Apenas seis anos após a descoberta do vírus HIV (vírus da
imunodeficiência humana), em 1984, teve início o primeiro teste clínico
de uma vacina que protegesse a humanidade da mortal epidemia da Aids.
Quase vinte anos depois, a cura continua sendo uma promessa. O desafio
é um pequeno filete de material genético envolto por uma cápsula
protéica, o vírus, capaz de se multiplicar e mutar constantemente,
dando origem a novas variedades, que continuam desafiando os avanços
científicos.
A dificuldade em se chegar a uma vacina eficaz deve-se muito à
propriedade do vírus de sofrer mutações e rearranjos genéticos quando
se multiplica. A grande variabilidade genética do vírus, que
conseqüentemente causa uma grande diversidade viral e grande variação
antigênica, deixa a ciência em desvantagem na corrida pela cura da
Aids. A questão é encontrar uma vacina que consiga ser eficiente contra
todos os tipos existentes do HIV.
Todas as versões do vírus têm genomas similares, porém distintos. O HIV
é semelhante ao Vírus da Imunideficiência Símia (SIV) encontrados em
primatas como os chimpanzés, daí a hipótese de que ele teria chegado
aos humanos por meio do contato com esses animais. “Como no continente
africano, em algumas regiões é comum o hábito de se alimentar com carne
de macacos, acredita-se que, ao manipular esse tipo de carne, os homens
acabaram se cortando e, a partir daí, houve a passagem do vírus para
humanos”, afirma Bosco Christiano Maciel da Silva, farmacêutico e
microbiologista da área de HIV/Aids da USP. A adaptação do vírus ao
novo organismo teria resultado na forma que conhecemos como HIV, sendo
que os diferentes grupos virais existentes hoje teriam surgido de
eventos isolados da transmissão entre espécies. Os existentes na Ásia,
por exemplo, se desenvolveram de forma diferente dos da África,
formando subgrupos regionais ou genéticos, atualmente dispersos pelos
continentes.
A diversidade do HIV ainda é crescente em função de diversos processos
como a mutação – erros no processo de cópia – e recombinação, que
acontece quando uma pessoa é infectada com duas versões diferentes do
microorganismo.
Existem dois tipos de HIV, o tipo 1, mais comum, e o tipo 2,
considerado como endêmico da África Ocidental e muito raro de ser
encontrado fora desta região. Pelo seqüenciamento do genoma viral,
pesquisadores conseguiram mapear a árvore genealógica do HIV-1. Na raiz
da árvore, existem três grupos, chamados M, N e O. O grupo M é o
responsável pela epidemia no mundo atual. Este grupo se divide em nove
subgrupos – com denominações alfabéticas que vão da letra A até o K-,
que seguem um padrão de distribuição geográfica: um subgrupo denominado
Circula na África do Sul, Índia e partes da China; subgrupo A e D são
freqüentes no leste africano, ao passo que um subgrupo B é comum na
América do Norte e Europa ocidental. No Brasil, os subtipos mais
freqüentes são o B, o F e, em menores proporções, o C.
“O vírus desafia a ciência e os pesquisadores porque sua grande
variabilidade genética acarreta grande diversidade viral e confere
grande capacidade de escape imunológico e resistência às terapias já
existentes”, resume Silva.
Busca pela vacina
Atualmente, 30 tipos de vacinas estão sendo testadas no mundo e o
grande objetivo dos pesquisadores é encontrar uma que atue direta e
eficientemente sobre uma característica comum a todos os subtipos. “Uma
vacina ideal contra o HIV deverá ter as seguintes características: ser
segura, de fácil administração, estável sob condições adversas de
armazenamento, capaz de induzir imunidade duradoura contra uma ampla
diversidade de subtipos do HIV (cepas diferentes do vírus), de baixo
custo e que possa estar disponível na rede pública de saúde dos países,
para que todos possam ter acesso a essa vacina”, descreve Bosco Silva.
O processo de desenvolvimento da vacina engloba cinco estágios, a
exemplo do que ocorre para que um medicamento saia da bancada do
cientista, para a prateleira da farmácia: a pesquisa científica básica,
o desenvolvimento pré-clínico, os testes clínicos com suas três fases:
a licença e aprovação do medicamento e, finalmente, sua fabricação e
distribuição. Até hoje, a vacina para combater a Aids não ultrapassou a
fase III dos testes clínicos, aqueles feitos em larga escala e, de
todas as vacinas candidatas, apenas três conseguiram chegar a essa
etapa. “Essas vacinas candidatas falharam porque as pessoas estudadas
não se tornaram ‘imunes’ à infecção pelo HIV”, aponta o pesquisador.
Os testes clínicos para a descoberta da vacina anti-HIV existem desde
1987, quando a Agência de Controle de Alimentos e Medicamentos
norte-americana (FDA, na sigla em inglês) aprovou o primeiro teste em
humanos nos Estados Unidos – mesmo momento em que o AZT (Zidovudine), a
primeira droga antiretroviral, foi lançado. Em 1998, iniciou-se o teste
de fase III e, um ano depois, um país em desenvolvimento, a Tailândia,
realizou os primeiros testes clínicos da vacina. De acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 1987, já foram desenvolvidos
cerca de oitenta testes clínicos no mundo com mais de 50 vacinas
candidatas.
Nos últimos cinco anos, o número de testes fase I em humanos dobrou,
segundo a OMS. Em 2005, 13 novos testes com vacina preventiva começaram
a ser feitos em nove países do mundo e dois deles conseguiram
resultados positivos para entrar na fase II de testes, um estágio
intermediário da avaliação clínica.
