As aeronaves remotamente pilotadas (RPAs, em inglês), popularmente conhecidas como drones, estão em fase de regulamentação no Brasil. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) trabalha na elaboração do texto do regulamento, que está sob consulta jurídica. Não há uma data para que a regulamentação seja publicada. “Ainda não há prazos definidos. Estimamos que a resolução seja aprovada no segundo semestre deste ano”, afirmou a Anac, por meio de sua assessoria de imprensa. O texto do regulamento passou por um processo de consulta pública no final do ano passado, e ficou disponível no site da agência até novembro. Foram recebidas cerca de 300 contribuições de diversos setores da sociedade, que agora são analisadas.
A expectativa por parte da agência é a de que a regulamentação esteja disponível até o início dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro, em agosto. Percebe-se que há receios com questões de segurança e uso de drones durante os dias do evento. No dia 2 de maio, a Secretaria de Aviação Civil publicou uma notícia em seu site oficial informando que a utilização de aeronaves remotamente pilotadas seria restrita durante o revezamento da tocha olímpica, que já iniciou seu percurso e passará por mais de 300 cidades brasileiras.
Ainda de acordo com a notícia divulgada pela secretaria, a utilização de drones no espaço aéreo é proibida, “exceto dentro de áreas já estabelecidas previamente e por operadores que tiverem os seguintes documentos: autorização da Anac, autorização de voo do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e registro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).”
Também foi publicado um guia voltado para “auxiliar as forças de segurança pública” na fiscalização do uso de drones durante todo o período que antecede as Olimpíadas e durante o evento. A recomendação da Anac para a população é que as pessoas “aproveitem os eventos mas deixem seus drones em casa”.
Para o estudante de ciência da computação Lucas Buzzo, autor do portal ODrones, no entanto, a proposta de restrição não foi bem divulgada e houve pouco tempo entre a decisão de que o uso dos equipamentos seria restrito e o período da restrição, a partir da chegada da tocha. “A implicação disso é que não são todos os pilotos que sabiam, e nem as autoridades. Um dos comentários de um texto que publiquei sobre o assunto dizia que, quando questionada, a polícia local disse que não haveria problemas com a utilização do drone para fazer imagens, enquanto a Polícia Federal, que está acompanhando o tour da tocha, está ciente e impede o voo. Não houve tempo para que a notícia se espalhasse, e mesmo com o guia que foi publicado para as autoridades, não são todas que estão cientes do bloqueio de voos”, avalia.
A proposta no Brasil
A proposta de regulamentação da Anac lida apenas com aeronaves remotamente pilotadas de uso civil: para fins recreativos, chamados de aeromodelos; para fins comerciais, de uso corporativo; para pesquisa (experimental); e para segurança pública. A futura regulamentação não tratará do uso de drones militares. Também não entram na minuta os drones autônomos, aqueles que não são controlados por pilotos, mas por softwares de computador. Estes últimos são proibidos de operar no Brasil.
Mesmo que a proposta de regulamentação ainda não tenha sido aprovada e publicada, já existem alguns trâmites para que os drones sejam cadastrados. Para operar um drone de forma “legal” no país, já existem algumas regras, que podem ser acessadas no site da Secretaria de Aviação Civil. Se for para uso de lazer, é preciso apenas homologá-lo na Anatel e obedecer algumas regras de voo. Se for para fins comerciais, é preciso registrar o veículo na Anatel, ter o equipamento e a operação aprovados pela Anac e ter uma autorização de voo do Decea.
Mas essas regras sofrerão algumas alterações com a proposta de regulamentação. Para começar, os veículos serão divididos por categorias: classe 1, para peso maior que 150 kg; classe 2, para peso menor ou igual a 150 kg e maior que 25 kg; classe 3, para peso menor ou igual a 25 kg. Para os equipamentos acima da classe 1, a previsão é a de que eles sejam submetidos a processos de certificação similar ao das aeronaves tripuladas, e deverão ser cadastrados no registro aeronáutico brasileiro. Os veículos da classe 2 também precisarão do registro. Na classe 3, para uso que não seja recreativo, os pilotos deverão ser maiores de 18 anos. Ainda será necessário ter licença e habilitação para quem pretender operar acima de 400 pés (120 m); não será requerido certificado médico aeronáutico e não será necessário registro dos voos.
Para uso de equipamentos de uso recreativo, a Anac adota o termo “aeromodelos”. Para esses casos, não haverá limite de idade para o piloto e não será necessário licença ou habilitação nem registro de voos, mas a operação estará limitada a 400 pés ou 120 m. Em todos os usos, os pilotos deverão manter distância mínima de 30 metros de pessoas “não anuentes”. De acordo com a Anac, para que o equipamento voe próximo a pessoas, é preciso que elas deem algum tipo de autorização. Como isso será fiscalizado ou comprovado? “O operador do equipamento deve obter meios para comprovar, caso necessário, essa anuência”, informou a agência, por meio da assessoria de imprensa. E quem fará a fiscalização dessas normas? Ainda segundo a Anac, “as forças de segurança estão sendo instruídas, por meio do Ministério da Justiça, em como proceder em casos de uso irregular de RPAS”.
