10/07/2011
A nanotecnologia está modificando a forma
como vemos o mundo e interagimos com ele. O controle da matéria em escalas cada
vez menores leva à miniaturização de diversos dispositivos, como computadores e
celulares. Entretando,
avanços das últimas décadas mostraram que o controle alcançado permite ir muito
além. Em um mundo difícil de imaginar, e até há pouco tempo inacessível, novos
fenômenos inesperados vêm sendo descobertos, alterando fundamentalmente como
entendemos a natureza. O
químico Fernando Galembeck, especialista em nanotecnologia, com 18 patentes
depositadas e inúmeras premiações, assumiu em junho a direção do Laboratório
Nacional de Nanotecnologia (LNNano). Ele fala, nesta entrevista, de
suas perspectivas sobre o desenvolvimento dessa área e apresenta “alguns caminhos para se pensar sobre
essa questão”.
ComCiência
– O senhor ganhou diversos prêmios, inclusive
o que foi recentemente concedido pela Sociedade Americana de Eletrostática.
Neste ano, o senhor vai se licenciar da Unicamp para assumir a direção do
Laboratório Nacional de Nanotecnologia. Fale um pouco dessa sua premiação,
dessa mudança institucional e de seus interesses hoje como pesquisador.
Fernando Galembeck – Os prêmios que recebi me mostram que
várias pessoas dão importância aos resultados do meu trabalho. O President's
Appreciation Award que recebi da Electrostatic Society of America é muito
especial, porque vem de pessoas que eu só conhecia da literatura e também só me
conheciam da literatura. Fui convidado a apresentar uma "Keynote Lecture"
no congresso anual da sociedade e por ela fui premiado. Só ciência e
tecnologia, nada de política ou de "igrejinhas". A mudança para o
LNNano é uma grande e inesperada oportunidade, mas também atende à minha
necessidade de sobrevivência científica, uma vez que estou chegando à
aposentadoria compulsória – “expulsória”, como dizia Crodowaldo Pavan –, que
fatalmente restringirá minhas atividades na Unicamp. Meus interesses em
pesquisa hoje são bastante amplos, indo do aproveitamento da biomassa –há mais
de dez anos que trabalho com borracha natural – aos mecanismos de eletrização
de sólidos e líquidos, passando por vários temas de colóides e superfícies,
materiais e nanotecnologia.
ComCiência
– Qual a sua opinião sobre a importância de
projetos na área de química que são desafiadores e, de certa forma, arriscados,
mas que podem resultar em avanços fundamentais para o desenvolvimento do país?
Galembeck – Projetos pouco desafiadores e pouco
arriscados são mesmice. Não vejo muito interesse em fazer pesquisa para
descobrir mais do mesmo. Por outro lado, não devo exagerar o impacto de grandes
descobertas científicas para o desenvolvimento do país: elas podem levar muito
tempo até gerarem produtos que tenham valor econômico ou mesmo estratégico.
Algumas grandes descobertas científicas feitas em um país acabaram beneficiando
muito outros países. Por exemplo, o transistor estava na base do grande surto
de crescimento da indústria japonesa de eletrônica. Por isso, creio que, tanto
ou mais do que focalizarmos grandes descobertas, devemos focalizar o
desenvolvimento e exploração de grandes descobertas, onde quer que elas sejam
feitas.
ComCiência
– A compreensão de assuntos
multidisciplinares, como a química, física e a ciência de materiais, é hoje em
dia fundamental para o cientista? Como isso influencia a nossa sociedade?
Galembeck – Há muito tempo que avanços muito
importantes dependem de aportes feitos por várias disciplinas ao mesmo tempo.
Trabalhar dentro de uma disciplina sem considerar o que se passa nas outras e as
contribuições que estas podem fazer apequena a pesquisa e os seus resultados. A
sociedade não está muito interessada em saber se uma nova descoberta é
"química", "bioquímica" ou "biologia". As pessoas
querem os benefícios que a descoberta cria para seu bem-estar. Algumas pessoas
também querem o enriquecimento cultural que a descoberta traz, contribuindo
para sua visão de mundo.
ComCiência
– E em relação à formação de jovens
cientistas, que papel tem a multidisciplinaridade? Se o senhor estivesse agora
cursando a graduação em química, que caminhos veria como promissores?
