A população e
professores desprovidos de informações costumam atacar a educação no Brasil
como se ela fosse de péssima de qualidade. Infelizmente, alguns setores da imprensa,
em particular, jornalistas nem sempre habilitados, analisam e desqualificam os
complexos processos educacionais sem conhecê-los de fato. Andam sempre à cata de “maçãs podres”, que utilizam para alimentar a audiência de programas sensacionalistas de rádio e TV ou para vender seus jornais impressos, ignorando experiências e situações escolares razoáveis e
outras tantas de ótima qualidade.
O que não se dão conta é que a educação no
Brasil mudou, e para melhor, com conquistas memoráveis nas últimas décadas. O Plano Nacional de Educação (PNE) pode ser o orientador do caminho
para esse salto fundamental na educação, correspondendo ao crescimento econômico
com distribuição de renda e justiça social que o país tanto buscou e está
começando a conquistar.
O PNE está em
discussão no Congresso Nacional. O projeto foi elaborado pelo Ministério da
Educação (MEC) a partir dos debates e das deliberações da Conferência Nacional
de Educação (Conae), maior evento educacional já realizado no país. A Câmara
dos Deputados já realizou dezenas de audiências públicas com diversos segmentos
da sociedade civil para debatê-lo. Os deputados apresentaram quase três mil
emendas ao PNE, um recorde para um projeto de lei. Essa mobilização em torno de
um projeto de lei mostra a sua importância: o Brasil precisa muito de um bom
sistema de educação e tem a oportunidade certa no momento correto para
consegui-la.
Como, porém, as políticas
públicas, em particular na educação, padecem de alguns tipos de males, como o
eleitoralismo (ações governamentais focadas em necessidades eleitorais dos
gestores) e o egopoliticismo (que associa as ações governamentais à figura
eleitoral do gestor), e considerando as situações caóticas da educação
brasileira que no século passado levaram os movimentos sociais a levantar amplas reivindicações
aos governantes, as proposições parecem sempre irrealizáveis e os avanços são recebidos como minúsculas conquistas. Isso porque em educação não existem soluções rápidas, ainda mais em um
país continental e complexo como o nosso; por isso, toda mudança educacional
precisa de tempo para a efetivação, assim como para mostrar os seus frutos.
Um dos caminhos para
superar essa situação é a elaboração de um PNE com validade superior ao mandato
de dois governos, fundamentado em demandas da sociedade e que alcance amplo
apoio do Congresso Nacional. A implantação do PNE, por sua vez, precisa ser
monitorada pela sociedade civil.
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O Brasil não vai
conseguir superar o descaso de cinco séculos com a educaçao num piscar de olhos. Mas como afirmamos, a situação da educação mudou para melhor e alguns fatos significativos do início da segunda década do século XXI, precisam de
reconhecimento:
1. A ampliação do atendimento
escolar é um marco histórico na nossa história: (a) universalizou o ensino fundamental;
(b) está organizando uma ousada política de expansão da educação infantil; (c)
constituiu uma sólida política de educação profissional tecnológica no ensino médio,
com a implantação dos Institutos Federais; (d) expandiu – sem precedentes – a
oferta da educação superior (com a ampliação das universidades federais e a
compra de vagas em instituições privadas, com o ProUni); e (e) estão em
consolidação os modelos escolares autônomos para as populações indígenas,
quilombolas e do campo (castanheiros, seringueiros, assentados, ribeirinhos...).
As salas de aula estão superlotadas, diversas escolas convivem com péssimas
condições materiais e os resultados da aprendizagem ainda são baixos. Experiências já reconhecidas em municípios de todos os portes e regiões mostram que esses problemas podem e
estão sendo superados.
2. O financiamento
da educação consolidou as fontes de recursos para a área e o sistema
compensatório de distribuição de verbas entre as diferentes regiões do país
pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação (Fundeb), que distribui quase R$ 10 bilhões por
ano do governo federal para equiparar as condições escolares entre as regiões
mais pobres do país. Assim, todas as escolas públicas têm garantido uma
quantidade mínima de recursos para cada aluno. As diferenças entre os diversos
municípios ainda são grandes, mas é inegável que é uma questão de tempo para
que todos os estudantes do Brasil tenham a mesma qualidade de educação em todo
o país.
