10/02/2008
O lixo está longe de ser apenas resíduo, é na verdade um conjunto de matérias-primas preciosas de alto valor econômico. A opinião é do economista e advogado Sabetai Calderoni, presidente do Instituto Brasil Ambiente, que presta consultoria a governos e empresas que buscam soluções relativas a resíduos sólidos. Um país populoso como o Brasil, descarta todos os dias uma montanha de cerca de 190 mil quilos de lixo doméstico e outros 270 mil de entulhos que poderiam gerar uma riqueza anual estimada em US$ 10 bilhões. A questão tornou-se urgente, afirma o especialista, porque os problemas começaram a pipocar, ficando impossível ignorá-la. Mas ainda falta muito para tornar-se prioridade perante os governos. O resultado é que a minoria dos mais de 5 mil municípios possui usinas de reciclagem de entulhos, conhecem a coleta seletiva ou investem em aterros sanitários. “Se tivéssemos um 'Ministério do Lixo', seria o único ministério da República que não teria custos, seria sem dotação orçamentária”, sugere. Calderoni contribuiu com propostas para a Política Nacional de Resíduos Sólidos, entre elas a do sistema de auto-declaração de empresas geradoras e transportadoras de resíduos, que permitiria aos governos maior controle, aproveitamento e redução do lixo gerado. Mas enfatiza que a Política precisa ser aperfeiçoada: “a grande deficiência está na área da reciclagem, na falta de adequação de instrumentos econômicos para assegurá-la.”
ComCiência – Os dados relativos à gestão e produção de lixo no país são desatualizados, desconexos, e não parecem muito confiáveis. Como é possível fazer uma Política Nacional de Resíduos Sólidos se não temos dados confiáveis? Calderoni – Se você pega uma fonte das indústrias, elas vão querer divulgar certos dados, se a fonte é das empresas que prestam serviços de reciclagem, vão te mostrar outros dados, conforme o interesse. Respondi a essa pergunta em palestras para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República. A minha proposta é uma política que busca implantar um sistema de auto-declaração, como o imposto de renda no Brasil. A pessoa fica responsável durante tantos anos por aquela informação. Se não bater, se tiver alguma coisa ilógica, ela é responsabilizada depois. Não tem fiscal para fazer a declaração por nós. Tudo que depende de fiscalização é complicado, é caro e sujeito a muita corrupção. Então esse é um esquema simples, que estabelece quatro sistemas de auto-declaração: o gerador do resíduo, o transportador, os governos municipal e estadual e depois um outro sistema centralizado no federal. O gerador tem que declarar qual foi a quantidade de resíduos licenciados em relação ao total da sua produção. Ele tem que dizer qual foi o total de produto que ele produziu durante aquele ano, copiando (as informações) das notas fiscais. Só com esses dois itens, você já faz uma revolução no Brasil. Pela primeira vez se cruza dados fazendários, dados fiscais, com dados de licenciamento ambiental. Se as notas fiscais coincidiram com as licenças ambientais concedidas às empresas, ele (o gerador) já está em dia. Não tem fiscalização, é malha final automática por computação. A terceira das quatro informações que ele precisa dar é qual foi o destino que ele atribuiu a cada quilo de lixo que gerou. A lei obriga a fazer o registro também de quanto manda pra onde. Dessa forma, ele vai ficar amarrado. Depois vamos poder checar com as empresas que receberam, para ver se elas, de fato, receberam as quantias informadas. E as tecnologias adotadas para fazer o transporte e quem transportou é a quarta informação. Então, são só quatro informações por ano, todas elas copiadas dos documentos oficiais da empresa. Mas nunca ninguém tem acesso a isso reunido. (...) E assim, todos eles vão estar sujeitos a todo momento a cair na malha fina.