Galembeck – Um jovem cientista de visão estreita e que
não se enriqueça culturalmente está fadado à obsolescência precoce, ou a
tornar-se um simples seguidor de tendências. A riqueza da cultura científica de
um pesquisador tem um papel muito grande em permitir-lhe inserir seu trabalho
em contextos amplos e ricos, aumentando seu significado. Se eu estivesse
cursando química hoje, trataria de aprender o fundamental: a linguagem da
química – substâncias, fórmulas, equações –, suas conexões com o mundo, seus
riscos e suas possibilidades. Minha disciplina do coração seria a
físico-química clássica. Dessa forma, eu teria uma base sólida para navegar em
oceanos desconhecidos, em busca de uma sempre melhor compreensão do mundo
material e de muitas possibilidades de criação de produtos e processos.
ComCiência
– Como o senhor vê atualmente a formação dos
estudantes nos departamentos de química do país? E qual a sua visão da
universidade brasileira como um todo?
Galembeck – Sou muito crítico da formação atual dos
estudantes, e não apenas dos de química. Algumas ideias que prevalecem na
educação brasileira prejudicam a formação dos estudantes, no Brasil. Em
primeiro lugar, muitos e muitos alunos aprendem, antes e depois de entrarem na
universidade, que não precisam dominar conteúdos e que vão conseguir raciocinar
sobre coisas que desconhecem. Esse aprendizado tem consequências trágicas.
Muitos confundem "memória" com "decoreba" e terminam por
não terem um mínimo domínio dos conteúdos necessários para poderem construir
seus discursos. Um fato que choca qualquer observador de aulas, seminários,
congressos e defesas de tese, no Brasil, é a ausência de perguntas e
questionamentos que evidenciem a existência de mentes inquietas e de um
espírito de crítica – que é um requisito essencial do método científico.
Durante muito tempo, eu pensei que isso se devia à timidez ou à polidez dos
alunos e professores brasileiros. Hoje, estou seguro de que uma causa importante
da falta de questões é a simples ignorância. Tenho sempre procurado contar para
os estudantes que, para um grande poeta como Rilke, "talvez criar não seja
nada mais do que se lembrar profundamente", e especialistas em
criatividade, como Runco e Pritzke, notam que a criatividade depende muito do
conhecimento. Em inglês, quem aprende "by
heart" realmente aprende. Em francês, aprender "par coeur" também é digno. Na nossa
língua, a palavra que tem uma etimologia correspondente é "decorar",
e ela tem entre nós um sentido pejorativo. Pior para nós! Precisamos aprender
com Comte-Sponville: "O espírito é memória, e talvez seja apenas isto... Mas
o que seria uma invenção sem memória? E uma decisão sem memória?" Concluo:
um ensino sem memória é uma tragédia. Mais especificamente com relação ao
ensino de química: observo, em muitos estudantes, uma surpreendente falta de
conhecimento da linguagem da química, dos personagens da química –as
substâncias, seus nomes e fórmulas, solubilidades, volatilidades, toxicidades,
riscos e impactos ambientais, fontes, importância estratégica, preços,
tecnologias de produção e de uso – e dos acontecimentos da química –as reações
químicas, a emergência e o declínio de substâncias e tecnologias, as funções
exercidas pelas substâncias químicas na nossa vida. Obviamente, tudo isso está
ligado à desvalorização da memória entre estudantes e professores. Por outro
lado, persiste uma difusa ideologia reducionista, positivista, segundo a qual a
química é redutível à física. Essa noção, como a maior parte dos reducionismos
científicos, tem sido amplamente desmentida nas últimas décadas – mas continua
sendo propagada entre nossos estudantes. Muitos professores e autoridades
científicas e pedagógicas brasileiras exercem um papel extremamente danoso ao
perpetuarem entre nós essas noções completamente superadas.
ComCiência
– Como o senhor acha que poderiam ocorrer, de
forma mais efetiva, as parcerias entre o meio acadêmico e o setor produtivo?
Galembeck – É simples: basta colocar pessoas de boa
vontade e poder de decisão em contato, definir objetivos convergentes, cultivar
o respeito mútuo e fazer um esforço para compreender o contexto do outro, seus
interesses, possibilidades e limitações. Querer construir parcerias alimentadas
apenas pelo talão de cheques, como pretendem algumas políticas públicas, é contraproducente.
ComCiência
– O senhor poderia comentar, a partir de sua
perspectiva, a influência e importância da redução do tamanho dos materiais e
como esse controle pode nos permitir construir novos dispositivos?