Poucas garantias quanto à privacidade
Questionada se a questão da privacidade foi levada em conta na elaboração da proposta de regulamentação, a assessoria de imprensa da Anac afirmou que sim. “Os casos de violação de privacidade e quaisquer outras contravenções, serão tratadas e penalizadas de acordo com os códigos penais e civis”. Mas especialistas contestam que essa questão tem sido tratada de forma genérica.
Para o pesquisador, advogado e doutor em direito pela USP, Silvano Flumignan, a proposta de regulamentação se mostra importante, apesar de seus pontos criticáveis. “Diversos problemas decorrem da utilização dessas aeronaves, como a definição de seu alcance e enquadramento, segurança para o patrimônio e a população, segredos industriais e privacidade. Uma regulamentação sobre o tema tem o potencial de trazer segurança jurídica para a área, diminuir o potencial de danos à população e garantir a proteção da privacidade”. Ele destaca como positivas a classificação dos veículos aéreos em categorias com tratamentos diferenciados, e a necessidade de cadastro, que se mostra “relevante para a aferição de responsabilidade”. No entanto, segundo o advogado, “a proposta tem uma série de aspectos ruins”.
Flumingnan, que é procurador do estado de Pernambuco e autor do artigo “Drones geram debates jurídicos ainda não enfrentados pela lei brasileira”, pontua: “Não existe a necessidade de seguro para órgãos de segurança pública e defesa civil. Essa falta de exigência não garante o escopo pretendido com a nova legislação. Processos de responsabilização de entes públicos são morosos, caros e não garantem a reparação em tempo hábil. Além disso, drones não registrados não terão seguro de reparação de danos a terceiros. A legislação também não garante que realmente haja o cadastro de todo veículo aéreo não tripulado”.
Para o pesquisador, o principal aspecto criticável da proposta de regulamentação é em relação à privacidade: “É inconcebível uma regulamentação sobre drones não abordar violações a direitos individuais dessa natureza. Não percebo nenhuma preocupação com essa questão. O argumento utilizado pela ausência de previsão foi de que atividades ilícitas ou atuação que gerasse invasão de privacidade deveriam ser tratadas pelas 'autoridades competentes'”.
De acordo com Flumingnan, a regulamentação sobre drones “parece ter sido conduzida de maneira equivocada. Os órgãos que receberam a atribuição de tratar do tema são voltados para assuntos de segurança (Anac e Decea); eles não têm atribuição para tratar de privacidade. Pela condução da discussão, mencionou-se uma suposta intenção deliberada de não tratar do tema e deixar o tratamento para outras autoridades. A verdade é que a Anac não poderia deliberar sobre o tema por sequer ter atribuição para isso”.
Ele propõe que uma regulamentação adequada sobre privacidade deveria “prever métodos de fiscalização, sanções por violações, limites do poder público, autoridades competentes para fiscalizar e punir eventuais violações. Acredito, portanto, que a criação de um órgão voltado à privacidade poderia colaborar enormemente sobre os problemas presentes e futuros relacionados ao tema”. O pesquisador cita a legislação do Canadá como modelo, ressaltando que lá existe o Office of the Privacy Commissioner of Canada (OPC), órgão “responsável por receber reclamações da população, auditar e publicar informações sobre práticas de tratamento de informações pessoais no setor público e privado, realizar pesquisas e promover a consciência e compreensão de questões ligadas à privacidade por parte do público”.
Para o pesquisador do Grupo de Análise em Políticas de Inovação (Gapi) da Unicamp, Alcides Eduardo dos Reis Peron, a regulamentação pode prejudicar o uso ativista e social dos drones, que podem ser usados como formas de resistência. “Na minha opinião, nos Estados Unidos, como no Brasil, não acredito que deva existir alguma regulamentação que constranja o uso dos drones, ou que busque registrar os seus usuários”.
Ele continua: “A despeito do seu uso militar, temo que uma regulamentação possa inviabilizar os usos criativos deles. Hoje eles podem ser empregados para registrar fatos e problemas importantes, que muitas vezes os meios de comunicação tradicionais não fazem, como grandes manifestações, zonas de degradação ambiental etc. Também possuem usos científicos interessantes, para mensurar zonas de assoreamento, e podem inclusive ser utilizados em favor de políticas de segurança sanitária, como a visualização de terrenos fechados com foco de dengue”.
Para o pesquisador, que é autor da tese “American way of war: o reordenamento sociotécnico dos conflitos contemporâneos e o uso de drones”, defendida na Unicamp, hoje “já existem punições severas para quem usa aeromodelos em zonas aeroportuárias, e que potencialmente podem causar problemas. Talvez o máximo que se possa existir sejam restrições quanto a altitudes em que esses veículos podem ser operados, e em zonas muito específicas, como aeroportos”, avalia.
|