Que tipo de resíduo que é e para onde a empresa levou e a licença que ela tem pra poder fazer isso. As empresas que prestam serviço de aterro ou de reciclagem vão ter que dizer de quem recebeu, quanto recebeu e que tipo de tratamento deu, que tecnologia adotou e que licença ela tem pra fazer isso. Então, temos todo um sistema de auto-declaração que, aí sim, permite um planejamento. Uma base de informação por empresa. Automaticamente, os governos municipal e estadual vão poder fazer uma totalização de quanto foi gerado de cada resíduo naquele ano. Em vez de isso gerar problema, gera negócios. Quando você diz que gerou amônia num lugar e enxofre no outro, enxofre com amônia dá um belíssimo de um fertilizante. Quer dizer, vamos transformar aquilo que é resíduo em produtos. Então, cria-se uma informação que é fundamental para a sociedade e essencial para evitar o descarte e permitir a reciclagem. E, portanto, vai atribuir valor econômico àquilo que hoje é um custo, diminuindo então os custos das empresas e melhorando a eficiência.
ComCiência – Como foi a recepção desta proposta pelos representantes do governo para quem o senhor as apresentou? Há alguma previsão dela ser colocada em prática? Calderoni – Foi excelente. Na Fiesp, houve apenas um pedido de que houvesse uma moratória para dar um tempo para que que os geradores pudessem se recompor e adotar essa nova sistemática. Essa porposta já entrou num dos projetos da Política Nacional de Resíduos. Mas a estadual também já tem. A partir de 2008 já pode funcionar em São Paulo.
ComCiência – Como o senhor avalia a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que tenta agregar valor ao lixo, regulamentar o tratamento e a destinação final do lixo dos municípios? Calderoni – A grande deficiência está na área da reciclagem, na falta de adequação de instrumentos econômicos para assegurá-la. Eles fazem uma listagem de instrumentos, que é muito mal colocada, mas não estabelecem metas. Essa é a grande falha, que só fica na conversa, na listagem de instrumentos, na listagem de obrigações, mas sem amarração que permita depois aferir se está tendo benefício ou não. Tem que ter uma forma de medir os resultados, no tempo e ação, deve ter uma responsabilização clara para medirmos o que foi cumprido em relação às metas estabelecidas. Se sou um produtor de papel e tenho que reciclar 30%, mas só reciclei 18%, tem que ter uma pena. Se não tiver penalidades, a lei também não funciona. Esse é o problema da Política, está um pouco desamarrada, solta.
ComCiência – Sobre a gestão do lixo pelos municípios, sabemos que são muito freqüentes os casos de licitação que geram contratos milionários por um tempo bastante longo. Como podemos minimizar esse problema? Calderoni – A solução está na central da reciclagem. Essa central de reciclagem tem que ter uma responsabilidade operacional, tem que ter funcionários, uma coisa que não é muito complexa, mas tem que ser feito, tem ser feito investimento, tem que ser organizado isso. E na verdade, você não tem que investir um único centavo. Pode ser feito pelo esquema de PPP (Parcerias Público-Privadas). O investimento pode ser 100% do setor privado. No lugar de fazer licitação pra aterro, faz pra central de reciclagem. Você vai fazer um bem pra sociedade, vai gerar emprego, vai usar uma área pequena, mínima. A central usa quase nada de área. O aterro pra acumular lixo é de 20 anos, e 20 anos são 7 mil e poucos dias. E aqui na central de reciclagem, o lixo que entra de manhã sai à noite, é lixo de um dia. O agravante do aterro é que acaba essa área, tem que fazer outro mais longe e fica mais caro para transportar depois. A central nunca acaba. É uma indústria de reciclagem. Com isso, podemos fazer uma PPP e evitar os custos enormes que o município tem, porque ele não vai fazer investimento e não vai fazer transporte para tão longe. Cada vez que acaba um aterro, ele tem que pagar mais e mais com lixo e transporte.