Galembeck – No início do século XIX, Faraday (químico
e físico inglês, que apresentou importantes contribuições ao eletromagnetismo) percebeu
que o ouro, reduzido a partículas muito pequenas ou filmes muito finos, podia
tornar-se vermelho, azul ou verde. No início do século XX, W. Ostwald (químico
alemão, considerado o pai da físico-química) mostrou que as propriedades de
sistemas cujas partículas são inferiores a 100 nanômetros diferem em muito das
de sistemas formados por partículas mais grosseiras. Ele chamou os sistemas que
contêm essas estruturas de "colóides". É muito interessante ver o
quanto a definição dele se aproxima de definições respeitáveis de
nanotecnologia, como, por exemplo, a do USPTO (United States Patent and
Trademark Office, agência de patentes dos Estados Unidos). Reduzir tamanhos é
essencial para a miniaturização de máquinas, instrumentos e dispositivos. Por
isso, a microeletrônica tornou-se, já há mais de uma década,
"nanoeletrônica". Por outro lado, ao reduzir tamanhos, podemos
encontrar mudanças drásticas nas propriedades de sistemas materiais e muitas delas
podem ser exploradas com sucesso. Uma outra perspectiva é a seguinte: ao
reduzir tamanhos, aumentamos as superfícies e interfaces entre os componentes
de um material, criando novas propriedades. Uma emulsão de partículas de óleo
micrométricas, em água, é leitosa, opaca. Uma emulsão de partículas de óleo
nanométricas, em água, é translúcida ou transparente, dependendo do tamanho das
partículas.
ComCiência
– Nos últimos dez anos, a nanotecnologia foi
utilizada para a produção de sensores, células solares, transistores e
memórias. Quais deles o senhor tem expectativas elevadas de que amadureçam e
tornem-se dispositivos reais e comuns?
Galembeck – Células solares são bem reais e podem ser
vistas, por exemplo, nas margens de algumas rodovias brasileiras, gerando
eletricidade para os equipamentos de segurança das rodovias. Circuitos de
muitos e muitos transistores com estruturas nanométricas estão nos nossos
bolsos e lares. Já convivemos com os produtos da nanotecnologia. Os novos autos
elétricos, que já estão à venda no mercado brasileiro, incorporam muitos
produtos nanotecnológicos, nas baterias, nos pneus e na carroceria.
ComCiência
– Em relação especificamente a nanofios,
temos visto inúmeras pesquisas de elementos quasi-unidimensionais. O quão perto
de um nanofio verdadeiramente unidimensional é possível chegar, uma vez que o
átomo ainda tem três dimensões?
Galembeck – A geometria euclidiana tem abstrações excessivamente
radicais para ser realmente útil no exame das estruturas materiais. Por isso,
não podemos ser rigorosos ao transferir suas noções para a discussão dos
materiais. Nestes, a geometria fractal (que trata de formas geométricas fragmentadas,
as quais podem ser separadas em partes que contém, aproximadamente, uma cópia
de tamanho reduzido da forma original) é mais apropriada. No contexto de nanotecnologia, um nanofio é uma
sucessão de átomos com conectividade dois, isto é, cada átomo só está em
contacto ou ligação com dois outros.
ComCiência
– Qual é a sua visão sobre o desenvolvimento
em nanotecnologia nos últimos dez anos, tendo visto o seu próprio trabalho e
suas contribuições? Qual é a perspectiva de desenvolvimento nesta área para a
próxima década?
Galembeck – Os produtos estão no mercado. Em vários
casos, são inovações radicais; em muitos outros, são incrementais – e estes são
a maioria. Ninguém quer ter um nanoautomóvel, mas os novos automóveis e os
"autos-conceito" atuais incorporam uma enorme quantidade de
nanotecnologia. O mesmo se passa com roupas, casas, cosméticos, medicamentos e
tudo o que usamos a cada dia. Hoje, está claro que a noção, muito difundida na
virada do século, de que nanotecnologia seria sinônimo de manipulação da
matéria com ferramentas nanométricas, é errada. Poderia ser correta se o número
de Avogadro não fosse tão grande, mas os produtos que vemos surgir a cada
momento são, na esmagadora maioria, o resultado de auto-organização e de
síntese química. Houve muitos acertos e muitos erros. Alguns personagens
tornaram-se muito visíveis e importantes e, poucos anos depois, já eram
irrelevantes. Hoje, fico admirado, a cada dia, com alguma notícia que mostra
uma nova possibilidade, original e com grande potencial de impacto.
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