Uma grave série de conflitos armados se desenvolvem hoje no planeta: o já secular conflito no Oriente Médio – cuja a mais dolorosa expressão atual foi a guerra entre Israel e o Hizbollah em julho passado -; a guerra no Iraque – com já cerca de 600 mil mortos; a guerra “esquecida” do Afeganistão; a guerra civil na Colômbia – com um subproduto ainda mais perverso: cerca de 3000 civis seqüestrados; a guerra genocidária em Darfur, no Sudão; a guerra civil, clãnica e religiosa na Somália. Além disso devemos lembrar as guerrilhas ditas de “baixa intensidade” na Libéria, Nigéria, Saara Ocidental, Costa do marfim, Indonésia, Yemen, Malásia, etc... O mais visível de todos os conflitos atuais – a guerra no Iraque – retoma, contra a vontade de seus arquitetos originais (George Bush, Dick Cheney e Donald Rumsfeld ) o princípio básico de que as grandes democracias de massa do Ocidente não toleram a perda de vidas e as populações voltam-se contra seus governos ( caso não consigam vencer rapidamente uma guerra ). Tal axioma, muitas vezes chamado de Síndrome do Vietnã, em virtude da repulsa da população contra aquela guerra ( 1964-1975 ) não explica tudo. Em verdade, tanto no Vietnã, nos anos 1960, quanto hoje no Iraque, o governo americano não soube explicar – por não haver mesmo explicação – a razão de lançar tamanha panóplia militar contra um pequeno país. A justificativa para a guerra – os governos irão sempre apresentar-se como os mais justos e éticos nos seus motivos de fazer a guerra – foram, todos, demolidos pela força dos fatos. A administração Bush alegou razões éticas e valores universais para atacar o Iraque, a saber: 1. as ligações de Saddan Hussein com Ossama bin Laden; 2. a existência de armas de destruição em massa no país; 3. a construção da democracia no Oriente Médio. Ora, cada uma de tais “razões” mostrou-se falsa, construída para justificar a guerra e, no mais, bastante mal articuladas. Assim, a guerra mostrou-se como é: um ato de poder visando a imposição de interesses políticos. O que deu errado foi a resistência iraquiana, a capacidade de organização de grupos – nacionais e internacionais – de resistentes que foram capazes de impor baixas às tropas americanas. Neste sentido, com seqüestros, execuções cruéis e mediáticas e com a morte de soldados dos Estados Unidos, a guerra no Iraque – como fora a guerra no Vietnã – foi lançada para dentro dos lares americanos. Então, Washington começou a perder a guerra. Ora todo o debate entre os partidos Democrata e Republicano – mesmo depois da condenação à morte de Saddan, no timing perfeito para influir nas eleições americanas – trava-se não no caráter legal, ético ou justo da guerra ou das guerras em geral. O debate se dá em torno da morte de americanos, como evitá-la perseguindo, ainda assim, os interesses políticos americanos. É nesse sentido que o governo financia grupos de pesquisadores visando preparar a “guerra do futuro”. Um aúncio feito em março de 2005 pelo Departamento de Defesa dos EUA sobre o chamado Sistema de Combate do Futuro implica na aceitação sem reservas da visão de guerra formulada durante a Guerra de Secessão Americana pelo General Sherman (1820-1891). Na ocasião, Sherman, encarregado de submeter a Geórgia, partindo a Confederação em duas porções territoriais descoordenadas, ordenou o incêndio da cidade de Atlanta, ante o estupor das autoridades e das próprias tropas confederadas. Ante o protesto indignado, Sherman respondeu que “a guerra era sinistra mesmo, um verdadeiro inferno”. No seu sentido moral, por não ser o responsável por ter desencadeado o conflito, possuía a liberdade de recorrer a quaisquer meios para encerrá-la. As formulações de Sherman seriam bem aceitas por Carl von Clausewitz (1780-1831), o teórico alemão da guerra, que afirmaria que toda a guerra tende ao seu extremo. O que o famoso general alemão afirmava, ainda no século 19, seria uma realidade em todas as guerras posteriores: as potências envolvidas em conflitos nos quais sua sobrevivência ou a garantia de seus interesses estivessem em risco não hesitariam em recorrer a quaisquer meios – mesmo os mais cruéis, desumanos ou imorais – que estivessem ao seu alcance. O uso do cerco de cidades e sua redução pela fome e pelo fogo; o ataque a navios mercantes e a guerra submarina; o uso dos gases venenosos e das armas atômicas contra cidades desarmadas, além do terrorismo em larga escala, só confirmariam as asserções de Sherman e Clausewitz. Guerra: uma constante da história Da