3. A valorização dos
educadores está ocorrendo com a implantação do piso salarial nacional dos
educadores (que paga, em valores de hoje, mais de R$ 1.100 pela jornada de 40
horas), com a formação inicial desses profissionais em cursos de graduação e a expansão
da oferta de pós-graduação para eles. Vencida a batalha pelo piso salarial, falta estabelecer planos de carreira com aumento real de salários e melhorar
os cursos de graduação e pós-graduação para professores, integrando-os num
amplo sistema de formação continuada.
4. A situação da educação foi
revelada, em parte, pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb),
um importante instrumento quantitativo, reconhecido internacionalmente. Mas precisamos dos fatores qualitativos e processuais para
aprimorar o sistema de avaliação institucional da educação.
5. A gestão democrática está se generalizando
com a implantação de conselhos escolares, conselhos municipais e com a consulta
na escolha de gestores. Mas ainda temos dificuldades com a participação das
comunidades, em particular, dos familiares de alunos.
6. O Brasil
caminha com passos largos no combate ao racismo e na afirmação da diversidade
cultural de nossa população nas escolas. A adoção de cotas na educação superior
está possibilitando a formação de professores negros e índios em maior número.
A cultura e a história indígena e africana estão ganhando espaços reconhecíveis
nas salas de aula.
7. A inclusão de pessoas com
necessidades escolares diferenciadas na educação regular é uma grande conquista
que está derrotando o preconceito. No entanto, ainda são deficitárias as ações
educacionais suplementares e complementares, bem como a formação e o apoio aos
professores da educação regular.
8. O governo
federal mantém políticas nacionais consolidadas nas áreas de alimentação,
transporte, material didático, entre outras, para apoiar as redes municipais e
estaduais.
O PNE, na forma como foi apresentado ao Congresso Nacional,
apresenta condições objetivas para superar a fragmentação das políticas
públicas e garantir o funcionamento de um sistema de educação eficiente e de
qualidade. Algumas de suas principais metas são:
I. A universalização
da educação básica – o que significa: (a) manter mais de 42 milhões de alunos
de 4 a 17
anos, sendo 5,6 milhões na educação infantil de 4 a 5 anos (aumento de 1,4 milhão)
e mais de 11 milhões de jovens no ensino médio; (b) atender metade das crianças
de 0 a 3
anos na educação infantil, um contingente de 4,8 milhões de crianças; (c) aumentar,
na educação superior, de pouco mais de 6 milhões para 11,5 milhões de
estudantes, ou seja, um crescimento de 5,3 milhões de matrículas; formar na pós-graduação
60 mil mestres e 25 mil doutores por ano.
II. A oferta de
educação integral para 25% dos estudantes de 4 a 17 anos (esta meta pode ser
ultrapassada com apoio de programas municipais e estaduais e com a
possibilidade de expansão do ensino médio profissionalizante).
III. A formação
inicial dos professores da educação básica será em cursos de graduação (hoje
apenas 67,5% estão nesta condição) e 50% deles com pós-graduação (hoje 25% têm
pós-graduação).
IV. O
reconhecimento profissional e social dos professores, promovido pelo aumento da
média salarial equivalente aos profissionais com o mesmo número de anos de
escolarização. Isso significa um salto de mais de mil reais no salário médio,
saindo dos atuais R$ 1.745,00 para 40 horas para chegar a R$ 2.792,00. Ou seja,
a educação pública vai poder disputar os melhores profissionais do mercado em iguais
condições com a rede particular e outros setores. Os professores também deverão ter planos de carreira
fixados em até dois anos após a aprovação do PNE.
V. O ensino médio
deverá atender a todos que o quiserem cursar. O ensino profissionalizante
deverá ser ofertado com mais de dois milhões de vagas, sendo metade em Institutos Federais
de alta qualidade. É bem possível que os governos estaduais também ofertem mais
vagas de ensino médio profissionalizante. Assim, poderemos ter mais de um
estudante, a cada quatro, em escolas com alta qualidade.
VI. O
analfabetismo será combatido com eficácia no Brasil. Os alfabetizados e os analfabetos
funcionais terão a possibilidade de continuar os estudos. E a educação de jovens
e adultos (EJA) terá metade das vagas com formação profissionalizante,
aumentando as atuais 22 mil para cerca de 850 mil vagas, um incremento de quase
quarenta vezes. A população de 18
a 24 anos terá sua escolaridade ampliada para o
equivalente a 12 anos de estudos, terminando, nessa faixa etária, com a diferença
de negros e índios em relação ao restante da população.
