Manuel Marcos Formiga é professor da Universidade de Brasília (UnB) e sócio-fundador da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed). Em sua opinião, a internet permite a massificação da educação a distância (EaD), pois acaba com os determinismos de espaço e tempo que antes limitavam seu alcance. Para ele, a internet é o “Einstein da educação a distância”, pois antes dela éramos limitados ao tempo e ao espaço à moda newtoniana. A invenção desta nova tecnologia de informação e comunicação teria trazido, então, uma explosão, que “veio para ficar” – esta explosão seriam as instituições, os cursos e os alunos que aprendem através do meio digital online. “É por isso que eu digo que a educação a distância, que eu prefiro chamar de educação flexível, não é step, de segunda classe, para uma minoria, mas para a maioria”, diz. Nesta entrevista à ComCiência Formiga fala, entre outras coisas, sobre os possíveis cenários da EaD no Brasil e no mundo e sobre velhos e novos conceitos ligados à educação, tanto presencial quanto online.

ComCiência: Qual o futuro da educação a distância no Brasil e no mundo? Que cenários o senhor acredita serem possíveis?

Manuel Marcos Formiga: Eu diria que o futuro da educação é a educação a distância. Segundo o filósofo Pierre Lévy, pelo menos metade dos 7 bilhões de pessoas que existem no mundo hoje estuda ou está querendo estudar. E não há prédios, instalações ou professores capazes, quantativamente, de atender esta avalanche, este tsunami em busca de conhecimento – isto só pode ser feito via educação a distância. Mas, na verdade, eu não gosto do termo “educação a distância”, ele é antiquado. Na literatura atual usa-se o termo “aprendizagem flexível” ou, em inglês, flexible learning. E este termo inclui, obrigatoriamente, a “educação aberta” e a educação continuada ou permanente, chamada de life long learning. Da mesma forma, a palavra “ensino”, que no Brasil insistimos em usar, é um paradigma do século XIX. Na revolução industrial, a forma de educar era aquela na qual acreditava-se que o professsor era o detentor único do conhecimento e sua tarefa era transmiti-lo aos alunos. Hoje não é mais assim: o aluno pode não conhecer o assunto da mesma forma que o professor, mas tem muito mais habilidade para buscar o conhecimento de maneira autônoma. Eu e meus colegas professores, por exemplo, somos migrantes desta era digital, enquanto nossos alunos são os nativos – eles já saem com certa vantagem. Talvez não em domínio do conhecimento, mas na forma de acesso. Eles são muito mais familiarizados com os meios digitais e mais rápidos em buscar e selecionar informações. No século XXI, esta ideia de transmissão do conhecimento, vertical, de cima para baixo, é ultrapassada.

ComCiência: O que significa “educação aberta”?

Formiga: Eu diria que é um movimento internacional, com apoio explícito da Unesco, para que toda educação que tenha recursos públicos, seja preferentemente aberta. Agora, isto funciona no Brasil? Eu diria que não. O próprio Ministério da Educação nem fala em educação aberta e a quase totalidade das autoridades desconhece o conceito.

ComCiência: Mas isso funciona em algum outro lugar?

Formiga: Funciona em todo país que leva a educação a sério. Na Ásia, por exemplo, todos os países emergentes usam abertamente e fortemente a educação aberta. A China tem uma universidade aberta com dois milhões e meio de alunos e a Universidade Indira Gandhi, na Índia, tem um milhão e 800 mil. Na Indonésia, há uma universidade aberta com 800 mil alunos; na Turquia, com 700 mil; na Espanha com 300 mil; e a Open University, da Inglaterra, tem 250 mil alunos. Todas essas são mega universidades. O conceito de “mega universidades” foi criado pelo especialista Sir John Daniel, que foi vice-diretor da Unesco e chanceller da Open University. Hoje ele é o líder do Commonwealth Learning, que é uma grande instituição de educação aberta e a distância no Canadá. Ele cunhou esse termo para se referir às universidades que têm no mínimo 100 mil alunos no ensino superior e utilizam diferentes tecnologias de informação e comunicação (TICs) em um sistema de educação flexível ou aberta. O Brasil, entretanto, é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que não possui uma universidade aberta.

ComCiência: O senhor já fez algum curso de EaD?

Formiga: Fiz vários cursos a distância, inclusive uma pós-graduação da Universidade de Londres, nos anos 1980. Fiz também vários cursos pelo Instituto Monitor e pelo Instituto Universal, duas instituições de São Paulo que ainda hoje oferecem cursos a distância. Nos lugares mais remotos ou de dificil acesso do país, onde não tem nem eletricidade, por exemplo, são eles que continuam chegando. É um trabalho de utilidade pública fantástico. Nenhuma instituição brasileira é capaz de dizer que já registrou alunos em número superior a esses dois institutos. Há algum tempo atrás visitei essas duas instituições e eles estavam na faixa de 40 milhões de alunos ao longo de sua história – e isso é fantástico. É um belíssimo exemplo, que o Brasil divulga pouco.

Mas quem consagra a educação aberta é a Open University (OU), do Reino Unido, em 1969, com Herald Wilson. Esse líder político lutou muito para fazer passar no congresso o projeto da Open University. Seus grandes adversários eram a Universidade de Cambridge e a de Oxford, que não admitiam que a sacrossanta instituição universitária presencial fosse ameaçada por modernismos “exóticos”, como usar a correspondência, a televisão, o rádio – e logo depois o computador – para educar as pessoas. É fácil começar um curso da OU, o difícil é concluir – eles são muito exigentes na titulação. Tem que fazer provas, mostrar conhecimento e sair tão bem formado quanto em qualquer outra universidade. Eles tem curso de mestrado, de doutorado e hoje ninguém questiona a qualidade da OU. Eu diria que, com o apoio da rede de televisão BBC, a OU fez uma revolução na educação aberta, em todos os níveis, não só no universitário.