ComCiência – Se não precisa de investimento, pois acaba gerando recurso, se é tão simples, por que os municípios ainda não fazem nada disso? Calderoni – Esse esquema da Parceria Público-Privado no Brasil é resistente. Alguns municípios desenvolveram uma legislação específica para resíduos. Outro problema é a corrupção. Tem muitos interesses envolvidos, porque os valores econômicos são muito elevados e eles acabam por criar um mecanismo de dependência. Nós, do Instituto Brasil Ambiente, desenvolvemos isso e colocamos gratuitamente à disposição de todos os municípios que quiserem essa legislação. Alguns aprovaram a legislação. Há muitos interesses, os valores econômicos são muito elevados e há um relacionamento de dependência, até de acomodação, inércia cultural, resistência à inovação, isso tudo faz com que a implantação demore. Mas já temos municípios no Brasil fazendo a triagem, a reciclagem de lixo, tem muita coisa rolando já no país.
ComCiência – O mercado imobiliário é um dos que mais crescem no país. Cresce, com ele, a produção de entulho. Qual o destino deste lixo? Qual a quantidade de usinas de reciclagem desses materiais funcionando hoje e como deveria ser este tratamento de lixo? Calderoni – Sabe o que faz com a fração de entulho (tijolos, laje, madeira, terra, etc)? Quatro programas municipais: programa habitacional (para fazer tijolo, por exemplo, encanamentos elétricos, hidráulicos, telefonia); programa de pavimentação, porque serve de base de asfalto; programa de drenagem, como sarjeta, boca-de-lobo, manilha; e o programa de mobiliário urbano, pode-se fazer poste, mesas, cadeiras, placas, cercas e uma infinidade de coisas a partir desse material que ia ser em grande quantidade jogado clandestinamente nas ruas, porque não é obrigação da prefeitura recolher. Belo Horizonte (MG) tem uma central de reciclagem grande, uma em Campinas (SP), uma em Piracicaba (SP), mas elas estão sendo usadas só na metade da capacidade. E tem uma razão para não estarem cuidando direitinho da reciclagem. Uma razão econômica, para variar. A prefeitura pode estar comprometida com o aproveitamento para esses quatro programas que eu mencionei, mas de repente não chega o lixo. Porque é muito mais em conta, às vezes, contratar um caçambeiro fajuto que aceita descartar o entulho, geralmente nos córregos, rios, nas áreas públicas. Aquilo que é uma obrigação do gerador (de entulho) e não da prefeitura, mas acaba virando problema só da prefeitura, que tem que recolher isso. Tem um esquema que eu montei que também evita isso. Há dois momentos para que aconteça a construção de um prédio, de um edifício ou uma casa. No momento do licenciamento da obra e o do habite-se. Por ocasião do licenciamento, deve ser cobrada taxa de reciclagem e transporte do entulho, ou a obra não será autorizada. A lei obriga o gerador a se preocupar com o entulho, que ele coloque a caçamba na porta da construção, contrate o caçambeiro. Neste caso, o gerador entregaria ao caçambeiro um vale para que ele receba o pagamento lá na central de reciclagem. Quando chegar no fim da obra o gerador vai receber o habite-se, que fica condicionado à entrega do lixo. Não tem necessidade de fiscalização, não criei custo nenhum adicional para o gerador, que a lei não estabelecia, não criei nenhum custo para o transportador, ele vai conseguir receber, só que não recebe direto da mão do gerador, vai receber da central.
ComCiência – Mas muitas obras, como reformas de imóveis, não têm necessidade de licenciamento... Calderoni – Setenta por cento das obras são pequenas, não têm licenças, são clandestinas. Trinta porcento são obras maiores e licenciadas, que geram 80 a 90% do total do resíduo, são as grandes geradoras. As pequenas são em grande número, mas o total de resíduo gerado é pequeno em relação ao conjunto da cidade.
ComCiência – Pensamos em diminuir a quantidade de lixo, mas vivemos numa sociedade que é totalmente consumista e cada vez mais somos motivados a consumir. Como é possível continuar consumindo, para que os países continuem crescendo, mas, ao mesmo tempo, de uma forma sustentável em relação à geração de lixo? Calderoni – Reciclando.
