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Entrevistas
Fernando Galembeck
O recém nomeado diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia fala sobre os desafios acadêmicos e científicos de atuar e, ao mesmo tempo, testemunhar as inovações provocadas pela nanociência e seu potencial
Andreia Hisi
10/07/2011

A nanotecnologia está modificando a forma como vemos o mundo e interagimos com ele. O controle da matéria em escalas cada vez menores leva à miniaturização de diversos dispositivos, como computadores e celulares. Entretando, avanços das últimas décadas mostraram que o controle alcançado permite ir muito além. Em um mundo difícil de imaginar, e até há pouco tempo inacessível, novos fenômenos inesperados vêm sendo descobertos, alterando fundamentalmente como entendemos a natureza. O químico Fernando Galembeck, especialista em nanotecnologia, com 18 patentes depositadas e inúmeras premiações, assumiu em junho a direção do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano). Ele fala, nesta entrevista, de suas perspectivas sobre o desenvolvimento dessa área e apresenta “alguns caminhos para se pensar sobre essa questão”.

ComCiência – O senhor ganhou diversos prêmios, inclusive o que foi recentemente concedido pela Sociedade Americana de Eletrostática. Neste ano, o senhor vai se licenciar da Unicamp para assumir a direção do Laboratório Nacional de Nanotecnologia. Fale um pouco dessa sua premiação, dessa mudança institucional e de seus interesses hoje como pesquisador.

Fernando Galembeck – Os prêmios que recebi me mostram que várias pessoas dão importância aos resultados do meu trabalho. O President's Appreciation Award que recebi da Electrostatic Society of America é muito especial, porque vem de pessoas que eu só conhecia da literatura e também só me conheciam da literatura. Fui convidado a apresentar uma "Keynote Lecture" no congresso anual da sociedade e por ela fui premiado. Só ciência e tecnologia, nada de política ou de "igrejinhas". A mudança para o LNNano é uma grande e inesperada oportunidade, mas também atende à minha necessidade de sobrevivência científica, uma vez que estou chegando à aposentadoria compulsória – “expulsória”, como dizia Crodowaldo Pavan –, que fatalmente restringirá minhas atividades na Unicamp. Meus interesses em pesquisa hoje são bastante amplos, indo do aproveitamento da biomassa –há mais de dez anos que trabalho com borracha natural – aos mecanismos de eletrização de sólidos e líquidos, passando por vários temas de colóides e superfícies, materiais e nanotecnologia.

ComCiência – Qual a sua opinião sobre a importância de projetos na área de química que são desafiadores e, de certa forma, arriscados, mas que podem resultar em avanços fundamentais para o desenvolvimento do país?

Galembeck – Projetos pouco desafiadores e pouco arriscados são mesmice. Não vejo muito interesse em fazer pesquisa para descobrir mais do mesmo. Por outro lado, não devo exagerar o impacto de grandes descobertas científicas para o desenvolvimento do país: elas podem levar muito tempo até gerarem produtos que tenham valor econômico ou mesmo estratégico. Algumas grandes descobertas científicas feitas em um país acabaram beneficiando muito outros países. Por exemplo, o transistor estava na base do grande surto de crescimento da indústria japonesa de eletrônica. Por isso, creio que, tanto ou mais do que focalizarmos grandes descobertas, devemos focalizar o desenvolvimento e exploração de grandes descobertas, onde quer que elas sejam feitas.

ComCiência – A compreensão de assuntos multidisciplinares, como a química, física e a ciência de materiais, é hoje em dia fundamental para o cientista? Como isso influencia a nossa sociedade?

Galembeck – Há muito tempo que avanços muito importantes dependem de aportes feitos por várias disciplinas ao mesmo tempo. Trabalhar dentro de uma disciplina sem considerar o que se passa nas outras e as contribuições que estas podem fazer apequena a pesquisa e os seus resultados. A sociedade não está muito interessada em saber se uma nova descoberta é "química", "bioquímica" ou "biologia". As pessoas querem os benefícios que a descoberta cria para seu bem-estar. Algumas pessoas também querem o enriquecimento cultural que a descoberta traz, contribuindo para sua visão de mundo.

ComCiência – E em relação à formação de jovens cientistas, que papel tem a multidisciplinaridade? Se o senhor estivesse agora cursando a graduação em química, que caminhos veria como promissores?

