lado, que não se pode prescindir dos combustíveis fósseis imediatamente e cita pesquisa da própria Petrobras, que mistura óleos vegetais ao diesel (HBio). Nesse sentido ele defende que novas tecnologias factíveis são aquelas que não renunciam ao petróleo, mas associam-se a ele para promover uma transição. “O seqüestro de carbono vai fazer parte disso. Uma refinaria de petróleo é um lugar extremamente adequado para isso, porque aí podem ser feitos combustíveis sintéticos, a partir da separação do carbono e obtenção de hidrogênio”, afirma.
|