REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Ortografia - Carlos Vogt
Reportagens
A transformação do mundo pela escrita
Maíra Valle e Alessandra Pancetti
Lusografia: reações à reforma revelam questões sociais
Nivaldo Amstalden
Polêmica em torno da mudança ortográfica não ocorre só no Brasil
Maria Carolina Ramos
A internet e a cultura escrita
Danilo Albergaria
Alfabetização indígena: a escrita revitaliza línguas?
Maria Clara Rabelo
Artigos
Ortografia não é apenas escrever palavras com a grafia correta
Luiz Carlos Cagliari
A língua do povo, a fala do povo
Maria Célia Lima-Hernandes
Espaço literário e seus operadores de ressonância e de captura
Leonardo Pinto de Almeida
Comunicação popular escrita, o certo e o errado
Ilza de Paula Pellegrini
Proler – à guisa de um primeiro balanço
Eliane Pszczol
Manoel de tortografia e desgramática (pequena poética para Manoel de Barros)
Adalberto Müller
Resenha
Letras e memória: uma breve história da escrita
Por Luciano Valente
Entrevista
Raul Drewnick
Entrevistado por Por Nivaldo Amstalden
Poema
Happy hour
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Lusografia: reações à reforma revelam questões sociais
Por Nivaldo Amstalden
10/11/2009
Quais as reações que ocorrem em relação ao acordo para a reforma ortográfica? Em meio ao argumento de unificar o português escrito está a preocupação em relação aos custos da reforma – agravada no caso dos países mais pobres –, a desinformação da população e uma eventual perda na tradição escrita e cultural.

O acordo é de 1990, porém sua entrada em vigor dependia de novos estudos linguísticos e ratificações. Estas, desde janeiro de 2009, ocorreram no Brasil, Portugal e Cabo Verde, com diferentes prazos de transição. Os governos das demais cinco repúblicas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda não ratificaram. Entre elas estão Moçambique e Angola, segundo e terceiro mais populosos.

A prioridade social e até a soberania cultural aparecem enfatizadas versus a necessidade de uma reforma ortográfica, sugerindo uma nova pergunta: “Essa reforma quer calar?”, posto o duplo sentido imposto ao verbo calar: silenciar ou penetrar.

“Este é um dos assuntos que tenho estado a acompanhar”, afirma Gil Filipe, editor do Caderno Cultural semanal do jornal Notícias – no qual também maquetiza e revê textos – e colaborador da revista Biarquivo, do Arquivo Histórico de Moçambique. Filipe informou que os moçambicanos, em sua maioria, não discutiram ou estão discutindo o assunto, e a divulgação é pequena, embora o jornal em que trabalha tenha entrevistado professores e escritores. “O acordo ortográfico é um assunto que não faz nem fez parte da agenda de debate de seja quem for por aqui. Penso que as pessoas vão despertar quando virem uma notícia ou um decreto a avisar que o país aderiu ou ratificou o projeto”. Não há previsão para essa ratificação.

O editor do jornal africano lembra que as reações em Moçambique ao acordo ortográfico são esporádicas, porque nem sequer houve um debate envolvente e explicativo em relação ao que vai mudar na grafia da língua portuguesa, que é a língua oficial e materna de parte considerável da população. “A última vez que o governo se pronunciou publicamente sobre a ratificação foi em julho de 2008, quando perguntei telefonicamente ao vice-ministro da Educação e Cultura, Luís Covane: ‘Esse é um assunto que não está esquecido. Estamos trabalhando nele e a seu tempo nos pronunciaremos sobre a ratificação, que vai de fato acontecer a qualquer momento’, foi a resposta”, conta o editor. Por outro lado, ele explica que o jornal Notícias entrevistou personalidades e promoveu inquéritos públicos sobre o tema.

Dentre as personalidades, Filipe destaca a opinião de dois escritores, Paulina Chiziane (autora de Balada de amor ao vento, 1990; Ventos do apocalipse, 1999; e O alegre canto da perdiz, 2008), e Mia Couto (autor de Terra sonâmbula, 1992; A varanda do Frangipani, 1996; O outro pé da sereia, 2006), ambos escritores consagrados em Moçambique. “O acordo ortográfico apenas me cria confusão. Eu defino a língua portuguesa como a minha viola e com ela quero tocar as músicas que quero. Se tenho que tocar com regras fixas ou se tenho que me adaptar, acho que isso é um problema menor”, diz Paulina. Para ela o acordo em si consiste em mudanças menores, mas o que a preocupa são os efeitos colaterais dessa corrida por um acordo ortográfico. “Quantos dicionários Moçambique terá que comprar de novo? Quantos livros terão que mandar reescrever? Quantos livros de escola terão que ser refeitos, em nome de um acordo ortográfico? Será que valerá a pena sacrificar tanto dinheiro dos pobres só para tirar um ‘c’ e um ‘p’ do que está escrito?”, questiona a escritora.

Para Mia Couto há coisas que deveriam ser debatidas, além das mudanças ortográficas. “No domínio da cultura há muito mais a unir-nos que a afastar-nos. Há ações culturais que temos que fazer para que os livros circulem melhor entre nós (leitores do português), o que, francamente, não está acontecendo agora. Com uma ortografia ou outra, se não mudarmos essas coisas não estaremos caminhando juntos”, lamenta. O escritor acredita que a importação de livros deveria ser repensada, sobretudo para os países mais pobres, como os africanos. Sua crítica aponta para a necessidade de uma melhor compreensão da história e patrimônios de identidade comuns entre os povos falantes do português, além de esforços para a tomada de ações conjuntas.