Galembeck – Um jovem cientista de visão estreita e que não se enriqueça culturalmente está fadado à obsolescência precoce, ou a tornar-se um simples seguidor de tendências. A riqueza da cultura científica de um pesquisador tem um papel muito grande em permitir-lhe inserir seu trabalho em contextos amplos e ricos, aumentando seu significado. Se eu estivesse cursando química hoje, trataria de aprender o fundamental: a linguagem da química – substâncias, fórmulas, equações –, suas conexões com o mundo, seus riscos e suas possibilidades. Minha disciplina do coração seria a físico-química clássica. Dessa forma, eu teria uma base sólida para navegar em oceanos desconhecidos, em busca de uma sempre melhor compreensão do mundo material e de muitas possibilidades de criação de produtos e processos.

ComCiência – Como o senhor vê atualmente a formação dos estudantes nos departamentos de química do país? E qual a sua visão da universidade brasileira como um todo?

Galembeck – Sou muito crítico da formação atual dos estudantes, e não apenas dos de química. Algumas ideias que prevalecem na educação brasileira prejudicam a formação dos estudantes, no Brasil. Em primeiro lugar, muitos e muitos alunos aprendem, antes e depois de entrarem na universidade, que não precisam dominar conteúdos e que vão conseguir raciocinar sobre coisas que desconhecem. Esse aprendizado tem consequências trágicas. Muitos confundem "memória" com "decoreba" e terminam por não terem um mínimo domínio dos conteúdos necessários para poderem construir seus discursos. Um fato que choca qualquer observador de aulas, seminários, congressos e defesas de tese, no Brasil, é a ausência de perguntas e questionamentos que evidenciem a existência de mentes inquietas e de um espírito de crítica – que é um requisito essencial do método científico. Durante muito tempo, eu pensei que isso se devia à timidez ou à polidez dos alunos e professores brasileiros. Hoje, estou seguro de que uma causa importante da falta de questões é a simples ignorância. Tenho sempre procurado contar para os estudantes que, para um grande poeta como Rilke, "talvez criar não seja nada mais do que se lembrar profundamente", e especialistas em criatividade, como Runco e Pritzke, notam que a criatividade depende muito do conhecimento. Em inglês, quem aprende "by heart" realmente aprende. Em francês, aprender "par coeur" também é digno. Na nossa língua, a palavra que tem uma etimologia correspondente é "decorar", e ela tem entre nós um sentido pejorativo. Pior para nós! Precisamos aprender com Comte-Sponville: "O espírito é memória, e talvez seja apenas isto... Mas o que seria uma invenção sem memória? E uma decisão sem memória?" Concluo: um ensino sem memória é uma tragédia. Mais especificamente com relação ao ensino de química: observo, em muitos estudantes, uma surpreendente falta de conhecimento da linguagem da química, dos personagens da química –as substâncias, seus nomes e fórmulas, solubilidades, volatilidades, toxicidades, riscos e impactos ambientais, fontes, importância estratégica, preços, tecnologias de produção e de uso – e dos acontecimentos da química –as reações químicas, a emergência e o declínio de substâncias e tecnologias, as funções exercidas pelas substâncias químicas na nossa vida. Obviamente, tudo isso está ligado à desvalorização da memória entre estudantes e professores. Por outro lado, persiste uma difusa ideologia reducionista, positivista, segundo a qual a química é redutível à física. Essa noção, como a maior parte dos reducionismos científicos, tem sido amplamente desmentida nas últimas décadas – mas continua sendo propagada entre nossos estudantes. Muitos professores e autoridades científicas e pedagógicas brasileiras exercem um papel extremamente danoso ao perpetuarem entre nós essas noções completamente superadas.

ComCiência – Como o senhor acha que poderiam ocorrer, de forma mais efetiva, as parcerias entre o meio acadêmico e o setor produtivo?

Galembeck – É simples: basta colocar pessoas de boa vontade e poder de decisão em contato, definir objetivos convergentes, cultivar o respeito mútuo e fazer um esforço para compreender o contexto do outro, seus interesses, possibilidades e limitações. Querer construir parcerias alimentadas apenas pelo talão de cheques, como pretendem algumas políticas públicas, é contraproducente.

ComCiência – O senhor poderia comentar, a partir de sua perspectiva, a influência e importância da redução do tamanho dos materiais e como esse controle pode nos permitir construir novos dispositivos?