ComCiência – Não está faltando que os governos pressionem a indústria a se responsabilizar pela geração e destino dos produtos que geram, que amanhã se transformarão em resíduos? Por exemplo, a Intel resolveu suspender a produção de chips com chumbo, e outras empresas, como a Natura, produzem produtos com refil. Mas o fazem por iniciativa própria, para criar um diferencial no mercado, agregar valor à sua imagem em prol do meio ambiente, mas não há legislação que as obriguem a tomar providências como estas. Calderoni – De fato, legislação não tem aquelas metas e ferramentas de comprovação de que a meta foi alcançada, de que eu falei, então é vazio. Tem que ter um Ministério do Lixo. Ele seria o único ministério da República que não teria custos, seria sem dotação orçamentária. Ao contrário, geraria recursos para o país. Porque o lixo é o único produto da economia com preço negativo, temos que pagar para nos livrarmos dele. Por exemplo, estou gastando R$ 8 milhões em uma cidade de 200 mil habitantes para enterrar o lixo; se R$ 15 milhões é o valor econômico desse lixo, estou economizando 8 mais 15 milhões, são R$ 26 milhões de ganho. Fora a geração de emprego, equilíbrio ambiental, saúde pública, ia evitar muito transporte no meio da cidade, poluição que se gera, acidentes...
ComCiência – E o que falta para que o lixo se torne uma questão prioritária? Calderoni – Falta o pessoal entender que lixo não é apenas resíduo. Esse nome, resíduo, ilude muito. É preciso entender que lixo é um produto de olhar equivocado, que são materiais preciosos, que são, na verdade. matérias-primas de alto valor econômico. Toda a produção mundial, nacional, regional, toda produção da humanidade é produção de lixo, porque em menos de 1% da sua vida, esses materiais ficam como produtos de consumo. Imagine, por exemplo, uma roupa, um televisor, uma garrafa, um pedaço de papel, quanto tempo da sua vida ele passa na superfície como produto de uso? Estamos produzindo lixo o tempo todo. Não tem nada que estejamos usando, na sua frente agora, que, rapidamente, não vá virar lixo. Quando entendermos um pouco isso, e o imenso valor econômico do lixo, poderemos chegar à conclusão inicial que eu cheguei no meu livro (Os bilhões perdidos no lixo), de conseguir US$ 10 bilhões por ano no Brasil, todos os anos, com a reciclagem. Essa quantia é suficiente para dar uma cesta básica todos os meses para todas as famílias pobres do Brasil. Então, acabaríamos com o problema da fome já. E quando acaba o problema da fome, diminui o problema na saúde, na educação, na segurança. Esse Ministério do Lixo, Ministério dos Resíduos Sólidos, seria fundamental na saúde pública, na geração de emprego, na geração de renda, para o equilíbrio ambiental. Faria uma revolução no país e seria um ministério sem custo.
ComCiência – Como tem evoluído a reciclagem do lixo na última década? Calderoni – Aumentou muito a consciência, a legislação, houve muito mais ação do ministério público, se tornou agora uma questão social. Estão se esgotando aqueles aterros que as cidades tinham para fazer a disposição do lixo próximo, então as prefeituras estão sendo obrigadas a adotar a reciclagem. Elas não vão poder manter o velho modelo, mesmo que queiram, mesmo que achem que é melhor enterrar do que reciclar. Agora não há mais condições econômicas, porque os municípios estão ilhados entre o mar e a montanha. Estamos diante de uma nova era na área de resíduos.
ComCiência – O senhor está otimista em relação ao futuro do tratamento do lixo? Calderoni – Não porque as pessoas queiram, mas porque o valor econômico é grande. Quanto tem questão econômica, o olho do empresário rapidamente cresce. E também eu vejo a impossibilidade econômica de manter o velho modelo, o que vai nos levar nesse avanço que nós tanto desejamos. E é o nosso trabalho. Também acredito muito no nosso trabalho, da Brasil Ambiente, estamos difundindo essa idéia pelo Brasil todo, tanto na legislação quanto na modelagem econômica, na montagem das PPPs, na mobilização do capital nacional e internacional, com grandes projetos de investimento para o país e para os empresários.
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