Na opinião de Gil Filipe pensar em uma unificação de grafia para a língua é correto, mas é preciso que os usuários da língua sejam informados. “Entendo que a confusão que se gerou, nomeadamente entre Portugal e Brasil, que são os maiores interessados no assunto, se deve a outro tipo de rivalidade, de orgulho e de afirmação”, aponta. Ele acredita que, embora a língua seja originalmente dos portugueses, é preciso considerar a opinião dos outros povos, ao invés de tentarem “impor apenas o seu conservadorismo”. “Se é prioridade ou não rever a ortografia”, como explica Mia Couto, “sou de opinião que as consequências da revisão deviam ser abordadas, pois países como Moçambique não têm capacidade para pagar a pesada fatura que virá desse que, para mim, é por enquanto um capricho”.

Em Angola, o acordo ortográfico assinado ainda não foi ratificado. A medida aguarda discussão no parlamento angolano desde o fim das eleições de setembro de 2008. “Atualmente, o país mergulhou em outra grande discussão, a Constituição. Acredito que com a aprovação da carta magna da nação outros acordos, incluído o ortográfico, merecerão uma ampla análise”, diz Leonel Martins, jornalista e codiretor da Folha de Angola – jornal eletrônico lançado no Brasil para a comunidade angolana aqui residente.

Martins lembra que a emigração de angolanos para o Brasil começou em 1974 e se intensificou na década de 1990 com a “guerra das matas”. Com a paz alcançada em 2002, muitos já voltaram ao seu país de origem, no entanto, ele enfatiza que “nem as autoridades de Luanda sabem o número exato de angolanos que vivem no Brasil”.

Ele acredita que, assim como ocorreu em Moçambique, não houve uma ampla divulgação, debate público ou adesão dos veículos de comunicação ao acordo, fato que ele relaciona à tradição de Angola adotar as regras e padrões existentes da “língua de Camões”. “Com o efeito da era da globalização e o mundo da informação, os angolanos vêm perdendo cada vez mais a sua cultura no que diz respeito à forma de falar e até à forma da vestimenta, que há muito deixaram de seguir os padrões de comportamento dos angolanos”, lamenta Martins que mora no Rio de Janeiro há sete anos e é graduado em jornalismo pela UniverCidade.

Longe do consenso

“Em Portugal, a reforma ortográfica está longe de ser consensual”. A afirmação é do diretor de redação do Diário Económico, Antonio Costa. “Há movimentos mais contra que a favor. Os que são contra veem como uma imposição do Brasil às comunidades lusófonas, imposição do poder econômico à cultura. Eu, particularmente, não compartilho esta tese, sou a favor”. Ele lembra que o acordo ortográfico ainda não tem uma base de sustentação social e nem mesmo haveria uma consciência coletiva das mudanças, o que estaria, em sua opinião, restrito à comunidade acadêmica. “Em Lisboa fala-se em reverso da colonização, colonização cultural ao contrário”, pontua o jornalista que, no início de outubro e com parceria nacional, lançou o jornal Brasil Econômico. Ele conta que o escritor Miguel Sousa Tavares, autor de O Equador (2003), tem uma visão divertida, porém contrária à reforma, de que ela seria “uma forma que o Brasil encontrou de colonizar Portugal”.

Na pátria mãe da língua, o acordo foi ratificado, porém o período para sua aplicação estabelece um prazo de dez anos, contra os quatro anos estabelecidos no Brasil. Enquanto isso, Costa informa que a imprensa escrita, com poucas exceções, aguarda para tomar uma decisão sobre a reforma que foi também pouco debatida na sociedade, ficando restrita aos níveis acadêmicos. “Vejo hoje o Brasil, pela sua população e economia, como o centro da lusofonia; o país que, há muito tempo mesmo, mais internacionaliza nossa língua e um país em que os portugueses têm muitas oportunidades de negócios”, declara.

O debate está longe de ser encerrado. Em solo brasileiro, o Congresso Nacional poderá autorizar o governo federal a rever o acordo ortográfico firmado e aprofundar o debate junto à sociedade. No último dia 4 de novembro, Marisa Serrano, senadora do Mato Grosso do Sul (PSDB) apresentou sugestão depois de considerar inúmeras críticas feitas ao acordo durante audiência pública sobre o tema realizada pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) do Senado.

Letramento: quantos seriam os lusógrafos?

A CPLP calcula em 230 milhões os habitantes de suas oito nações. Cinco já foram citadas, as outras três são Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Não há dados sobre quantos não falam o português, casos especiais da África e Ásia, nem dados daqueles que, mesmo falando português, não sabem ler e escrever. Há informações demográficas de outras fontes, como a agência norte-americana CIA, em que a soma populacional chegaria a aproximadamente 247 milhões, porém com diferentes datas de censos, o que dificulta uma projeção com pequena margem de erro. Essa fonte indica uma média de alfabetização de 84%.

Tomando como hipótese essa taxa média de alfabetização de 84% (pelo critério “tem 15 anos ou mais e sabe ler e escrever”, adotado pela Unesco), e aceitando os 230 milhões informados pela CPLP como universo, os lusógrafos afetados em seus países pela reforma seriam 193 milhões. Poderiam chegar aos 200 milhões se a eles fossem acrescentados os que também leem e escrevem em língua portuguesa e residem em outras nações ou nas comunidades de Goa (Índia) e Macau (China).