Neste espaço defendo a ideia de que uma nova história do cinema está
sendo escrita no Brasil, a história do cinema feito por mulheres. Ora, alguns
podem perguntar, mas ela já não está contemplada na história do cinema de
maneira geral? Pesquisas voltadas à produção feminina têm demonstrado que não.
Afinal, há lacunas grandes e cada vez percebem-se mais diretoras e filmes que
foram ignorados ou receberam pouca atenção da história e dos estudos de cinema.
A própria disciplina “história” desenvolveu um campo de estudo
específico, a “história das mulheres”, justamente por entender que metade da
humanidade estava excluída da história tradicional, que elegeu o homem como
sujeito universal. Nesse sentido, pretendo fazer uma singela reverência a dois
marcos da pesquisa no Brasil que representam passos decisivos na construção
dessa nova história; marcos que se tornaram faróis para pesquisas atuais na
área. Na década de 1980 duas publicações marcaram a história do cinema feito
por mulheres no Brasil. Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira
publicaram As
musas da matinê, em 1982, primeira pesquisa sobre a participação feminina na
direção de filmes no Brasil. Nesse livro as autoras discutem a representação
das personagens femininas no cinema brasileiro. Partem da constatação de que,
ao longo da história do cinema, as mulheres assumiram pouco a direção e o
resultado é que na tela quase sempre eram vistas como apêndice dos homens e
suas funções dramáticas estavam na dependência deles. Além disso, as personagens eram subjugadas sob estereótipos que as
aprisionavam ao lugar de mães e donas de casa, valorizadas pela juventude,
beleza e habilidade de sedução, que deveriam ser eternas. As personagens que
fugiam a esse quadro, como as solteiras, as intelectuais e as que têm alguma
profissão, segundo as autoras, “ou são feias e/ou más, ou abandonam suas
convicções em troca do amor de um homem” (1982, p. 23). O trabalho original de Munerato e Oliveira mapeou as diretoras
brasileiras de longas metragens de ficção até 1980, chegando ao número de 14
cineastas e 21 filmes, dos quais elas conseguiram assistir a 16, que foram
analisados no livro. Do primeiro desses filmes, O mistério do dominó, de Cléo de Verberena, de 1930, já não há cópias, assim como
do filme de Carmen Santos, Inconfidência
mineira (1948). Entre outras pioneiras que têm filmes
analisados no livro podemos citar Gilda de Abreu, Maria Basaglia, Carla Civelli
e Vanja Orico. Uma curiosidade que provavelmente não é coincidência e que
merece ser destacada é o fato de que na década de 1960, justo quando o Cinema
Novo alça fama internacional, praticamente não há nenhuma mulher na direção de
longas,¹ o que reforça a ideia de que quando o cinema pode ser um caminho
de prestígio e rentável sobra menos espaço de destaque para as mulheres.² A segunda publicação a que me refiro foi organizada por Heloísa Buarque
de Hollanda, em 1989. Em Quase
Catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988) é feito um inventário de todos os filmes
dirigidos por mulheres no país até 1988, independente da duração, ou se é
ficção, documentário ou experimental. Nas poucas páginas da introdução do livro
assinada pelas coordenadoras da pesquisa, Ana Pessoa e Ana Rita Mendonça, somos
absorvidos pelo contexto que resultou nos significativos números que o
mapeamento revela – 195 diretoras e cerca de 500 filmes dirigidos por elas no
período abordado. Destacamos alguns desses aspectos que contextualizam o período trazidos
pelas coordenadoras. Nos anos 1960 cineclubes, revistas especializadas,
festivais de amadores e os primeiros cursos de cinema na UFF, UnB e USP
estimularam a produção de curtas metragens e possibilitaram a estreia de
algumas diretoras. A década de 1970 é onde se registram mais filmes dirigidos
por mulheres, provavelmente em consequência da decisão da ONU de promover a
Conferência do Ano Internacional da Mulher, realizada no México em 1975. Esse
fato incentivou a discussão das pautas feministas nos países do Terceiro Mundo
– no Brasil, foram organizados seminários e debates que discutiam as
preocupações das mulheres, o que refletiu também no cinema. Foi criado nesse
ano o Centro da Mulher Brasileira, cujos estudos e pesquisas que realizava
sobre a condição da mulher alimentavam publicações em jornais e revistas. E
ainda em 1975 um grupo de mulheres cineastas organizou na Cinemateca do Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro o seminário “Mulher no cinema brasileiro – de
personagem à cineasta”, com uma série de debates paralelos a uma mostra
retrospectiva. De acordo com as coordenadoras da pesquisa, a década de 1980 foi
marcada pela disseminação do vídeo: “Econômica e tecnicamente mais acessível do
que o cinema, o novo suporte abriu um amplo campo de atuação para inúmeras
realizadoras cujos trabalhos são periodicamente apresentados em mostras e
festivais”. A cineasta Rose Lacreta coordenou a seção Olhar Feminino,
inaugurada em 1984 dentro do FestRio. Por conta da Conferência Mundial de
Encerramento da Década da Mulher, na ONU, foi feita uma seleção de curtas com
direção feminina no Brasil, dando origem ao Coletivo de Mulheres de Cinema e
Vídeo do Rio de Janeiro. Em 1986, o Coletivo inaugurou um fórum anual de
debates sobre as questões da mulher no cinema e no vídeo no Festival de Cinema
Brasileiro de Gramado. Assim, com esse breve mas fundamental panorama, que registra a memória
de uma época, Quase
Catálogo apresenta os cerca de 500 filmes dirigidos por