Galembeck – No início do século XIX, Faraday (químico e físico inglês, que apresentou importantes contribuições ao eletromagnetismo) percebeu que o ouro, reduzido a partículas muito pequenas ou filmes muito finos, podia tornar-se vermelho, azul ou verde. No início do século XX, W. Ostwald (químico alemão, considerado o pai da físico-química) mostrou que as propriedades de sistemas cujas partículas são inferiores a 100 nanômetros diferem em muito das de sistemas formados por partículas mais grosseiras. Ele chamou os sistemas que contêm essas estruturas de "colóides". É muito interessante ver o quanto a definição dele se aproxima de definições respeitáveis de nanotecnologia, como, por exemplo, a do USPTO (United States Patent and Trademark Office, agência de patentes dos Estados Unidos). Reduzir tamanhos é essencial para a miniaturização de máquinas, instrumentos e dispositivos. Por isso, a microeletrônica tornou-se, já há mais de uma década, "nanoeletrônica". Por outro lado, ao reduzir tamanhos, podemos encontrar mudanças drásticas nas propriedades de sistemas materiais e muitas delas podem ser exploradas com sucesso. Uma outra perspectiva é a seguinte: ao reduzir tamanhos, aumentamos as superfícies e interfaces entre os componentes de um material, criando novas propriedades. Uma emulsão de partículas de óleo micrométricas, em água, é leitosa, opaca. Uma emulsão de partículas de óleo nanométricas, em água, é translúcida ou transparente, dependendo do tamanho das partículas.

ComCiência – Nos últimos dez anos, a nanotecnologia foi utilizada para a produção de sensores, células solares, transistores e memórias. Quais deles o senhor tem expectativas elevadas de que amadureçam e tornem-se dispositivos reais e comuns?

Galembeck – Células solares são bem reais e podem ser vistas, por exemplo, nas margens de algumas rodovias brasileiras, gerando eletricidade para os equipamentos de segurança das rodovias. Circuitos de muitos e muitos transistores com estruturas nanométricas estão nos nossos bolsos e lares. Já convivemos com os produtos da nanotecnologia. Os novos autos elétricos, que já estão à venda no mercado brasileiro, incorporam muitos produtos nanotecnológicos, nas baterias, nos pneus e na carroceria.

ComCiência – Em relação especificamente a nanofios, temos visto inúmeras pesquisas de elementos quasi-unidimensionais. O quão perto de um nanofio verdadeiramente unidimensional é possível chegar, uma vez que o átomo ainda tem três dimensões?

Galembeck – A geometria euclidiana tem abstrações excessivamente radicais para ser realmente útil no exame das estruturas materiais. Por isso, não podemos ser rigorosos ao transferir suas noções para a discussão dos materiais. Nestes, a geometria fractal (que trata de formas geométricas fragmentadas, as quais podem ser separadas em partes que contém, aproximadamente, uma cópia de tamanho reduzido da forma original) é mais apropriada. No contexto de nanotecnologia, um nanofio é uma sucessão de átomos com conectividade dois, isto é, cada átomo só está em contacto ou ligação com dois outros.

ComCiência – Qual é a sua visão sobre o desenvolvimento em nanotecnologia nos últimos dez anos, tendo visto o seu próprio trabalho e suas contribuições? Qual é a perspectiva de desenvolvimento nesta área para a próxima década?

Galembeck – Os produtos estão no mercado. Em vários casos, são inovações radicais; em muitos outros, são incrementais – e estes são a maioria. Ninguém quer ter um nanoautomóvel, mas os novos automóveis e os "autos-conceito" atuais incorporam uma enorme quantidade de nanotecnologia. O mesmo se passa com roupas, casas, cosméticos, medicamentos e tudo o que usamos a cada dia. Hoje, está claro que a noção, muito difundida na virada do século, de que nanotecnologia seria sinônimo de manipulação da matéria com ferramentas nanométricas, é errada. Poderia ser correta se o número de Avogadro não fosse tão grande, mas os produtos que vemos surgir a cada momento são, na esmagadora maioria, o resultado de auto-organização e de síntese química. Houve muitos acertos e muitos erros. Alguns personagens tornaram-se muito visíveis e importantes e, poucos anos depois, já eram irrelevantes. Hoje, fico admirado, a cada dia, com alguma notícia que mostra uma nova possibilidade, original e com grande potencial de impacto.