O primeiro relatório de quatro a serem divulgados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), traça um cenário de aumento da temperatura do planeta (entre 1,8 até 4°C) ainda neste século. Os efeitos dessas alterações em território brasileiro ainda são desconhecidos. Diferentemente de outros países, como a Holanda que, fazendo frente aos problemas do aquecimento global, procura adaptar-se através de um programa de reordenamento territorial e agrícola, o Brasil peca por ainda não ter programas de adaptação para os efeitos das mudanças climáticas em seu território.
Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade de São Paulo (USP) alertam para a necessidade urgente de planos de adaptação e mapas de vulnerabilidade para o território brasileiro.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA), já deu o primeiro passo. No final de fevereiro, apresentou um documento, contendo estudos desenvolvidos entre 2004 – 2006 com a intenção de se antecipar ao problema. O estudo, (Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade), coordenado pelo professor José Marengo, traçou o perfil evolutivo do clima no Brasil e seus efeitos sobre a biodiversidade para os próximos 90 anos (2010 – 2100).
Como o Brasil vai se adaptar?
Wagner da Costa Ribeiro, professor de geografia da USP, lembra que os países subdesenvolvidos têm menos tradição em pesquisas e isso pode significar dificuldades de adaptação a eles. “No caso do Brasil, temos uma Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC), vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Composta por diversos órgãos de governo como ministérios, universidades, institutos de pesquisa etc., a comissão produziu um importante documento que é o Relatório de Emissões do Brasil, lançado há dois anos. Mas, se você olhar o relatório, nada é dito com relação à mitigação, que é o grande tema”, afirma Ribeiro.
Para países subdesenvolvidos, como o Brasil, os efeitos de curto prazo serão mais perversos. As enchentes, por exemplo, que tendem a se intensificar, estão associadas a grandes perigos para os seres humanos. Segundo o IPCC (2001), os impactos à saúde podem ser divididos em imediatos e de médio e longo prazo. Os imediatos incluem afogamento e ferimentos. Os de médio prazo são as doenças que podem ocorrer devido à ingestão de água contaminada (cólera, hepatite A) ou contato com água contaminada (leptospirose). Os de longo são as doenças respiratórias resultantes da superpopulação de abrigos.
O Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE) publicou o Caderno de Mudanças do Clima, documento em que, em sua parte II, “Vulnerabilidade, Impactos e Adaptação à Mudança do Clima” há um trecho dedicado às “Mudanças Climáticas e Saúde Humana”, coordenado pelo professor Ulisses Confalonieri, do Departamento de Ciência Biológicas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nesse trecho afirma-se que os efeitos das alterações climática na saúde, tanto nas regiões metropolitanas como nas regiões costeiras, em nível nacional, permitem tirar conclusões apenas de caráter preliminar. “As projeções relativas aos efeitos na saúde se apóiam basicamente em estudos de séries históricas, já que não existem cenários regionais de saúde desenvolvidos para este fim”. Segundo informações no documento, as doenças infecciosas mais afetadas na região da América Latina serão a malária, dengue, cólera e outras de veiculação hídrica.
Carlos Nobre, pesquisador do Inpe, aponta que, por muitos anos, houve um descaso dos tomadores de decisão que controlam o processo das políticas públicas da área das mudanças climáticas no Brasil. Falar em adaptação, para eles, seria admitir que não havia mais jeito e a única solução era “jogar a toalha”. “O fato é que muita gente importante pensa isso até hoje. A ênfase desses grupos que dominaram o controle dos recursos federais distribuídos para essa área é em fazer tudo o que for possível para reduzir as emissões globalmente e, diplomaticamente, sermos muito duros com os países que mais emitiram historicamente, porque essa é a solução de longo prazo”, explica Nobre. O pesquisador afirma ainda que, apesar de não discordar dessa posição, o relatório do IPCC mostra, com clareza, que as transformações climáticas se tornaram inevitáveis. “Seria muita irresponsabilidade não buscar políticas de curto prazo. Em outras palavras, as políticas devem ser, enfaticamente, de redução das emissões, mas devem também ser de adaptação”, completa Nobre.
Brasil não tem mapa de vulnerabilidade
Segundo o relatório do IPCC (Mudança do Clima 2007: a Base das Ciências Físicas), o aumento da temperatura é “praticamente certo”. Nenhum outro documento foi publicado contrapondo-se a essa afirmação. O relatório ainda afirma que “o aquecimento do sistema climático é inequívoco”, uma vez comprovado o processo de aquecimento da temperatura média do ar, das águas dos oceanos, derretimento das geleiras e elevação do nível do mar.