chamada Batalha de Krapina, onde os primeiros Homo sapiens atacaram e canibalizaram homens de Neanderthal, numa aldeia na Hungria Paleolítica até a atual guerra no Iraque, a história da guerra tem sido uma crônica sinistra, que envergonha o gênero humano. Mas tem sido também um dado constante da história. Assim, seria fantasioso pensar na abolição da guerra e de todas as suas implicações. Na prática, a criação de mecanismos jurídicos aceitos mundialmente de controle e limitação da guerra, através de organismos como uma ONU refundada e ampliada, além de convenções específicas interditando aspectos concretos da guerra (tais como as convenções antiminas pessoais; a interdição de crianças e adolescentes engajados; contra o comércio de armas automáticas ou contra a guerra química ou bacterológica etc.) seria uma solução progressiva e realista. Da mesma forma, ao longo da história, as guerras foram limitadas por constrangimentos objetivos, de cunho material. As condições do tesouro francês, malgrado as operações brilhantes de Colbert, eram um entrave real às ambições imperiais de Luis 14. Em várias ocasiões ingleses e franceses foram levados a aceitar tréguas ao longo das Guerras Napoleônicas (1804-1814) em virtude do esgotamento de seus recursos. Também a disponibilidade de conscritos – do manpower, conforme os americanos – poderia limitar as ambições belicistas de uma potência. O recurso a mercenários seria, sempre, caro e nem sempre confiável, como apreenderam os romanos ao introduzirem bárbaros germanos em suas fileiras. Os Estados Unidos encontram-se hoje no centro de tais considerações. Após a guerra do Vietnã (1964-1975), consolidou-se na América a chamada Síndrome do Vietnã, um verdadeiro pânico frente a macabra rotina de contagem de corpos. Para a liderança militar, tornou-se imprescindível a possibilidade de aplicação de planos alternativos de guerra e de saídas políticas de conflitos, evitando o atoleiro militar vivido no Sudeste Asiático. Desde então, os generais americanos passaram a incorporar a variável política – a solidez política do fronte interno – como elemento de cálculo de todos os planos de guerra. Força e vulnerabilidade da América Era fundamental elaborar uma resposta adequada. Tratava-se claramente de reelaborar o que Clausewitz denominou ponto de gravidade. Um diagnóstico que apresenta claramente onde residia o equilíbrio do adversário e que deveria ser batido, provocando a sua queda imediata. Evitava-se, assim, o desperdício de operações periféricas inconclusivas, demoradas e caras. Foi neste sentido que, a partir do final dos anos 70, generais como William De Puy e Donn A. Starry iniciaram os estudos em torno de uma nova doutrina, centrada na idéia da batalha ar-terra. Devia-se vencer mesmo em inferioridade númerica superior à relação 1/3, através do uso maciço das novas tecnologias, em especial melhorando a velocidade, o adestramento e a letalidade do poder de fogo. Já o Manual de Campanha 100-5, de 1982, estabelecia as condições de uma vitória capaz de poupar vidas humanas. Tratava-se, então, de combinar e coordenar sistemas até então relativamente autônomos, que são organizados em torno de cinco eixos: o carro de combate MI Abrams; a viatura de combate para infantaria M2-Bradley; o helicóptero de ataque 64A Apache; os helicópteros de emprego geral Black Hawk e, em fim, o míssil antaéreo Patriot. Além disso, a doutrina era renovada, as forças armadas reorganizadas e as estruturas de comando ampliadas. Com isso tudo, todavia, a ênfase ainda residia na grande batalha convencional num cenário europeu, tendo os soviéticos como adversários. Poucos chefes militares, e praticamente nenhum civil do Departamento de Defesa – inclsusive aqueles que organizavam e financiavam a guerrilha e o terrorismo afegão contra os russos – pensaram numa guerra assimétrica prolongada em um ou mais cenários no Terceiro Mundo. Ora, os adversários dos EUA, inclusive os potenciais, também leram os mesmos livros. Assim, como na guerra do Vietnã, perceberam a fragilidade americana em guerras irregulares e basearam sua própria doutrina na busca do maior dano possível ao adversário, tanto em vidas humanas, quanto em custos materiais. Com o espetáculo diário da contagem de corpos, atingia-se o ponto de gravidade da América: o horror das democracias de massa ocidentais frente à morte maciça de seus homens. Assim, numa guerra popular prolongada (Mao Tsedong, Van Giap etc.), os adversários da América estão conscientes da impossibilidade