VII. Os recursos
saltarão dos atuais 5% do Produtor Interno Bruto (PIB) para cerca de 7%
(algumas previsões apontam que os valores podem ser aplicados até 2016 e chegar
entre 8 e 9% até 2020). A qualificação da gestão democrática irá reduzir a
malversação de dinheiro público e melhorar o uso dos recursos da educação.
Essas mudanças,
entre outras, irão estabelecer condições de melhora também das condições
sociais, pois a escolarização das pessoas entre 17 e 24 anos (ou 29, como já é
sugerido no Congresso), a formação de jovens no ensino médio profissionalizante
e a expansão da educação superior, associadas ao modelo de crescimento
econômico com distribuição de renda, ampliarão o desenvolvimento da economia, gerando
renda e tributos, impulsionando um processo endógeno: a educação faz o país
crescer, o que, por sua vez, melhora ainda mais a educação.
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O PNE já é uma
grande conquista, pois expressa o crescimento e as potencialidades da educação
brasileira. No entanto, ela possui outras “urgências” que vão além do projeto. Algumas podem ser incorporadas pelo Congresso Nacional ou então
pelos governos dos municípios, estados e do Distrito Federal, ou ainda
impulsionadas pelos movimentos de professores e por ações da sociedade. Entre
elas, seriam destacáveis as seguintes:
1. Estabelecer currículos
e ações pedagógicas para uma educação para todos. As ações educativas ainda
estão focadas em aprendizagens individuais, desconsiderando as complexas redes
culturais. Precisamos superar a cultura da nota e da presença fundada em pedagogias
meritocráticas e alçar os estudantes à condição de protagonistas de seus
processos de aprendizagem. As referências para essa proposta pedagógica seriam
as da Escola Cidadã de Porto Alegre, Sem Fronteira de Blumenau e Plural de Belo
Horizonte.
2. Efetivar
políticas efetivas de proteção da diversidade cultural, social, de gêneros, de
orientação sexual e de necessidades diversificadas. Ainda são insuficientes as
políticas de ações complementares e suplementares de atendimento especializado
dos alunos com necessidades educativas diversificadas. O ensino médio regular, atualmente
desprovido de identidade, precisa ser convertido em educação para a juventude.
3. Implantar o
sistema de avaliação processual e qualitativa das escolas e da aprendizagem na educação
básica, similar em diversos aspectos ao Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior (Sinaes).
4. Ofertar
condições de fruição da cultura na escola e em equipamentos culturais,
estimulando o aprimoramento estético e as condições para a conquista e o
exercício da cidadania cultural.
5. Estimular e
efetivar a participação democrática, em particular, em relação às famílias, e o
funcionamento regular na gestão democrática das instituições escolares.
6. Implementar o
sistema de formação continuada dos educadores, articulando a educação superior,
a formação inicial e a realidade das redes educacionais. A formação inicial em
cursos de pedagogia e licenciaturas ainda é frágil e a pós-graduação ainda é
acessível na forma de ensino a distância (EaD).
7. Aprimorar a EJA
como um sistema para incorporar com qualidade os analfabetos funcionais e os
estudantes com necessidades especiais que desejam continuar estudando a partir
dos 17 anos.
8. Promover uma
reforma tributária que garanta mecanismos eficientes e permanentes de
financiamento da educação.
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Temos uma educação
com conquistas colossais, um potencial imenso e dificuldades notáveis num
momento muito favorável de desenvolvimento social, cultural e econômico do
país. O PNE pode ser o grande contrato social a reunir os governos de todas as
instâncias, os educadores, os funcionários, as famílias, os alunos e a
sociedade para fazer da educação – de fato – prioridade e realidade nacional. O
passo de gigantes do começo do século XXI deve ser acompanhado de ações de
grande porte nesta década, para que ao final dos anos 2020 o Brasil possa ter estabelecido
a educação necessária ao povo brasileiro.
Assim, precisamos
escrever este PNE pensando em construir as condições para o próximo: todos os
estudantes em escola integral equipada com aprendizagem, esporte, cultura e
lazer; universidade produzindo conhecimento e formando profissionais
socialmente qualificados; professores com ótima escolarização e com salários
que reconheçam a sua função social. E um país que encontrou o caminho do
desenvolvimento econômico com distribuição de renda e justiça social. Marcos Cordiolli é
mestre em educação, cineasta e consultor técnico ad hoc da relatoria do Plano
Nacional de Educação na Câmara dos Deputados.
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