O primeiro documento da proteção internacional dos direitos humanos é a Carta de São Francisco, de 1945, documento que fundou a Organização das Nações Unidas (ONU). Logo no preâmbulo dessa Carta, afirma-se o horror que as duas guerras mundiais causaram, bem como a necessidade de uma reafirmação dos direitos humanos:
Nós, os Povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas...
A Carta de São Francisco (ou Carta da ONU), juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Sociais Econômicos e Culturais, de 1966, formam a Carta de Direitos Humanos da ONU.
Importante chamar atenção para o fato de que A Carta de São Francisco concretiza a criação da norma proibitiva da guerra. Durante muito tempo, a guerra foi considerada como forma jurídica e lícita para impor o direito. A Carta da ONU coloca a guerra como instrumento não-jurídico; fora, portanto, do rol dos instrumentos legais para decisão de conflitos.
A colocação da guerra na ilegalidade é o ato inaugural de uma nova fase na história do direito internacional público, que tem como idéia-guia a paz e o reconhecimento da dignidade inerente a todo ser humano e a não-violência como princípio organizacional e diretivo do direito internacional dos direitos humanos. Para marcar a inauguração dessa nova fase, foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Esse documento jurídico deve ser visto na sua mais ampla dimensão: a cosmopolita. Dito de outro modo, o adjetivo “universal” situa a Declaração na dimensão “dos cidadãos do mundo em uma hipotética República Universal” – como afirma Kant – que amplia e complementa a dimensão internacional.
A não-violência como princípio organizacional e diretivo da elaboração de normas do direito internacional dos direitos humanos evidencia-se em tratados como a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1993) e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1985). Além disso, a não-violência é uma das duas formas de ação facultadas aos seres humanos; a outra é a violência.
Importa aqui dar uma definição básica de violência: ação intencional de produzir dano. A contrario sensu, define-se não-violência como “ação intencional de não produzir dano”. O que produz a ação não-violenta, não se sabe de antemão; o que, sim, sabemos é que ela não produzirá um dano. O que já é, per se, um benefício.
Ampliando nossa compreensão do papel do princípio da não-violência no âmbito da proteção dos direitos humanos, sugiro que devemos lançar-nos na nossa vida cotidiana na aventura de sermos guerreiros da não-violência. Essa aventura de todo pacífica esclarece-nos – de modo empírico – a importância de atentarmos para nossas ações cotidianas na tarefa planetária de proteção da dignidade da pessoa humana. Esse exercício de atenção é de fundamental importância, pois proteger a dignidade humana é tarefa que exige constante reinvenção. Afinal, como afirma o poeta:
VIRTUDES
I
A dignidade
- justo é que se diga -
não é peça de museu
tampouco de mobiliário
renova-se
- justo seja que fosse dito -
pelas bordas do tempo
sem perder a fragilidade
(Carlos Vogt)
Guilherme Assis de Almeida é professor do Departamento de Teoria Geral e Filosofia do Direito da USP e assessor de gabinete da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.
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