de derrotar militarmente seu inimigo em campo de batalha. Para atingir a América deve-se mirar no consenso político interno, hoje fortemente cimentado por laços ideológicos de caráter religioso-nacionalista. A vulnerabilidade de tal consenso reside na chamada contagem de corpos. Não sendo uma guerra de sobrevivência da América – como foi a 2ª Guerra Mundial, após o ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941 – a sociedade não estaria disponível a tolerar um número crescente de baixas, optando pelo abandono de qualquer “parte remota do globo” onde se travasse uma guerra sangrenta (foi assim recentemente no Líbano e na Somália). Frente a tais assimetrias, a liderança americana – inclusive a atual administração Bush – buscou duas ações coordenadas para manter suas ações bélicas no Afeganistão (desde outubro de 2001) e no Iraque (desde março de 2003), além de exercer crescente pressão em outras partes do planeta, como Síria, Irã e Coréia do Norte: 1) A transformação de tais guerras regionais em uma luta pela sobrevivência dos EUA, ao conectar esses conflitos com a questão das armas de destruição em massa e com o terrorismo internacional, em especial a rede Al-Qaeda; 2) Desenvolver todos os esforços possíveis no sentido de minimizar a contagem de corpos, fortalecendo o consenso interno na América e com isso deslocando o ponto de gravidade para a ação militar clássica, no que são imbatíveis. A administração Bush trabalha amplamente em ambas as frentes. Através de um forte discurso ancorado na questão da liberdade, conecta toda resistência aos seus interesses hegemônicos como se fosse ação de tiranos e/ou terroristas, de Bin Laden a Hugo Chávez. Por outro lado, lançou um movimento planetário, através de grandes firmas empreiteiras – TitanCorp, Blackwater, Triple Canopy, entre outras – para o alistamento de mercenários que deveriam lutar no Iraque, expostos às operações mais vulneráveis. Contudo, mesmo este expediente é caro e duvidoso. Assim, o Pentágono lançou o projeto Sistema de Combate do Futuro. Combate no futuro: versão Bush O projeto, ao custo inicial US$ 127 bilhões, ou seja, cerca de 30% do orçamento militar americano – hoje de US$ 430 bilhões – deverá elevar os gastos globais americanos – excetuando US$ 80 bilhões da ocupação do Iraque – para astronômicos US$ 530 bilhões. O objetivo é criar, até 2010, uma força de soldados-robôs capazes de desempenhar missões de alto risco, sem os transtornos da possibilidade da morte e do seu impacto sobre a opinião pública (além, é claro, dos benefícios sociais, aposentadorias, tratamento médico etc.). Hoje os Estados Unidos possuem 150.000 homens no Iraque, um contingente que se mostra insuficiente, incapaz de controlar o território que foi conquistado em uma operação extremamente rápida. Já sofreram quase 1.500 baixas, além 11.000 feridos, com custos unitários – por soldado – em torno de US$ 4 milhões. Assim, já em abril próximo, os primeiros 18 robôs estariam disponíveis para as forças armadas americanas. Trata-se de uma máquina capaz de filmar – literalmente “ver” com olhos mecânicos para o controle distante – e detectar movimentos ou objetos e, mais importante, disparar mil tiros por minuto. Nos EUA, vários estados já possuem hoje uma versão mais simples, utilizada pelas unidades de Swat para enfrentar atiradores entrincheirados. Na versão da admirável guerra do futuro, planejada para 2010, uma brigada de 2.245 homens teria na linha de fogo, como vanguarda e batedores, cerca de 151 robôs, capazes de atingir o inimigo sem o risco de baixas politicamente incorretas. Os EUA querem, assim, eliminar o risco da incerteza – um dos princípios básicos da guerra – utilizando um meio terrivelmente cruel, previsto no último episódio da ópera sci-fi Guerra nas Estrelas: um exército de máquinas assassinas. Assim, o consenso político interno americano, de cunho religioso-nacionalista, estaria à salvo dos métodos assimétricos desenvolvidos contra o imenso poderio americano. Tal qual em Guerra nas Estrelas, a reação dos rebeldes em luta contra o Império poderá vir em forma ainda mais intensa de guerra assimétrica, voltando-se não mais para os alvos militares americanos no teatro de operações, mas contra a população civil no próprio coração da América.
Francisco Carlos Teixeira Da Silva é professor titular de história moderna e contemporânea e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do exército brasileiro.
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