No Brasil existem estudos preparatórios para a vacina anti-HIV desde
1995, mas os testes clínicos começaram em 2000. Hoje em dia, estão em
andamento duas avaliações de fase II, o HVTN 204 e o HVTN 502, e três
de fase I: o HVTN 050, HVTN 055 e o HVTN 063.
Arthur Kalichman coordena dois desses testes no Centro de Referência e
Treinamento em DSTs e Aids de São Paulo (CRT-DST/Aids), o HVTN 050,
testado desde 2004 no Brasil, e o HVTN 055, que começou a ser estudado
no país no final do ano passado. “Não testamos ainda se essas vacinas
funcionam ou não. Estamos testando se fazem mal ao organismo humano, se
os efeitos colaterais são toleráveis”. No final do estudo, será
verificado se os produtos são seguros e se despertam imunidade contra
os pedaços específicos do gene do HIV. Se aprovados, os testes seguem
para a fase II.
As vacinas de HIV testadas são produzidas a partir de pequenos pedaços
do vírus, os imunogenes. Uma vez aplicados, esses imunogenes são
reconhecidos pelo sistema imunológico, que cria, assim, defesas contra
fragmentos do HIV. “Ninguém usa o vírus inteiro. Em seu lugar
utilizam um vetor, que tem potencial de despertar o sistema
imunológico, como é feito na vacina para a varíola. Funciona pela
exposição de um pedaço do gene do vírus imunizado, no caso, o HIV,
enxertado no DNA de outro vírus, inofensivo. É como se mostrássemos a
fotografia do inimigo para o sistema imunológico aprender a
reconhecê-lo”, explica Kalichman.
Há ainda outros obstáculos que a busca pela vacina enfrenta, como
carência de voluntários para os ensaios clínicos (muitas pessoas ainda
têm receio de participar dos ensaios clínicos, com medo de ocorrer
infecção pelo vírus durante os testes), o longo tempo que levam os
ensaios clínicos e os recursos financeiros insuficientes investidos em
pesquisa científica.
Investimentos na vacina
De acordo com a Iniciativa Internacional de Vacina da Aids (IAVI, em
inglês), os gastos globais com pesquisas para a vacina da Aids não
chegam a 1% dos gastos totais com pesquisa e desenvolvimento de
produtos na área da saúde. Os investimentos em 2005 chegaram próximos
aos U$700 milhões, metade do que é considerado necessário para atender
às necessidades. A instituição alerta ainda que enquanto mais de U$20
bilhões são gastos com tratamento, pesquisas, prevenção e cuidados em
doença, apenas 3% deste valor são destinados à pesquisa e
desenvolvimento da vacina. Os investimentos do setor privado, de apenas
U$100 milhões no mundo todo, denunciam uma situação ainda mais crítica
de falta de incentivos. Conforme aponta a IAVI, a Aids se concentrada
em países pobres (95% das pessoas infectadas vivem nessas regiões), e
embora estes sejam os que mais precisam da vacina, são os que menos
podem pagar por ela.
“O fato de determinada doença, como a Aids, se concentrar em países
pobres influencia no avanço das pesquisas, uma vez que o compromisso
com investimentos tão necessários começa a cair; enquanto que, por
outro lado, o descaso com o tratamento, com a assistência às pessoas
infectadas e com o investimento em pesquisas tende sempre,
infelizmente, a aumentar”, comenta Silva.
Apesar da maior concentração em países pobres, a Aids também é um
problema para os países desenvolvidos. O relatório do Programa de
HIV/Aids das Nações Unidas (Unaids), de 2004, alerta para o crescimento
das infecções do HIV em países como os EUA e da Europa, entre os anos
de 2001 e 2004. No mais, a Unaids reforça que os gastos estimados com a
doença será quase o triplo da demanda atual de U$ 8 bilhões em 2008, o
que dá argumentos para que a ciência intensifique as pesquisas nos
próximos anos.
Conquistas e tratamento
Desde que o vírus foi descoberto em 1981, é possível apontar grandes
avanços que a ciência fez: o seqüenciamento total do vírus, a
compreensão de como o sistema imunológico humano é atacado e como ele
tenta reagir e se defender contra o vírus, a descoberta dos
medicamentos antiretrovirais. “Eu diria que até hoje os medicamentos
antiretrovirais, conhecido como “coquetel” representam um dos maiores
avanços da ciência no campo do HIV/Aids, uma vez que conseguiram
diminuir os óbitos dos pacientes infectados pelo HIV em mais de 50%.”,
ressalta Bosco Silva.
O primeiro medicamento utilizado contra a Aids foi o AZT, em 1987. Em
1995, o Departamento de Alimentos e Drogas (FDA) abriu a nova era das
terapias antiretrovirais altamente ativas (HAART), quando aprovou o
primeiro inibidor de protease, o saquinavir. Um ano depois, o Brasil
iniciou o programa de distribuição gratuita do remédio, configurando-se
assim como o primeiro país a priorizar a saúde dos soropositivos. Pouco
tempo depois, em 1997, os resultados da HAART puderam ser observados
pela redução em 40% do número de mortes por Aids, em comparação ao ano
anterior. Nestes 25 anos ainda não existe cura e o vírus, ironicamente
uma das formas de vida mais simples, ainda desafia com sua complexidade
de ação.
Leia mais:
- Understanding AIDS vaccines: An anthology from VAX. Disponível em
www.iavireport.org
- Relatório da Unaids da OMS sobre a epidemia de dezembro de 2005.
www.unaids.org/epi/2005
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