Eles criaram o Open College e ofereciam cursos profissionalizantes pela televisão. E posso lhe dizer que, como professor da UnB Universidade de Brasília, desde os anos 1970, eu usava o material da Open University sobre desenvolvimento econômico, evolução da cidade, urbanização etc, com meus alunos dos cursos de graduação.

ComCiência: O senhor mencionou que a BBC, em colaboração com a Open University, fez uma revolução na educação aberta. O que caracteriza uma TV educativa? O senhor acredita que exista alguma no Brasil?

Formiga: Uma TV educativa é aquela que usa o tempo e o espaço disponível para transmitir conhecimento e fazer as pessoas aprenderem – é diferente de um canal cultural, como a TV Cultura. Aqui no Brasil, por exemplo, nós temos a Hora do Brasil, que ninguém gosta, mas que é obrigatória. Por outro lado, não temos programas educativos obrigatórios, como alguns países da América Latina têm. Aqui no Brasil, não se usa a TV para fazer educação compulsória – e por quê? Porque educação no Brasil continua não sendo prioridade. Nunca foi, não é, e não será a curto prazo. O Brasil ainda não despertou para a importância da educação. São cinco séculos de pouca tradição em educação e, ai governo, entra governo, e a educação no país não melhora. O acesso aumentou, mas a qualidade não – ainda devemos ao povo o legado da educação de boa qualidade. Em um país semianalfabeto e de baixa escolaridade como o nosso, é um contrasenso criar obstáculos para a educação aberta ou a distância. E o que se vê é exatamente isso, da parte das autoridades federais, estaduais e municipais, que criam obstáculos. Por exemplo: há 70 mil leis para se legislar a educação no Brasil. É um escâncalo, injustificável. É uma inflação de leis. A educação não precisa de leis, precisa de marcos legais, de grandes linhas gerais, como acontece nos países organizados. Quando se quer criar um programa educacional no Brasil, não se pensa no conteúdo do programa – pensa-se primeiro no decreto-lei que irá criá-lo. É a primeira coisa com que se preocupa a burocracia estatal e este é um caminho completamente equivocado.

Teríamos que pensar primeiro no substancial, no rationale: para onde vamos? O que queremos? Como vamos chegar ao lugar almejado? Mas não é isso que acontece.

ComCiência: Como o senhor vê a importância da sala de aula e do contato pessoal para o processo educacional?

Formiga: Há vários estudos que mostram que a sala de aula, hoje, tem uma importância cada vez menor e comprovam que o aluno aprende mais fora, do que dentro dela. A sala de aula, no futuro, não vai desaparecer, mas será um ponto de encontro e de discussões e não mais um local de transmissão do conhecimento, à moda antiga, do século XVII. Mas minhas aulas na UnB, eu não uso o quadro verde para escrever e ficar de costas para os alunos. Eles são os atores principais – eu levo um tema, distribuo o material, exijo leitura e estou ali para conduzir uma discussão.

ComCiência: O que é blended learning?

Formiga: É o uso misto ou integrado das técnicas da aprendizagem presencial – que não vão ser abolidas – com o uso intensivo das TICs (tecnologias de informação e comunicação), da rede e dos meios de comunicação modernos.

ComCiência: Algumas pessoas traduzem blended learning por “ensino híbrido”, o senhor concorda com esta tradução?

Formiga: A Unesco diz, em vários documentos, que deve-se evitar a palavra “ensino” – que este é um conceito ultrapassado, da época em que se imaginava que um professor sabia tudo e abria a cabeça do aluno, que era a “tábula rasa”, para injetar conhecimento. Mas hoje sabe-se que ninguém aprende dessa forma. “Aprendizagem” é o termo moderno e correto. Ao ponto tal que em 1997, com o lançamento do livro Um tesouro a descobrir, que tem como síntese a expressão “aprender a aprender”, vimos que, com a revolução do conhecimento, o professor passa a ser um coach, um treinador, um técnico, um orientador – a tecnologia não acaba com o papel do professor, mas o modifica. O papel do professor à moda antiga já passou. Se alguns ainda estão tentando insistir nisso, estão perdendo tempo e serão rapidamente ultrapassados pela realidade. Não foi por menos que a Unesco declarou o século XXI como o “século da aprendizagem” e não do ensino. É por isso que eu prefiro os termos “aprendizagem a distância” ou “aprendizagem flexível”, do que “ensino a distância”.

ComCiência: Como identificar seriedade, compromisso e qualidade em uma instituição que ofereça cursos de EaD? O que a pessoa que vai fazer um curso de EaD tem que exigir da instituição?

Formiga: Para quem vai fazer um curso de aprendizagem flexível, é importante saber qual é a instituição provedora desse curso. Quando a pessoa faz um curso presencial, ela busca saber quem será o professor – se ele é respeitado, se tem ideias próprias, se escreveu livros, etc. Na modalidade a distância, o professor não atua sozinho: ele tem ao lado um comunicador, um desenhista, várias pessoas que entendem de métodos didáticos e o material de apoio. O professor é parte da engrenagem, é um elemento de uma equipe. Então é preciso estar atento à idoneidade da instituição.