mulheres até 1988, informando dados da equipe técnica, sinopse, bitola do
filme, duração, se é em cor ou em preto e branco, cidade da produção e ano,
tendo como fonte quase sempre as próprias diretoras. A verdade é que tanto de uma publicação quanto da outra ainda podem-se
extrair inúmeras informações que estão apenas implícitas. A importância desses
livros parece aumentar com o passar dos anos. Por conta deles estão preservados
nomes de diretoras que, muito possivelmente, estariam perdidos por terem feito
um só filme ou por terem parado de dirigir há muitos anos. E embora não se
tenha acesso à maioria desses filmes, por não terem sido telecinados, o que
dificulta seu visionamento, ou por estarem se deteriorando em depósitos não
apropriados, já é inestimável a riqueza dos dados resguardados por essas obras. O trabalho de registro dessas obras foi exaustivo e já trazia nítida a
consciência da urgência de sua preservação, sobretudo de uma parte da história
do cinema que não parecia interessar aos historiadores, a do cinema feito por
mulheres. Não nos caberá aqui enumerar ou destacar diretoras e filmes que estão
vivos graças à publicação dessas pesquisas. Eles são muitos e sua importância é
crescente, assim como é também o interesse por novas pesquisas na área. Nos últimos anos, é notório o interesse pelo cinema de autoria feminina
em pesquisas acadêmicas, seja como trabalho de conclusão de curso (TCC) ou em
níveis de mestrado e doutorado. E, não raro, a referência a essas duas fontes é
um ponto de partida. Em 2015, foi lançado o Catálogo Documentário Brasileiro
(documentariobrasileiro.org), um banco de dados acerca do documentário
nacional. Nele, além de estar incorporada toda a produção documentária do Quase Catálogo, estão reunidos documentários brasileiros desde o início do
cinema até os dias de hoje. O banco de dados foi criado com a intenção de ser
uma ferramenta para auxiliar novas pesquisas. Os cerca de 4.500 documentários
registrados atualmente podem ter seus campos filtrados e, em dois ou três
cliques, obtém-se uma lista, por exemplo, de filmes realizados por mulheres em
determinada década, seja em longa, média ou curta, além de outras variáveis. Não é por acaso que o cinema feito por mulheres tem atraído tanto o
interesse de jovens pesquisadores (e não tão jovens), afinal em pleno século
XXI não é fácil entender a razão da visibilidade turva sobre a produção
feminina, para além de características inovadoras, criativas ou transgressoras
que muitas obras têm. A história do cinema brasileiro até aqui foi, no mínimo,
injusta com filmes como A
entrevista (Helena Solberg, 1966), Os homens que eu tive (Tereza
Trautman, 1973) eFeminino plural (Vera
de Figueiredo, 1976), para não citar dezenas mais. Não nos cabe aqui discorrer
sobre a importância de cada um desses filmes e sobre as lacunas que deixaram na
história. Claro que pode-se dizer que outras “categorias” de cineastas também
tiveram pouca visibilidade, como os amadores ou os que usavam equipamento não
profissional, os homossexuais, os moradores distantes do centro cultural do
país, os negros. Mas aqui o que nos motiva são preocupações teóricas não
androcêntricas. Igualmente não se trata de atribuir valor apenas à direção. Este é um
caminho, há outros tantos. Muitos trabalhos de pesquisa estão sendo
desenvolvidos nos últimos anos, o que tem feito emergir muitas mulheres do
cinema, não somente diretoras. Essas pesquisas têm iluminado suas obras e
propiciado relações e associações pouco exploradas. O terreno é vastíssimo, há
muito a ser ocupado, a ser compreendido, a ser cutucado. A verdade é que há
toda uma trajetória a ser construída, se considerarmos que a história do cinema
contemplou praticamente apenas uma metade, a masculina. Karla Holanda é professora do curso de cinema e audiovisual e do
Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade
Federal de Juiz de Fora. É também documentarista, tendo dirigido, dentre
outros, Kátia (2012). Para mais: https://ufjf-br.academia.edu/karlaholanda ¹ Zélia Costa consta como diretora de As testemunhas não condenam (1962), mas desconfia-se do uso de seu nome como
pseudônimo de alguém e o filme nunca foi encontrado. ² É justamente esse o argumento do documentário Women who run Hollywood (2016), das
francesas Clara Kuperberg e Julia Kuperberger. Nesse filme, as cineastas
demonstram que nos primeiros anos de Hollywood, a metade dos filmes eram de
responsabilidade de mulheres. Só no final da década de 1920 Hollywood entendeu
que o cinema poderia ser uma atividade extremamente lucrativa e, em
consequência, os homens disputaram mais esse espaço (Miranda, 2016).
Referências:
Documentário e fronteiras. Catálogo
do Documentário Brasileiro. Disponível
em: <http://documentariobrasileiro.org>. Acesso em 01 nov. 2016. Hollanda, H. B. de (org). Quase
Catálogo 1: realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988). Rio de Janeiro: CIEC/UFRJ;
MIS/Secretaria do Estado de Cultura; Funarj, 1989. Munerato, E.; Oliveira,
Maria H. D.. As
musas da matinê. Rio de Janeiro: Edições RioArte, 1982.
Miranda, A. “Até 1925, mulheres assinavam metade dos filmes
americanos; hoje, são apenas 8% de blockbusters”. O Globo, Cultura, 19 set. 2016. Disponível em <http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/ate-1925-mulheres-assinavam-metade-dos-filmes-americanos-hoje-sao-apenas-8-de-blockbusters-20135258>.
Acesso em: 01 de novembro de 2016
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