Nobre também chama a atenção para a dificuldade de se reverter os dados do quadro atual do aquecimento global. “Se conseguíssemos congelar as emissões atuais para os próximos anos, ainda assim, o clima continuaria a esquentar por pelo menos mais 200 anos. Nós já perturbamos o equilíbrio do planeta. Têm muitos gases na atmosfera”. Ele critica o fato do país ainda não possuir um mapa nacional de vulnerabilidade e riscos às mudanças climáticas. “Um mapa de vulnerabilidade consiste numa série de estudos de impactos em que, ao cruzar essas informações com as conhecidas vulnerabilidades, podemos prever como as mudanças climáticas aumentam, não influenciam ou mesmo diminuem as vulnerabilidades. Com os poucos estudos que temos, podemos afirmar que as mudanças climáticas apenas aumentam as vulnerabilidades”, aponta o pesquisador.
Vulnerabilidade, de acordo com o relatório do IPCC de 2001, é “o grau de suscetibilidade de um sistema aos efeitos adversos da mudança climática, ou sua incapacidade de administrar esses efeitos, incluindo variabilidade climática ou extremos”.
Para o pesquisador do Programa de Planejamento Energético da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), Marco Aurélio dos Santos, o ponto que mais preocupa nessa questão é a irreversibilidade do fenômeno, que pode acentuar, ainda mais, os efeitos negativos no longo prazo. “O Brasil é um país de dimensões continentais que abrange regiões de clima equatorial, tropical e sub-tropical. Somos um país em que a agricultura tem um papel fundamental, seja no abastecimento do mercado interno, seja na geração de divisas com as exportações”. Assim, se todas as previsões dos cientistas do IPCC se confirmarem, o cenário desenhado para o futuro deverá ser caótico.
Para Nobre, o Brasil está no ponto de inflexão sobre as pesquisas. Os estudos sobre as alterações climáticas estão começando a aparecer agora. De acordo com as informações do pesquisador, em nível estadual, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) está criando um Programa de Mudanças Climáticas. Já o Governo Federal vai criar uma Rede Brasileira de Mudanças Climáticas que vai se debruçar também sobre os aspectos de impacto e adaptação. “Isso mostra que o quadro está começando a virar. Porém, começamos com pelo menos 10 anos atrasados em relação aos países desenvolvidos”, critica.
No caso da Holanda, o plano de reordenamento territorial prevê um recuo nos diques de contenção, ampliando assim as áreas de alagamento. Como o país tem parte de seu território abaixo do nível do mar e a maior densidade populacional da União Européia, os cuidados com as adaptações, por parte do governo, devem ser redobrados. “Em 2006, a Holanda gastou cerca de € 2 a 3 bilhões, ou seja, cerca de 50% de todos os investimentos do governo no país, já para medidas de enfrentamento das variações climáticas. A Holanda sobe o valor de investimentos a cada ano”, aponta Nobre.
A nova geografia dos refugiados ambientais
As soluções para mitigar os efeitos das mudanças climáticas deverão passar, obrigatoriamente, pela mudança de hábito e padrões de consumo do ser humano. As questões da adaptação às mudanças do clima deverão ser rapidamente implementadas em locais onde os riscos dos efeitos sejam mais intensos, como, por exemplo, o semi-árido do Nordeste brasileiro, onde a população é mais sensível à mudança do clima.
Wagner Ribeiro, da USP, avalia que uma das questões com que deveríamos estar muito preocupados é o deslocamento populacional pelo agravamento das questões ambientais. “O Brasil tem uma forma não muito boa de lidar com isso. Se você pensar em toda a história do nordestino e da migração por causa da seca, na verdade, uma questão mais social do que natural, é possível que tenhamos problemas sociais graves em decorrência das mudanças climáticas e de novos deslocamentos populacionais”.
Já Santos, da UFRJ, lembra que as transformações no clima serão mais intensas em certas partes do mundo. “Como, por exemplo, o caso dos refugiados climáticos das pequenas ilhas do Pacífico ou mesmo regiões baixas como Bangladesh ou a Holanda. Essas soluções de adaptação serão obrigatórias já que a reversão do fenômeno é inviável em curto prazo”, afirma.
Segundo o estudo do MMA, simulações do balanço hídrico nas regiões do Brasil sugerem tendência de extensão da deficiência hídrica por praticamente todo o ano no Nordeste, apontando para uma maior "aridização" da região semi-árida até final do século XXI. Num cenário pessimista, o estudo expõe que o Nordeste se transformaria de semi-árido em árido até finais do século XXI. O balanço hídrico realizado com as médias dos valores dos modelos não chega a esse extremo, mas sugere que a estação chuvosa será mais fraca e os déficits de umidade no solo serão maiores no futuro.
Na opinião de Carlos Nobre não é absurdo dizer que no Brasil centenas de milhares de pessoas - talvez até passando do milhão - teriam que ser realocadas. “Como não há estudos, não podemos fazer essa afirmação com certeza absoluta. Faltam estudos específicos. Se o nível do mar subir 50 centímetros as águas vão invadir quais bairros de Salvador, Recife e Rio de Janeiro? Nesses bairros, moram quantas pessoas que terão que ser realocadas? Sem os estudos específicos e a elaboração de um mapa de vulnerabilidade, não conseguiremos responder essas questões”, finaliza.
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